Capítulo 6 | A esfera de gás e outros mistérios
Nas pausas entre os bocejos, Tinn Lintoy fazia malabarismo com a esfera no ar. O objeto, uma esfera oca de chapas de estanho parafusadas, ainda não havia revelado a sua utilidade: não se sabia o que era, onde tinha sido feita, ou para o que servia. Nesse ponto, todos os mecanoengenheiros a quem recorreram haviam concordado. Ainda assim, tinha seu valor. Um valor até que considerável, a julgar pelo preço pelo qual estivera sendo leiloado naquele galpão clandestino, antes dos seus garotos a roubarem.
Sentado no telhado de uma oficina, próximo à saída de uma chaminé apagada, observava naquele início de tarde o tumulto das ruas desde uma perspectiva superior. Era o terceiro (e último) dia do Festival da Cascata. Muito abaixo dos seus pés, multidões extasiadas agitavam bandeirolas, proclamando palavras de apoio aos participantes feridos no jogo – afinal, descer ladeira abaixo os degraus de uma rua, sobre um carrinho de madeira, não era para os fracos. Vendedores ambulantes circulavam por entre as pessoas, anunciando lanches, bugigangas e produtos de origem duvidosa, enquanto que ladrõezinhos (preferia chamá-los de aprendizes no ofício do oportunismo) surrupiavam os bolsos de senhoras e cavalheiros distraídos.
O jovem ladrão aproximou a esfera do rosto, observando através de uma abertura envidraçada o interior oco. O gás dali de dentro era invisível, mas quando sacudido, ganhava uma coloração esbranquiçada como uma flor talonuvem. Era muito estranho. Não haviam sido poucas as vezes em que havia se sentido tentado a abrir o objeto a marteladas, para examinar esse gás com mais calma. Felizmente, todas as vezes conseguira se controlar.
Dali a pouco, Tinn ouviu passos leves sobre as telhas, às suas costas. Olhou por cima do ombro, sem se levantar. Ficou um tanto surpreso em ver Varil e Célinn; Loiss, por outro lado, não lhe trouxe nenhum espanto.
– Deixamos tudo pronto lá no armazém – disse a garota alta de cabelo loiro curto. – Brett vai cuidar para que as coisas não saiam do controle.
Tinn esboçou um sorriso, percebendo um espaço para trocadilhos.
– Tanto assim vocês querem ir para a prisão comigo? – perguntou.
Os três se entreolharam, parecendo confusos. Depois, Varil e Loiss desataram a rir. Célinn, não.
– Pelo Estigma, não entendo como você consegue fazer piada de tudo – disse ela, as mãos na cintura. A garota de ar venenoso e o rapaz de óculos enferrujados eram os segundos no comando do bando Lintoy, atrás apenas de Tinn e do seu irmão. Eram os que, na maior parte do tempo, lidavam diretamente com os membros mais jovens e problemáticos. Devia muito aos dois.
– Você não entende, Cél – Varil fingiu treinar socos no rosto de Tinn, que aparou todos os golpes. – Fazer piadas é o que faz dele, ele mesmo. Não é, Tinn? Me diz que você nunca pensou em entrar para a Ordem do Credo.
– Penso nisso todos os dias.
– Viu? Ele é um Amarelo de corpo e mente!
Tinn ouviu Célinn bufar. Aproximou-se de Loiss, que ainda sorria, e o encarou com seriedade fingida.
– E você, pequeno grande aprendiz de oportunista? – perguntou, cruzando os braços. – Como é a vida que levamos? – Arrependia-se do sermão que dera nele no dia do último Concílio, quando soube que Nímie havia se machucado. O garoto não tivera culpa: aparentemente, não a tinha visto, e mesmo que tivesse, não tinha como saber que ela caía desacordada quando próxima de ruídos excessivamente altos. Havia tido a certeza de se desculpar com ele, depois.
