Capítulo VII
"Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."
- Friedrich Nietzsche
As marcas de mordidas no braço do cadáver eram um mau presságio, segundo a concepção da detetive. Ela sabia que se tratava somente de uma questão de tempo para os surtos de "vampiros" eclodirem e causarem esse caos. Porém, sua mente ainda estava presa a um único questionamento: se é algum ser que mata através dessas mordidas, por que a causa da morte é asfixia?
— Na fase de dispneia inspiratória, Alice se contorceu e causou algum arranhão na pele da pessoa. Ao analisarmos os resíduos debaixo da sua unha, encontramos o DNA de Garrett Patel e coincidia com o dia em que foi morta. — dizia Diana analisando o seu relatório antes de entregá-lo à detetive. — A pessoa que a matou era mais forte que ela, é óbvio, pois enforcou o corpo deitado. Quando alguém morre de asfixia com o corpo na horizontal, é notório que o sangue circule para a região com maior declive. Ou seja, as costas.
Inclinando cuidadosamente o corpo para o lado, Diana mostrava as manchas roxas dos vasos sanguíneos presentes nas costas da vítima. Ao repousá-la de volta na maca, apoiava as mãos na cintura franzindo o cenho.
— Só não entendo o motivo das mordidas.
— Elas são profundas? — questiona Alexandra.
— Não, são bem superficiais. Será que há vampiros nessa região, Alexandra?
Em outras circunstâncias, a mulher mostraria sua postura cética mas os acontecimentos estranhos em Londres não afastavam o misticismo de suas suposições.
— Quem sabe.
— Sério? Nossa! Eu nunca imaginei que isso fosse verdade, já que lendas de vampiros em Londres é o que não falta.
— Lendas? Como assim?
— Vamos focar no caso. — Harrisson pedia educadamente. — Então, eu analisei essas marcas e elas são muito superficiais. Isso só pode significar uma coisa, seja lá o que for que mordeu a menina, não quis sugar o seu sangue.
— Isso mesmo. Inicialmente, eu suspeitei que se tratasse de um animal selvagem mas, após pesquisar a fauna da região, não há nenhum ser capaz de fazer isso.
— E depois veio a suposição de vampiros? — Alexandra pergunta ironicamente.
Diana deixa uma risada descontraída escapar de seus lábios, balançando a cabeça para os lados. Seus cachos curtos seguiam suavemente o movimento que fazia.
— Não, não. Eu pensei que pudesse ter sido feito por alguém de arcaria dentária desse tipo, até mandei um dos policiais pesquisar no banco de dados. Contudo, não há ninguém com esse perfil.
— Estranho.
— E bota estranho nisso, Alexandra. Talvez realmente haja essas criaturas maléficas sugadoras de sangue causando essa confusão.
— Não! — exclama Harrisson chamando a atenção das duas mulheres. — Com certeza, há uma explicação mais lógica.
Alexandra estreita os olhos desconfiada, analisando o empresário em busca de algum sinal fácil que demonstrasse mentira. Porém, ele continuava mostrando sua típica expressão indecifrável.
— O Harrisson está certo. Eu ficarei com o relatório da autópsia e sobre a marca dos dentes... — Alexandra interrompia sua fala para cobrir o cadáver por completo. — Quero que essa informação fique entre nós. Se não é a causa da morte, não é uma informação que mereça a atenção do delegado.
A perita acena com a cabeça, concordando com a ideia da mulher. No fundo, confiava na intuição da detetive e sabia que ela possuía uma linha de raciocínio sólida para essa investigação. Após discutirem os últimos detalhes da autópsia, Alexandra e Harrisson seguem o caminho de volta ao escritório dela.
— Esse caso está cada vez mais confuso! Estou começando a acreditar em vampiros. — comenta massageando as têmporas. — Monstros existem e eles são a causa das mortes aqui!
— Não se precipite, detetive. Se há alguma coisa atacando a cidade, não matou a criança.
— E qual a sua teoria, Harrisson?
— Eu li algo sobre vampiros em livros, são criaturas que atacam seres vivos. Como se pode analisar... — apontava para uma parte do relatório. — As marcas foram feitas quando o corpo já se encontrava sem vida.
Essa linha de raciocínio a despertou certo interesse. O mundo do misticismo era, para Alexandra, como a água corrente de um rio. A visão sobre a verdade a ofuscava, impedindo-a de ver a verdade por trás dos segredos obscuros da cidade. Ainda custava muito a acreditar ou aceitar a existência de seres sobrenaturais entre os humanos.
A aparição de Anthony para avisar a chegada do próximo suspeito, afastou seus pensamentos sobre vampiros. Então, os três seguem até o interrogatório pela segunda vez no dia. Oliver Myers os esperava sentado, passando os dedos entre os fios de cabelo castanho enquanto os olhos azuis analisavam as figuras à sua frente.
— Qualificação? — pergunta Anthony tomando seu lugar ao lado da detetive. — E conte-me onde estava naquele dia.
— Oliver Myers, 40 anos, engenheiro civil, casado, residente em...
Harrisson movia sutilmente o nariz, não sentia nenhum cheiro que o incriminasse – diferente de Garrett – mas optou por guardar essa informação para si. As habilidades de dedução de Alexandra conseguiam ultrapassar até mesmo os instintos aguçados de sua raça.
— Eu visitei a cidade com minha esposa há três dias atrás, depois passamos a noite na casa dos pais dela, podem perguntar.
— Você visitou sua filha?
— Claro, eu a peguei na escola há dois dias atrás.
O delegado e Alexandra se entreolham surpresos e, desta vez, é a vez da detetive perguntar:
— Onde a levou?
— Nós a levamos para o parque da cidade, mas a Alice não parava de comentar preocupada sobre a mãe estar furiosa quando não a encontrar na escola.
— E você pegou sua filha sem a permissão dela?!
Oliver respirava fundo, os olhos já marejados.
— Eu sentia sua falta, queria vê-la o mais rápido possível.
— E para isso burlou a ordem judicial?
— Um pai faz o melhor para a sua filha e, para mim, o melhor era tê-la comigo.
— Por que? — questiona Harrisson, até então calado, chamando a atenção de todos para o canto escuro da sala. — A mãe dela era uma ameaça?
— De certa forma, sim. Eu nunca conheci uma mulher tão histérica na minha vida. Elaine toma remédios controlados desde o nascimento da criança, acho que a rotina materna não a fez bem. Por causa dos seus surtos frequentes, nós brigávamos muito.
— Mas se temia tanto pelo bem da sua filha, por que não optou pela guarda dela?
— Eu já tenho a minha família, senhor. Não possuo uma renda boa o suficiente para sustentá-la e, também, não creio que seria capaz de dar toda a atenção que merecia.
— Você esteve com sua filha uma hora antes do assassinato. — afirma Alexandra, vendo Oliver se contrair tenso na cadeira e suar frio. — Isso não foi uma forma de atingir a Elaine ao ver sua fragilidade? Afinal, você deve ter guardado muito rancor ao longo de anos de casamento frustrado.
— Isso mesmo, você não demonstra grande preocupação ao saber que o corpo da sua querida filha foi jogado no rio como um saco de lixo.
— Já chega, Harrisson! — exclama Anthony ao ficar de pé, apontando para a porta com uma expressão de raiva. — Saía daqui! Não precisamos dos seus questionamentos desumanos para acusá-lo!
Dando nos ombros, Harrisson saía da sala mas sem antes olhar Alexandra por cima dos ombros. De alguma maneira, ela entendeu o recado e acenou com a cabeça. Quando o empresário fechou a porta, deu-se continuação ao interrogatório:
— Desculpe-me, ele é novo nessas coisas.
— Tudo bem. — comenta Oliver secando as lágrimas com as costas da mão. — Eu amo a minha filha e nunca a faria mal, mesmo que não demonstre.
— Você acha que a assassina é a mãe da criança, Elaine Myers?
A pergunta de Alexandra deixa o delegado surpreso. Ele rapidamente desvia o olhar para a mulher ao seu lado, fitando-a incrédulo.
— A Elaine? Não! Ela nunca machucou a Alice, era uma boa mãe apesar de tudo.
Finalizado o inquérito, Oliver recebeu a ordem de passar a semana na cidade enquanto a investigação estava em curso. Após acompanharem o homem até porta da delegacia, tiveram a chance de observar a nova esposa o abraçar com força, chorando preocupado. Ele não expressava muita preocupação, sorrindo friamente e a conduzindo para o carro durante uma conversa inaudível. Quando o suspeito estava longe do campo de visão deles, Anthony virava-se para Alexandra ainda incrédulo:
— Acusar a mãe? Você viu o estado em que ela estava? Aliás, não há prova nenhuma contra ela.