– "Para o trabalho, vamos vazios" – Loiss repetiu o verso conhecido. – "Para o bordel, vamos cheios. Do bordel, voltamos vazios". E felizes – A última havia sido uma adição dos outros meninos do bando.
– Exatamente, professor – disse o jovem ladrão, guardando a esfera de gás no bolso do colete e dando um tapa amigável no pescoço dele. – Voltamos felizes.
Os três sorriram um para o outro, compartilhando a expectativa da próxima vez que voltariam para gastar seus florins roubados em um bordel – expectativa à qual a única garota ali parecia indiferente. Depois de pensar um pouco, Tinn perguntou:
– Brett não disse nada sobre algum novo trabalho do peixe-grande?
– Não – respondeu Varil, meio sem jeito –, ele anda... ocupado. Meio que ocupado. Entende?
– Em cima daquele barril velho, mastigando a goma sozinho. Sim, eu entendo – Aquele era um novo problema que surgira desde o dia do último Concílio: Brett e o seu vício na gomabrava. Até então, desde que o irmão fora levado preso, Tinn havia conseguido evitar com que os seus garotos gastassem muito do dinheiro do fundo comum num vício evitável. Mas, depois da noite em que Brett o vira de ressaca da goma, já não havia conseguido impor tanta ordem aos membros mais rebeldes. E Brett era um deles.
– Ele diz que consegue lidar com os mais jovens, mesmo assim. Vai saber...
Tinn estalou a língua, aborrecido. Fosse qual fosse, um problema era um problema. Como o líder em exercício do bando Lintoy, mais cedo ou mais tarde teria que lidar com ele. E o fato de ser Brett era outro problema por si só. Tudo vinha se acumulando, ultimamente.
A sombra de um módulo de teleférico escureceu o dia por uma fração de segundo. O jovem ladrão observou uma dupla de denteplanadores passarem voando acima de sua cabeça, caindo e deslizando juntos no ar como se numa dança coordenada. Instantes depois, pousavam num cabo estendido que servia de varal atravessando a rua, correndo para se perderem nas frestas entre as tubulações que abarrotavam as fachadas das residências.
Seus ouvidos captaram a reverberação distante de alguns tiros de pistola-sino. Ignorando-os, Tinn disse a Varil, Célinn e Loiss que deveriam ir logo para a prisão.
***
Por si só, Tinn não considerava que conhecer Kalori de uma ponta à outra era mérito seu. Havia tido tempo, e também necessidade. Desde muito cedo, o irmão Redrian o levava para andar por aí pelos nove distritos, pelos guetos marinos, explicando onde se podia furtar à luz do dia, onde devia ser cauteloso, e onde não havia modo algum de roubar e sair vivo.
As imediações da Prisão de Fragatas, para onde se dirigiam, eram um desses lugares.
Na verdade, o mérito que tinha era o de conseguir ainda lembrar de tudo, e o de incrementar com perfeição novas informações àquelas que já possuía. Pelo conhecimento há muito entranhado na sua mente, sabia tudo o que era necessário saber sobre Fragatas: que o distrito, assentado numa encosta vizinha à cidade, abrigava uma grande quantidade de píeres aerostáticos, armazéns, e alojamentos para estrangeiros. E também a prisão. E que, por isso, ali as patrulhas de Espinhos costumavam ser feitas com muito mais empenho do que nos outros lugares. Depois de tudo, tanto como industrial, Kalori era uma metrópole comercial.
Sob a sombra de uma seivaroxa, jovem ladrão observava as ruas sem mostrar tanto interesse. Afinal, se mostrasse a mesma atenção que usava quando estava em operação, logo seria identificado por qualquer Espinho da Guarda Distrital à paisana. Mas mesmo isso havia sido o suficiente para confirmar as suas suspeitas de que era o dia perfeito para falar com o seu irmão: como pensara, não haviam tantas patrulhas; a maioria estaria de folga aproveitando o Festival da Cascata, bem longe dali.