— É mais do que perceptível que se trata de uma vingança. Elaine, Oliver e Garrett; todos os três possuem motivos para usar a pobre Alice como um meio para atingir a pessoa desejada. Não quero afastar nenhuma das possibilidades.
— Quem fez isso só pode ser um monstro.
A frase do delegado apenas a instigou mais sobre o possível culpado ser um vampiro, isso se essa criatura existir. Para tirar a dúvida da cabeça, só havia um lugar para ir: a biblioteca.
— Eu preciso ir.
— Hã? Mas estamos no meio de uma investigação!
— É urgente.
A mulher girava o corpo entorno do próprio eixo, não encontrando o homem de olhos azuis. Por isso, dirigiu-se até a secretária a fim de perguntar o seu paradeiro.
— O senhor Thomas disse que havia coisas a resolver na empresa, mas mandou avisar que voltaria o mais rápido possível. Ele parecia chateado.
Parece que a abordagem do Anthony não o agradou, pensava.
Afastando o Harrisson de seu pensamento, seguiu em passos apressados até a delegacia praguejando-se mentalmente por não ter pedido o carro do delegado emprestado. Ao chegar no local, entrou rapidamente na ala sobrenatural o que causou certo espanto nas pessoas ao redor. Geralmente, uma mulher de quase trinta anos não se interessaria por vampiros ou coisas do tipo.
Alexandra deixou vários livros sobre a mesa, situada em um canto reservado da biblioteca e começou a folheá-los. Inicialmente, pesquisou sobre a etimologia da palavra descobrindo sua origem na Europa, em algum país entre França e Alemanha. Surpreendeu-se ao saber que a civilização antiga já possuía relatos sobre essas criaturas misteriosas. Sentiu um frio percorrer a espinha quando um trecho do livro dizia "são criaturas que, na maioria das vezes, possuem crescimento considerável de seus dentes e unhas".
Esse trecho a remeteu à George e Susana Matt, ambos tinham características semelhantes às descritas no livro.
A maioria envolvia a palavra "morto-vivo". As crenças colocavam oferendas nos túmulos ou enterravam os corpos de cabeça para baixo, assegurando que o suposto vampiro não retornasse para assombrá-los. A chuva de informações fazia a cabeça da detetive doer, mas ela não parava de absorver o conhecimento enquanto fazia suas anotações.
Em outros livros, mostrava a fraqueza dos vampiros como alho e a luz do Sol. Porém, também explicava que alguns possuíam a habilidade de andar sobre a luz desde que tenham consigo artefatos mágicos.
— Que maluquice é essa...?
— Está tudo bem? — a bibliotecária falava, fazendo-a dar um pulo surpresa. — Calma, só fiquei curiosa sobre a sua pesquisa. — olhou de relance a capa de um livro. — Vampiros? Nossa, isso é inusitado!
—Eu... Eu preciso escrever um artigo para a minha editora sobre vampiros em Londres, mas não sei nada sobre.
— Eu posso te ajudar, sei de algumas lendas.
— Sério? Isso seria de grande ajuda.
A bibliotecária, uma mulher baixinha de óculos e bochechas redondas, sentava-se frente à frente com a detetive. Ela analisava a capa de um livro e depois o folheava calmamente.
— A maioria das lendas mostrava vampiros como serem incapazes de produzir reflexo no espelho, mas é apenas uma superstição boba. Houve um tempo em que a Inglaterra abriu seus portos para o comércio, vários navios atracavam em Londres. Então, misteriosamente, pessoas começaram a desaparecer e seus corpos eram encontrados dias depois, totalmente sem sangue e com marcas de perfurações. A Igreja não ficou de braços cruzados, todos os dias oravam para que Deus os protegesse dessas criaturas malignas, intituladas "demônios".
A cabeça de Alexandra estava confusa, ainda, mas conseguia seguir a linha de raciocínio da sábia mulher.
— Como se Deus ouvisse as preces da população, foram capazes de descobrir uma das fraquezas desses "demônios": a luz do Sol. Infelizmente, somente o dia era um momento de paz pois, quando a noite chegava, o terror se instalava.
— Afinal, sem a luz do Sol, os humanos eram vulneráveis. — deduz a detetive.
— Isso mesmo! Boatos dizem que a Igreja interveio, por meio de exorcistas. Há uma lenda em especial que fala da expulsão das criaturas das trevas por anjos, mas óbvio que é mais fácil acreditar em vampiros do que em seres celestiais.
Por ser ateia, Alexandra optou por ficar em silêncio mas sabia sobre todos os ensinamentos divinos.
— Os grandes filósofos da época buscaram conhecimento em outros países e descobriram que as criaturas não eram demônios; e sim, vampiros. De qualquer forma, ainda tinha o mesmo repúdio independente da nomenclatura. Lendas contam que boa parte dos vampiros foi dizimado e a outra parte viveu nas sombras da noite, até...
— Até?
— Lembra da Santa Inquisição?
— Sim, lembro.
— A Igreja começou a perseguir fervorosamente as bruxas e muitas delas não possuíam recursos para lutar contra o exército do Vaticano.
— E então?
— Então, usaram a única arma que era capaz de afetar os humanos, a única arma que causou pânico e sofrimento na sociedade...
— Os vampiros. — conclui Alexandra boquiaberta. — Elas os usaram para retornar o caos na cidade!
— Exatamente! As bruxas criaram artefatos capazes de fazê-los andar pela manhã, uma forma de se vingar de todos aquelas que a julgaram.
— E aí?
— E aí, é só isso. Eu não sei de mais nada, desculpa.
— Tudo bem, você me ajudou muito. Obrigada!
— Eu que agradeço, é sempre bom ter alguém para conversar.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Pode.
— Como sabe tanto sobre essas lendas?
— Eu vim de uma família de Wiccas, sabemos mais sobre as lendas do que a maioria das pessoas de Londres.
— Isso é incrível!
xxx
Outro dia se iniciava na delegacia, os devidos relatórios do inquérito estavam quase prontos faltando somente a indicação do suposto suspeito. Tudo apontava para Garrett Patel, o qual apareceu naquela manhã acompanhado do seu advogado e reivindicando seus direitos com o delegado. Enquanto isso, Alexandra estava em seu sala arrumando os papéis até que alguém bate na porta. Ao encontrar o dono dos olhos azuis mais belo que já vira, sorriu discretamente voltando ao semblante sério o mais rápido possível.
— Bom dia, Harrisson.
— Bom dia, detetive. Então, como vão as investigações?
— O delegado mudou o foco da investigação após analisar o inquérito do Garrett, ele está sendo acusado por agressão leve mas se você ler os relatos irá descobrir que mais se trata de um acidente do que algo intencional. Aliás, ele tem o perfil de quem mal sai de casa para comprar comida, imagina para procurar briga ou deixar o som alto, como afirmou Elaine.
— Então, Garrett Patel não passa de um antissocial mal-humorado?
— Exatamente. O que eu quero entender é onde se encaixa a sua presença.
— A Elaine parecia decidida a culpá-lo, por que?
— Porque possuíam uma péssima convivência e... — Alexandra para de falar. — Espera! Elaine comentou que ela se mudou, então é tecnicamente impossível o Garrett ser o seu vizinho.
— Exceto se ela estiver mentido. Ele confessou que a briga com a Alice foi no dia do seu desaparecimento. Como uma criança perderia a sua bola longe da sua casa?
— Somente se aquela casa na frente da floresta não for a dela. — deduz a detetive começando a digitar no computador. — Isso explica o porquê Alice não correu para dentro de casa durante a perseguição.
— Porque aquela não é a sua casa. Então, achou quem é o verdadeiro proprietário?
— Sim, pertence à Peter Malak. Ele é dono da farmácia que Elaine trabalha.
— Por que ela mentiria sobre a sua real casa?
— Porque queria incriminar alguém, mas quem?
— O pai da criança, talvez. — dizia Harrisson após folhear a qualificação do inquérito. — Oliver Myers praticou caça desde pequeno, ele tem conhecimento sobre florestas.
— E isso seria um bom argumento para jogar a culpa nele.
— Sim, além de que é um forte suspeito pois Alice confiava no próprio pai.
— Espere!
Alexandra conseguia acessar um vídeo de segurança da farmácia onde Elaine Myers trabalha, onde tinha a clara visão da mulher em seu local de trabalho durante toda a tarde.
— Ela não para de olhar para o relógio de parede. — murmura Harrisson. — Está esperando o tempo certo para que as peças se encaixem.
— Droga! Um crime premeditado!
— Já sei, precisamos ir até a farmácia.
— Hã? Por que?
— Sei de uma forma de extrair a informação que queremos.
— Então, vamos.