Do outro lado da rua, nas mesas quase vazias de uma casa de chá, um cavalheiro de fraque engomado lia jornal enquanto bebia aos goles um copo de chá gelado. Tinn torceu o nariz ao sentir um cheiro estranho ao seu lado, algo entre verniz e gordura.
– Tudo em ordem daqui até o portão oeste – disse a voz de Célinn.
Sem se preocupar em disfarçar o gesto, inclinou-se na direção dela para cheirá-la.
– O que foi? – perguntou a garota, aturdida. Embora ladrões não se preocupassem em segui-la à risca, a etiqueta kaloriana apregoava que não se deveria fazer ou dizer nada que sugerisse haver um cheiro diferente em alguém. Do mesmo modo, a pessoa em questão deveria se preocupar em não mantê-lo demasiadamente diferente.
– Você está com um fedor dos abismos, Cél.
Célinn cheirou a si mesma.
– Estou mesmo. Que estranho.
– Não sabia que você tinha começado a andar com aqueles pervertidos das orgias dos peixes.
– É claro que eu não... – A garota de cabelo curto franziu as sobrancelhas. De repente, pareceu lembrar de algo. – Ah, não acredito! Foi naquele momento! – Explicou: – Uma velha de roupas estranhas borrifou algo em mim quando eu estava passando por um alojamento, ali perto do 32. Não achei que o fedor estivesse vindo de mim...
– Esses estrangeiros e suas loucuras – comentou Tinn, com um sorriso de divertimento no rosto e dois dedos tampando o nariz.
Dali a pouco, Varil e Loiss surgiram de uma rua transversal. Os braços pequenos de Loiss seguravam uma sacola marrom que guardava algo (muito provavelmente) comestível.
– Demoramos porque tive que parar para esse erva ruim comprar... – vinha dizendo Varil, mas se interrompeu, fazendo uma careta. – Mas o quê... De onde está vindo essa... pestilência? – Ele e Loiss tamparam os narizes.
– Não quero ouvir nenhum comentário mais sobre isso – sentenciou Célinn, e sozinha começou a andar.
Tinn viu que Varil o interrogava com o olhar, mas encolheu os ombros. Indicou para que fossem com ela.
A meados de uma tarde em pleno Festival, como já havia constatado, não existiam tantas preocupações sobre ser interrogado por uma patrulha de agentes. Passaram com tranquilidade por um grupo de estivadores bêbados na calçada, por um artista performático todo pintado de cinza e estático, e por uma rica senhora saik estrangeira que os encarou com o maior desdém que Tinn já se lembrava de ter presenciado. Em dado momento, Loiss parou para observar a vitrine de uma loja de antiguidades, mas foi puxado logo em seguida.
Enquanto cruzavam as ruas que alternavam a sombra dos aeróstatos e das nuvens de shinne, Tinn se percebeu incapaz de renegar a ansiedade e o nervosismo que sentia. Não fazia sentido. Redrian sempre havia sido um bom irmão mais velho, equilibrado na motivação e na reprimenda. Sempre o tratara com respeito, nunca abusando da sua condição de mais velho; então... por quê? Não o via há vários meses, era verdade. Nos quase seis anos que agora estava preso, não o vira nunca angustiado ou enraivecido. Sempre sereno e genuíno. Resoluto. Um líder carismático. Nunca estarei à altura dele, constatava, com medo. E ainda assim, carregava nas costas o peso do bando inteiro.
Quando pensava em como contaria de tudo o que vinha acontecendo, o que diria, seus olhos viram surgir a monumental prisão de pedra e metal escuro ao final da rua. Haviam apenas dois vigias, à frente do portão principal.
– Se eu demorar muito, não precisam me esperar – murmurou Tinn, voltando-se para eles.
Os três assentiram, e quase de imediato correram para simular uma briga, um pouco mais adiante, na rua. Quando os vigias da prisão se distraíram com eles, o jovem ladrão aproveitou a deixa para rodear o muro até a parte oeste.
Tinn olhou para cima – para a parede carcomida, para os encanamentos e tubos enferrujados que brotavam dela –, e tomou impulso. Suas mãos e joelhos se aferraram aos tubos. Com os movimentos desengonçados e a força dos braços, subiu através dos tubos alternando o apoio entre blocos de pedra mais salientes e seções transversais. Não precisava pensar muito. Já o havia feito mil vezes antes, e, de qualquer forma, o medo real não era o de cair: ser pego no meio do caminho, e preso, era muito pior.
Tinn não se virou para ver se o trio o observava. Ao alcançar uma janela com as persianas abertas, abriu o vidro com cuidado e entrou. A despensa da prisão de Fragatas não havia mudado, em todos os anos desde que começara a vir. O familiar cheiro sóbrio de limopasta não cozida estava sedimentado no ar, o resultado inevitável de anos e anos de uma alimentação sem grandes mudanças. Nunca haviam se dado o trabalho de trocar as estantes tortas das paredes, ou de limpar a poeira grudenta das junções entre a parede e o piso. Não seria agora que o fariam.
O jovem ladrão esperou com o ouvido na porta durante algum tempo. Mas, não percebendo nenhum ruído que denunciasse qualquer carcereiro nas proximidades, aventurou-se a seguir em frente.
Entre os corredores vazios e claustrofóbicos daquela ala, Tinn avançou com a memória do caminho exato bem entranhada dentro de si. Apesar da carta de Redrian ter dito que a ala já estava quase em desuso (à exceção da despensa e de uma cozinha), lembrava de ter ficado com muito medo da primeira vez que viera. Medo dos vigias, dos prisioneiros, e da própria prisão em si. Agora, é claro, não sentia mais do que uma leve apreensão, por saber que era um trajeto até que bem usado pelos criminosos que levavam notícias do lado de fora aos seus membros presos. E também pelos cisionistas.
Atravessou a uma porta que ligava aquela ala à principal, tendo cautela para não fazer muito ruído, já que agora ouvia as conversas dos carcereiros e o gemido dos presos fluindo pelo corredor. Ainda que fosse difícil, precisava ignorar o fedor de mofo, suor e fezes. Queria não ter tanto sangue vanier, reclamava no seu interior.
Esgueirou-se ao longo de celas inusualmente silenciosas, de retratos emoldurados do Estigma na parede, relógios orbitais que pendiam do teto e vergalhões jogados em qualquer lugar. Haviam nas celas, além de humanos, marinos também; o observavam passar com seus esbugalhados e inumanos olhos amarelos. Alguns cochichavam entre si na confusa língua deles, que mais pareciam chiados de algum engenho mecânico bizarro.
Por fim, Tinn viu-se diante da cela de número 256. O cárcere onde estava Redrian Lintoy, seu irmão mais velho. Engoliu seco.
– Como vai você, Hartin? – a pergunta viera seguida de um bocejo, logo abafado. – Bem, espero.
Tinn não havia percebido o seu silêncio até a voz do irmão tirá-lo dos seus pensamentos.
– Redri – cumprimentou-o, aproximando-se da cadeira para que o outro lhe desse um tabefe cordial.
– Você ainda não parou de crescer – constatou Redrian, com um sorriso. – Quantos anos tem agora? Dezoito?
– Dezenove.
Tinn se permitiu um breve sorriso, vendo o irmão sentado na cadeira à sua frente. Haviam se passado meses da última vez que viera vê-lo, anos desde que o vira ser levado preso, mas o que definia Redrian como Redrian parecia nunca mudar. Alguma vez, tivera medo de que isso fosse acontecer – diziam que a prisão mudava totalmente as pessoas. Esse não havia sido o caso com Redri, que mantinha a mesma expressão decidida dos tempos em que liderava o pequeno bando de ladrões.
– Como vai o bando? – perguntou Redrian, parecendo ler os seus pensamentos.
– Está crescendo... bastante – relatou Tinn, pesando as palavras. Por algum motivo, sentia que perdia grande parte do seu orgulho quando estava com o irmão, e isso o incomodava. – Ganhamos muitos novos membros. Temos... tido bastantes trabalhos nos últimos tempos, também. Em especial, um dos homens-peixe.
– Ah, eu ouvi sobre isso – Redrian assentiu com veemência. – "Se querem culpar alguém, culpem a Guarda por não protegê-los". Uma mensagem até que bem direta, não? Apesar de que tudo é válido, se tiver efeito – Ponderou um instante, coçando a nuvem de cabelos loiros. – Qual dos clãs foi? O Sangue-do-Quebra-Conchas?
– Não. O Sombra-sobre-o-Mar.
– Ah, o velho Hrrvish. Uma jogada incomum, da parte dele.
– É... eu acho que sim – O jovem ladrão estremeceu, lembrando dos assaltos nos teleféricos parados. Da mensagem que haviam sido contratados para dizer em cada módulo, como um mantra sacerdotal dos Laranjas. "Se querem culpar alguém, culpem a Guarda por não protegê-los". Não combinava com o bando Lintoy: soava cisionista demais. Mas não queria dizer isso em voz alta.
O olhar de Redrian parecia curioso.
– O que você trouxe? – perguntou.
– Como você sabe que eu trouxe algo?
– É bastante evidente – disse Redrian, com um sorriso largo. – Por baixo do seu colete.
Tinn olhou para as próprias roupas, de súbito consciente de ter esquecido ali a esfera de gás. Entregou-a ao irmão.
– O que seria isso? – perguntou o outro, depois de devolvê-la. – Algum tipo de engenho da Dervânia? Ouvi dizer que em Bak eles têm uma tecnologia bem mais avançada que a do Continente. Por que você não leva isso para um mecano...
– Eu levei. Eles não sabem o que é.
– Não sabem? Que... incomum – Redrian apertou os lábios verdes, pensativo. – Onde você conseguiu isso?
– Não fui eu que consegui – disse Tinn, olhando para a esfera uma última vez antes de guardá-la de volta. – Brett foi quem me entregou. Ele disse que pegou ela de um leilão, no território do Lança-que-atravessa-Escama.
– Hmmm. Então essa coisa deve ter o seu valor, de fato.
Houve um instante de silêncio, que o jovem líder ladrão aproveitou para se encostar à parede descascada da cela. Deixou-se cair até encostar no chão, a mente transbordando de pensamentos não muito positivos. Parecia uma boa ocasião para isso, para pensar. Não vinha tendo muitas pausas como essa, é verdade, já que os outros estavam sempre o procurando para resolver problemas e tomar decisões. Agora, livre da pressão do bando, ainda que apenas por um tempo, sentia-se em parte aliviado.
Os problemas só vinham crescendo de magnitude. Lembrava da época de antes de Redrian ser levado preso, há sete anos. Naquele tempo, tudo com que precisavam se preocupar eram a arrecadação diária e os conflitos com os outros bandos. As brigas podiam ser encarniçadas, é verdade, mas as coisas se resolviam com base na força bruta. Sem pistolas-sino, sem carabinas-tambor.
Lembrava de Nímie ter ficado brava quando soube que ia deixar o orfanato para ajudar o irmão.
– Seu idiota! Eu não quero saber se esfaquearem você depois!
A menina (Nímie ainda era uma criança) havia chorado escondido, quase o fazendo voltar atrás com a palavra que dera a Redri. Mas não era do tipo que fazia isso. Apenas para vê-la – já que Nobaji já havia desaparecido, naquele tempo – tivera que conciliar o bando Lintoy com as visitas esporádicas ao orfanato de Estrado. Não era algo do qual se arrependesse. Havia culminado, algum tempo depois, com a manifestação de um sentimento que não pudera manter para si mesmo, e em uma carta. Uma carta rejeitada.
Agora, estava tudo diferente. Agora as coisas haviam ganhado outras proporções; nada, ou quase nada, podia ser resolvido com base na força. Ainda que as operações tivessem crescido. Haviam os contrabandistas do distrito do Desterro, um reduto de refugiados da Saikânia e Dervânia, de Bak, nos baixos. Haviam os clãs dos marinos, nos guetos à beira-mar, com suas rivalidades e tradições brutais. Haviam, por fim, Espinhos da Guarda Distrital cada vez mais truculentos, e toda questão relacionada à Cisão de Kalori. Questão que envolvera Redrian, e que ameaçava envolver também muitos dos seus garotos.
Tinn não tinha certeza se conseguiria resolver tudo, se conseguiria conduzir o bando pelo caminho da sobrevivência e da prosperidade. Não tinha sequer certeza se possuía a capacidade para isso. Talvez o que havia nascido com o seu irmão, terminaria consigo. O peso da culpa, então, recairia totalmente sobre as suas costas.
– Deveria vir para os nossos círculos, Hartin – murmurou Redrian, de repente.
Tinn olhou para o irmão, a raiva transparecendo.
– Eu não vou levar os garotos para a Cisão! – retrucou, modulando a voz em seguida. – Não vou... Entenda isso de uma vez, pelos abismos...
– Você só está sendo teimoso. Sabe que não perderiam nada com isso.
– Nada? – Tinn bufou. Imaginou Varil, Célinn e Loiss agitando as bandeirolas com o emblema da corrente quebrada. Imaginou-os repetindo descerebradamente os discursos dos oradores cisionistas, e sendo alvejados por saraivadas de tiros de carabinas-tambor. – Isso é sua loucura, Redri. Não fique querendo nos envolver nisso.
Tinn viu o irmão levantar da cadeira em que estava sentando, vindo em sua direção. Viu-o parar à sua frente.
– Eu sei que você não é muito ligado aos nossos ideais – disse o jovem líder cisionista, olhando-o nos olhos –, mas eles são o futuro. As coisas têm mudado graças a nós. É a verdade; você sabe que é. Se eu vejo a mudança acontecer diante de mim, não é apenas lógico que queira participar dela? – Na sua expressão, Redrian parecia não entender. – Eles fizeram o que bem entenderam por trezentos anos. Ainda fazem. Você lembra do Dah Geri das Casualidades, não lembra?
– Não quero saber – interrompeu-o o jovem ladrão. – Não fique achando que eu sou um idiota, para ser convencido por qualquer coisa.
– Há dez anos ainda éramos um movimento incipiente – continuou Redrian, como se não o tivesse ouvido. – Nos enganaram... Nos controlaram durante muito tempo. Nunca tivemos voz. Mas agora temos, irmão. Temos um círculo cada vez mais ativo, com pessoas que anseiam pela transformação. Eu, Dax, lady Hestrine, o senador Jorwell, o telegrafista... Podemos também trazer o marquês Firlainn para o nosso lado. Além delas, uma carta na manga. Pessoas tão diferentes, juntas pela mesma causa. Por que você não?
Tinn estalou a língua, erguendo-se. Ignorou Redrian, indo em direção à porta da cela. Parou.
– Foi bom ver você, meu irmão querido – ouviu a voz às suas costas, num tom gentil. – Espero encontrá-los quando nossa Flor da Península tiver se tornado um lugar melhor.
Antes de sair, o jovem ladrão baixou a cabeça, consternado. Mais além de ideais grandiosos, de mudanças iminentes, sabia ter perdido algo que não mais iria recuperar. Uma ligação, ou talvez um estado. Não era um sentimento inédito (Nobaji, antes dele, havia padecido e sucumbido por uma causa similar). Mas isso não ajudava em nada a tirar o peso da desilusão.
Era como já sabia: Redrian Lintoy continuava o mesmo; ainda assim, havia mudado de um modo irreversível.
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