Enquanto o delegado Roberts resolvia o encerramento de outro inquérito, Alexandra aproveitou a sua distração para entrar no carro de Harrisson e ambos seguirem para a farmácia do outro lado da cidade. Ela observava de canto o empresário dirigir, ele possuía um sorriso de animação em seus lábios, o que a fez questionar se era uma boa ideia fazê-lo desistir de trabalhar na delegacia. Talvez nunca admitisse em voz alta, mas Harrisson possuía uma linha de raciocínio invejável.
Ao pararem na frente da farmácia, descem em passos apressados até o interior do local. Um senhor terminava de arrumar os remédios na prateleira e trava ao vê-los entrarem.
— Alexandra Knight e preciso te fazer uma perguntas, senhor Malik.
— C-Claro.
Peter Malik apoiava-se no balcão enquanto fitava as duas figuras imponentes assustado, engolindo seco.
— Conte-me tudo que sabe sobre Elaine Myers.
— A Elaine é a minha funcionária há muitos anos, eu a contratei por ser minha sobrinha.
Então, o sobrenome dela de solteira é Malik, pensava Alexandra.
— Quando tinha 20 anos, Elaine foi diagnosticada com esquizofrenia, mas nunca foi um problema para ninguém porque tomava seus remédios regularmente. A única coisa que a fazia mal era o seu relacionamento com Oliver, ele a desgastava mentalmente e, às vezes, Elaine tinha surtos.
— Como sabe que ela tomava seus remédios com frequência? — questiona Harrisson. — Afinal, Elaine podia muito bem estar mentindo.
— Ela tem a prescrição médica e sempre pega os remédios aqui mesmo.
— Você nunca conferiu no estoque se ela realmente está pegando?
— Eu conferi nos primeiros meses mas depois não achei necessário. Além do mais, ela sempre anota todas as vezes que pega o remédio.
— Posso ver as anotações? — pede Alexandra.
— Claro.
Peter os levava para o outro lado do balcão, onde se abaixava com dificuldade – recebendo o auxílio de Harrisson – para pegar uma agenda de couro. Então, ele a folheia apontando para as datas. Em seguida, Alexandra conferia as anotações nas últimas semanas.
— Ela não pegou remédio nenhum.
— Como assim? — pergunta Peter surpreso, ajeitando os óculos e estreitando os olhos em direção à agenda. — Mas eu podia jurar que...
— Ela é a assassina, Alexandra.
— Não duvido. Nós precisamos pedir um exame psicológico. — conclui a detetive, discando o número do perito da delegacia. — Alô. Tom? É a Alexandra, precisamos que...
Enquanto Alexandra ia até o outro lado da farmácia, conversando com o homem, Harrisson apoiava-se no balcão com um sorriso de canto.
— Não é difícil trabalhar com esquizofrênicos?
— Eu pensei que você soubesse.
— Soubesse do que?
— A senhora Knight não tem uma boa fama. Ela veio de Bradford e eu tenho uma irmã que mora lá. Ela disse que a detetive já foi taxada como louca.
— Louca? — Harrisson demonstra uma leve expressão de surpresa. — Conte-me mais.
— A única coisa que eu sei é o fato dela ter sido expulsa do convento de lá por ter enlouquecido.
— O papo de vocês está bom? — pergunta Alexandra fazendo os dois homens darem um pulo, assustados. — Vamos, Harrisson. Encontraram a Elaine surtando em sua casa, eles a levarão para fazer os devidos exames.
Então, os dois se despedem de Peter e vão para o carro. A viagem de volta para a delegacia foi um completo silêncio, principalmente porque Harrisson estava um pouco receoso em puxar assunto já que sua parceira ouviu a conversa dele com o farmacêutico. Por outro lado, Alexandra tinha sua total atenção para a paisagem com um semblante calmo, não demonstrando nenhum traço de incômodo. Diante de um silêncio arrebatador, o rapaz viu-se na obrigação de dizer:
— Desculpa, Alexandra.
— Pelo o que?
— Pela conversa com o senhor Malik, acabei te desrespeitando sem perceber.
Alexandra deixa escapar uma risada seca.
— Não deveria se preocupar com coisas assim, Harrisson. Eu esperava que a minha imagem como "louca" não fosse revelada aqui, em Londres, por favor.
— Claro, eu odeio boatos e não faria nada que prejudicasse a minha parceira.
— Não?
— Não. — disse gentilmente apoiando sua mão sobre a mão dela que estava sobre sua coxa, abrindo um sorriso acolhedor. — Você é minha parceira e eu te protegerei até mesmo desses boatos, pode contar comigo.
Por mais que seja contra o seu jeito de ser, Alexandra permitiu-se sorrir naquele momento. Seus dentes brancos entrando em contraste com o forte batom vermelho demarcando os lábios. Harrisson a encarou admirado por uma breve fração de segundos, antes de focar na pista.
xxx
O resultado do exame psicológico apontou a esquizofrenia de Elaine Myers, onde foi confirmado que, devido à falta de medicamento, ela teve um surto no dia do desaparecimento de Alice Myers. Oliver assumiu em um novo interrogatório que deixou a filha voltar sozinha para casa depois do passeio no parte, porque não queria desagradar a sua nova esposa, a qual não gostava de Alice.
Através da reconstrução dos fatos, descobriu que a garotinha encontrou a sua mãe à caminho de casa, já que ambas saíram tarde dos locais que partiram. Então, por meio da confissão da mãe da criança, Elaine alegou que a levou para a floresta sobre o pretexto de visitar Peter Malik, seu parente. Porém, ela mudou o rumo da caminhada até que Alice ficasse assustada, iniciando uma corrida pela floresta.
Alice tropeçou em uma raiz exposta, caindo à margem do rio onde sua mãe a alcançou, enforcando-a lentamente enquanto o pequeno corpo se debatia, agonizando até a morte.
— Só há algo que não entendo. — murmura Alexandra em sua sala. — Como o corpo veio parar no rio?
— E se a criatura que a atacou deu uma mordida em seu braço mas percebeu que estava morta, por isso a jogou no rio? — deduz Harrisson. — Bem, isso se você ainda estiver crente de que há seres sobrenaturais em Londres.
— Não posso falar qual o meu posicionamento sobre o assunto, já que ser taxada como louca nessa cidade é meu último desejo.
— Esse pode ser o nosso segredinho, detetive? — dizia dando uma piscada. — O que acha?
Ela revira os olhos, repousando a xícara de café sobre a mesa.
— Você é um pé no saco, mas necessário. — sorria de canto. — Sim, esse é nosso segredo, senhor Thomas.
— Perfeito, senhorita Knight!
Ao ouvir os gritos de Elaine, os dois saem da sala e a encontram sendo conduzida pela polícia, algemada, em direção à cela. Oliver a encarava com uma expressão de espanto enquanto os olhos estavam marejados.
— Eu fiz isso por nós, Oliver! — exclama Elaine durante o choro. — Assim, você voltaria a cuidar de mim. Agora, nós estaremos juntos novamente, não é? Não é?
— Você é maluca, isso sim! — ele rebate. — Ainda bem que irá apodrecer na cadeia ou em um sanatório, esse é o fim que merece!
E a expressão de desespero de Elaine é a última imagem que todos presenciam antes das portas serem fechadas.
— Eu não acredito que ela fez isso... — murmura Oliver incrédulo. — A nossa filha... Ela...
Alexandra observava o cenário com um olhar vazio, entrando na sala e jogando-se na cadeira.
— Que cena pesada.
— Não é para tanto, Harrisson. Ele abandonou a própria filha, é tarde demais para arrependimentos.
— E sobre os vampiros, não acha que deveria culpar esses monstros também? Afinal, o corpo da Alice possuía marcas de mordida.
— Eu convivi há 28 anos com monstros, chamados humanos, não é de vampiros ou demônios que eu terei medo. Harrisson, uma mãe matou a sua filha apenas para "resgatar" um relacionamento. Talvez não tenha sido pela falta de remédios, talvez o ser humano seja mal por natureza. Eu não temo aqueles que sugam sangue, eu temo aqueles que sugam a alma.
Harrisson permaneceu em silêncio, admirando-a como se fosse alguma maravilha do mundo. Suas orbes azuis brilhavam ao ver a imagem de uma mulher forte, inteligente e decidida. Então, ele voltava a se sentar frente à frente com a detetive, ajudando-a com a finalização do inquérito.
Apesar da sua postura imponente, ao chegar em seu pequeno apartamento, Alexandra apoiava-se na parede antes de cair lentamente de joelhos. As lágrimas surgiram em seus olhos, escorrendo pelas bochechas e, por isso, escondeu o rosto com ambas as mãos mesmo que ninguém pudesse presenciar o seu sofrimento.
Ela estava sozinha e chorava pela alma de uma criança. Uma criança que, pela primeira vez, descansava entre boas pessoas.
"Aguardo vocês para mais um belo pesadelo."
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro