Capítulo 28 | O quartel-general de Ladeira
Dia 1 do Dah Geri.
Atualmente.
Na noite anterior, Nímie já havia tido o trabalho de fazer com que todas as suas coisas coubessem no interior daquela malinha de couro e ferro, uma que pegara do depósito velho do orfanato. Não havia sido difícil: à exceção das mudas de roupas, tinha apenas o conteúdo do Baú Secreto, o crachá e o pouco dinheiro que ganhara durante o seu ano de aprendizado com a sra. Vinders. Cem florins. Poderia parecer muito, considerando que o preço de uma empada das que fazia era dois florins (os esfomeados considerariam cinquenta empadas o próprio Paraíso Anelar), mas era pouco para um ano de trabalho. Não havia gastado nada desse montante porque não precisava, porque a comida, a roupa, e o lugar onde morar eram providenciados pela instituição do orfanato. Mas, agora que estava saindo de debaixo das asas deles, tinha noção de que precisava pensar em como administrar o seu dinheiro.
Durante anos havia considerado a opção de fugir. Mas normalmente esse pensamento mesmo se autossabotava, porque parecia bobo e infantil. Pelo menos, sempre pensara que o dinheiro seria a primeira coisa com a qual deveria se preocupar caso algum dia resolvesse ir embora.
Pela manhã, Tinn estava esperando sob a mesma sombra da calçada da frente. Distraída com as suas especulações, Nímie recusara a ajuda dele para carregar a maleta com as suas coisas, e agora se arrependia. Porque estava pesado. Mas havia dito não, e, por mais que seus braços já começassem a doer, manteria a sua decisão. Ainda assim, se ele insistisse de novo em ajudá-la, não havia por que negar dessa vez...
– Essa mala parece bem pesadinha, não é? – comentou Tinn, e a garota percebeu a ironia no tom dele. – Olha como ela está inchada... Parece um peludinho que acabou de se empanturrar com o lixo do Palácio da Coroa.
– Que exagero. Não está tão pesada assim.
Foi um alívio quando pôde largá-la na plataforma da estação de Estrado. Quando Tinn foi comprar duas passagens na cabine do bilheteiro, Nímie aproveitou para abrir e fechar os dedos e acariciar os braços que já quase não sentia.
Como sempre, não haviam muitas pessoas à espera do teleférico naquela estação. Estrado era um distrito pequeno, e talvez o mais calmo dentre todos. Vendo por esse lado, talvez fosse sentir falta dessa calmaria.
– Aqui, a sua – disse Tinn ao voltar, e lhe entregou o bilhetinho furado.
– Obrigada. Aliás, acho que não cheguei a perguntar, mas por que aqueles dois não vieram com você hoje?
– Célinn e Varil? Eu falei para ficarem no quartel-general. Há... Bem, há alguns problemas no bando e eles só pioram quando trago os dois comigo e deixo o resto sozinho. Além do mais, eu sou o bastante para acompanhar você.
– Você acha? – Nímie prendeu o coque, que estava começando a soltar. – Esses problemas são aqueles relacionados ao garoto que não gosta muito de você? Aquele que você me disse uma vez.
– Brett. Isso.
– Eu... espero não causar nenhum outro problema ao seu bando, então. Vou tentar não me intrometer em nada.
– Você pode se intrometer à vontade, Ním. Sua presença é mais que bem-vinda.
Nímie olhou para Tinn de soslaio, mas o olhar dele estava voltado para o módulo que vinha descendo pelos cabos, rangendo como um monstro não totalmente domesticado. Suas mãos se fecharam ao redor da alça da maleta.
O pequeno grupo se juntou ao redor da área de embarque. Assim que as portas se abriram, e duas pessoas desceram, entraram dentro daquela caixa de metal e vidro da Linha Leste, que dispersaria os poucos passageiros pelas estações de Torre Marinha, Ladeira e Desterro. Acompanhando a ascensão do módulo através dos cabos, Nímie observou pela última vez os velhos edifícios de apartamentos e pequenas lojas de Estrado sumirem no mar de telhados. Estranhamente, não sentiu nada. Estava deixando para trás o orfanato e o distrito que a haviam abrigado por nove anos, mas não sentia nada.
Talvez... Não, a verdade é que nunca tivera nenhum carinho pelo lugar. Desde que fora levada à força ali por um agente da Guarda, depois da morte de Ginald e Levie Hammson, perdera qualquer tipo de ligação com o ambiente à sua volta, fechando-se em si mesma como um inseto no casulo. Os quase três anos de amizade com Nobaji e Tinn – os dois, juntos – a ajudara um pouco. Mas aí Nobaji partira, e Tinn decidira tomar conta dos assuntos do irmão preso. Há algumas semanas, Nímie estivera a ponto de se... Bom, não gostava de lembrar disso agora. Sentia-se abandonada e sozinha, e parecera a única opção possível para alguém sem futuro. Havia sido tolice, é claro. Pelo menos, continuava viva para tentar encontrar um futuro onde fosse feliz. Era o primeiro passo.
– Você não conhece Ladeira direito, não é? – perguntou Tinn de repente, quando o módulo parou em Torre Marinha para que alguns passageiros descessem e outros subissem.
Nímie meneou as sobrancelhas.
– Eu... conheço um pouco. Algumas vezes, viemos vender empadas com a minha mentora, mas mais pela zona próxima de Vista de Gávea. Então, sim, eu conheço um pouco o seu distrito.
– Eu não quis zombar de você com essa pergunta – Tinn suspirou, beliscando o braço de Nímie, que fez uma careta de dor. – Engraçado, tinha achado que você tivesse perdido já esse seu orgulho – Pigarreou. – Claro que eu não tenho nenhum aqui comigo, mas se você olhar um mapa, vai ver que Ladeira é o único distrito que une os Altos aos Baixos. Sim, assim, assim, como uma ladeira. É um distrito bem grande, que está perto de Desterro, e você sabe o que tem em Desterro. Sabe porque é perigoso.
– As gangues e bandos dos saikanos?
– Não são só saikanos. Mas, sim. Os contrabandistas. Ladeira é muito grande, é difícil de controlar, e ainda é importante porque une o topo das classes de Kalori com os guetos. Tem até um píer aerostático próprio. Você não imagina o tipo de coisas que ocorrem sob a sombra, todos os dias.
– Acho que imagino... um pouco – resmungou Nímie, incomodada com o tom dele. – Eu entendi que você está me alertando que é um distrito perigoso. Só não entendi aonde você quer chegar com isso. Porque você sabe que eu vou tomar cuidado, de qualquer forma.
– Eu sei que vai. Mas não saia do quartel-general sozinha; não vá a nenhum lugar desacompanhada, não olhe nos olhos de ninguém na rua. Estou dizendo isso porque me preocupo de verdade com você.
No meio tempo, o módulo havia parado na estação de Ladeira.
Nímie olhou em volta, e apesar de todas as advertências que acabava de ouvir, só conseguiu pensar que parecia mais um distrito normal. Haviam pessoas, haviam prédios, vendedores ambulantes e o sol e o Arco do Mundo brilhavam da mesma forma que em todo lugar. Desceu com dificuldade a sua bagagem do módulo para a plataforma.
– Quer ajuda? – ofereceu o rapaz.
A garota não hesitou.
– Eu aceito. Obrigada.
Parecia uma eternidade desde a última vez que presenciara as preparações para o Festival do Declínio, que começavam dois dias antes do Declínio em si. Pensava que, pelo jeito que Tinn havia falado do distrito, de como seria perigoso e tudo, Ladeira seria uma exceção. Não era. Pelas ruas, velhos, jovens, artesãos, lojistas e outros de aparência pouco amigável penduravam flores-caveira nas janelas, portas, varais e qualquer superfície que suportasse barbantes e as tétricas flores pretas. Era um trabalho comunal. As flores, de pétalas finas e compridas e o centro com o formato de uma caveira, se desintegrariam em cinco dias, marcando o fim do período de sombra.
Ainda lembrava de Níadh ou Kasern falando que "o Declínio é o período que a natureza nos dá para refletir a nossa condição, o futuro e como temos levado a vida e nos portado com nossos semelhantes". Sim... cada ano, era a mesma coisa. Mas Nímie não negava que gostava um pouco desses três dias, porque neles ficar em casa e não falar muito era visto como aceitável.
Nímie passou por pessoas, muitas delas, que levavam punhados de flores-caveira presas em barbantes, procurando um lugar onde pendurá-las. Esteve a ponto de perguntar algo para um homenzinho de ar gentil, mas Tinn a puxou pelo braço. Avançavam pela Avenida do Memorial, a principal do distrito.
– Esse é o Conney das Cordas – sussurrou o rapaz. – Ele é quase uma celebridade por aqui, mas não no bom sentido. Há cinco anos, soltaram ele da prisão de Fragatas, e quando ele começou a "brincar" o enfiaram lá de novo. Há três anos, ele foi solto definitivamente.
– E onde se encaixa o das Cordas nessa história?
– Tem a ver com o tipo de brincadeira que ele realiza. O dele envolve cordas, membros amputados, enforcamento e muito sangue.
– Tá, já é o suficiente – interrompeu a garota, afastando-se do homem que tranquilamente pendurava a sua flor num varal baixo. – Já entendi que não devo falar com qualquer um. Muito menos, se tiver "das Cordas" no nome.
– Não é para tanto. Mas tem muitos outros piores do que o Conney por aí.
Nímie engoliu seco e baixou a cabeça, e por ter seguido a sombra de Tinn mais do que prestado atenção ao trajeto, não conseguiu decorar o caminho. Mas... estivera ali duas vezes. A primeira, quando viera pedir a ajuda deles para procurar a amiga perdida; a segunda, há poucos dias, para tentar conseguir um lugar onde ficar depois que saísse do orfanato. Agora, estava de pé diante daquele grande armazém abandonado, cercado por outros dois exatamente iguais, e parecia a primeira vez que o via. Parecia a primeira que via os tijolos desgastados de suas paredes, ou a sua altura monumental, ou os rabiscos que se sobrepunham a outros rabiscos, restos de cartazes, panfletos e manchas de fuligem e vômito. Não se esqueça que você está aqui graças a um favor. Você é uma convidada.
O grande portão estava apenas parcialmente aberto, minimamente aberto, o bastante para permitir a passagem de uma única pessoa. Nímie entrou por ele. A primeira coisa que saltou aos seus olhos foi a inúmera quantidade de colchões velhos espalhados pelo chão. A segunda foi o grupo de crianças que se formou ao redor dela, que nem Lenkin saberia dizer de onde surgiram. Devia ser a nona hora da manhã.
– Quem é você, senhorita caveira? – perguntou um deles.
– Alma penada, vá embora, alma penada!
– Apitos-de-navio são só apitos-de-navio, idiota – constatou um terceiro. – Quem é ela, chefe?
A maioria deles parecia ter menos de onze anos. Atrás deles, percebeu alguém conhecido que se aproximava.
– Você veio rápido, não é, Ním? – disse Célinn, sorrindo. – Pela forma que o Tinn me contou, pensei que você esperaria até o Declínio.
– Eu ia esperar – respondeu Nímie, enquanto abria espaço entre os moleques curiosos até ela. – Mas acho que não tive paciência para aguentar mais dois dias...
Às suas costas, ouviu Tinn dizendo:
– Essa mala aqui é dela, não de vocês, entenderam? Não! Tire a mão daí, Ginger!
***
Parece que nunca se consegue ser feliz por muito tempo, não é mesmo?, pensou Tinn, enquanto pesava nas mãos o porta-moedas que acabava de roubar de um aprendiz distraído no mercado de Ladeira. O garoto descalço, o olheiro, continuava parado à sua frente, meio entediado, meio tentando disfarçar. De tempos em tempos, olhava para o porta-moedas. Parecia saber que dali sairia a gorjeta que daria a ele pela informação.
– Você... tem certeza disso, não tem? – perguntou Tinn, finalmente.
O garoto assentiu, enérgico. Os cabelos ruivos e sujos dele cobriram-lhe o rosto.
– Você é um maldito por me dar uma notícia como essa num dia tão especial. Continue fazendo um bom trabalho.
E, ao dizer isso, tirou de dentro do novo espólio uma moeda de dois florins. O garoto sorriu e saiu correndo.
À sombra da grande pedra esbranquiçada do Memorial da Travessia do Norte (que, diziam, havia sido trazida das ruínas de Wextainham há cento e cinquenta anos), Tinn esfregou os olhos, tentando não pensar em nada. Não conseguiu. O garoto olheiro havia dito que corria um boato de que haveria uma fuga da prisão, nos próximos dias, e que o cabeça desse movimento era Redrian Lintoy. Seu irmão... Tinn gostava de pensar que não odiava seu irmão a ponto de querer que ele permanecesse naqueles muros de pedra por mais muito tempo, e provavelmente era verdade. Mas, com ele fugindo, seus problemas como líder do bando ficariam ainda maiores. Da última vez, pegara um dos garotos escondendo dinheiro para si mesmo na terra ao lado do armazém. Era um absurdo. A regra sempre havia sido clara: tudo que obtiverem, será para todos. Para isso existia o fundo comum. Questionado, ele dissera que Brett havia comentado que "é só uma regra idiota, se quiser guardar o seu dinheiro, guarde".
Tinn, sinceramente, não entendia como haviam surgido essas rixas com aquele narigudo. Bretten Nuvem Fria era um dos garotos mais leais de Redrian, quando ele ainda era o líder, e quando este fora preso e Tinn assumiu, não houve problemas. Ele era inteligente, afinal. Deve ter percebido que, pela situação em que estavam, corriam o risco de desaparecer a qualquer momento como bando, e o ideal era realizar um esforço conjunto. Brett havia passado a aconselhar Tinn, a agir como um intermediário entre os olheiros e informantes e o bando. Graças a ele, o grupo havia florescido e ganhado novas dimensões. Ao saberem – mesmo de outros distritos – quem não trocava seus cadeados há anos, que estrangeiro havia se mudado recentemente, quem havia viajado, em que armazém de Vista de Gávea iriam guardar o novo carregamento de fibramacia e seda importados, tinham muitas oportunidades que nunca haviam tido antes. Sob a liderança de Redrian, o grupo surgira e conseguira se manter apesar das rivalidades e brigas com outros bandos, mas sob o comando de Tinn é que haviam se estabelecido como um bando importante do submundo. Roubavam, é claro, mas agora também faziam pequenos trabalhos para os contrabandistas, para os cabeças-de-peixe, para a Guarda e para quem quer que estivesse disposto a lhes pagar. Trabalhos pequenos, mas que, na maior parte das vezes, davam um retorno desproporcional. Muitos haviam se juntado ao seu bando, desde então.
Talvez estivessem fadados a terminar assim. Brett havia pegado tanto gosto ao mandar e ser obedecido – como o segundo no comando –, que começara a pensar que era melhor ser ele o líder. Sem terem mais que se preocupar pelo dinheiro, que antes era pouco, havia começado a ter ideias que um ladrão não deve ter, ideias de cisionismo e idiotices. Como Redrian. A pensar que era alguém importante, gastar dinheiro com raiz e gomabrava e prostitutas e cozinheiras da classe alta para lhe fazer um banquete. Sim, soubera o que ele havia feito no outro dia. Mais do que raiva, começava a sentir pena dele. Porque, um dia, Brett havia sido o seu amigo, o seu conselheiro, o seu número dois... Agora, faziam dias que não o via pessoalmente. Mas sabia, pelo que lhe disseram, que ele estava apostando nos galpões de briga de círcalos, esses bichos gordos que trazem do Arquipélago Rachado. Torrando dinheiro em apostas.
Mas, se pensasse pelo lado de que não teria que lidar com ele ao mesmo tempo em que estava em companhia de Nímie, talvez isso não fosse tão ruim.
Quando Tinn voltou para o quartel-general, encontrou os garotos equilibrando-se numa escada para pendurar flores-caveira nas vigas do alto. Olhou em volta. Não viu Nímie e Célinn. Foi até Varil, que lia um livreto de capa amarronzada, deitado num colchão longe da escada e dos gritos.
– Onde...
– ... ela está, não é? Saiu com a Célinn, acho que para comprar mais barbantes. Ou comida, talvez – Sem tirar os olhos das páginas, Varil ajustou os óculos e sorriu. – Tinn, você é mais fácil de ler do que esse livro, he, he, he.
– Que engraçadinho. Do que é esse livro aí?
– Arqueologia. A evolução das ligas metálicas e formas dos braseiros dos nômades de Bak.
Tinn abriu o baú de ferrolhos carcomidos onde guardavam o dinheiro do fundo, e despejou ali o conteúdo do porta-moedas. O metal tilintou ao se juntar à pilha.
– Isso... não pareceu muito, eu acho – comentou Varil, que agora olhava em sua direção. – De onde foi?
– Mercado. Não era muito, mesmo. Era um aprendiz que andava por aí sem prestar atenção em volta.
– Ah, isso explica o quase nada, he, he.
Tinn teve uma ideia.
– Ei, se você não sabe nem aonde foram, também não sabemos quando vão voltar. Não quero ficar à toa, Var. Largue esse livro chato e vamos jogar uma partida de Casco. Eu acho que agora consigo ganhar de você.
– Você é um mau perdedor, Tinn – Varil fez cara de ofendido. – E o livro não é chato.
Enquanto o outro ia até uma estante no canto para trazer as peças e o tabuleiro, Tinn puxou um colchão para mais perto do dele. Montaram no espaço ali o jogo. O atacante e o defensor seriam decididos na sorte. Normalmente havia um dado, ou moeda. Diferente de outros jogos tradicionais que alguma vez vira, no Casco e Canhão quem tinha vantagem era o atacante.
Tinn jogou a sua moeda de um florim da sorte. Terminou como defensor.
– Podemos trocar, se você quiser – sugeriu Varil.
Tinn olhou para aquele rapaz, dois anos mais jovem do que ele, e negou com a cabeça.
– Apesar das adversidades, tenho que vencer. É o que um bom líder faz.
Varil riu. O defensor contava com doze peças, aglutinadas no centro do tabuleiro, ao redor do Guardião do Braseiro. O atacante contava com vinte e quatro, todas no perímetro externo. Se o objetivo do defensor era fazer o Guardião do Braseiro são e salvo às bordas do tabuleiro, o objetivo do atacante seria capturá-lo antes que chegasse lá, com qualquer um dos oito Ginetes, oito Carabineiros, quatro Monges, e quatro Canhoneiros. Na verdade, dois. Cercar o Guardião por dois lados determinaria a vitória do atacante.
No início, o objetivo dos dois lados era tentar minar o máximo possível o número de peças adversárias. Tinn, é claro, sabia disso. Sabia também que a única vantagem do defensor existia nesses momentos iniciais, quando as peças defensoras estavam fechadas num único bloco intransponível. Mas seu oponente era Varil, um maníaco nesse jogo, então a sensação de segurança que deveria ter não existia.
De qualquer forma, Tinn fez o primeiro movimento. Um Monge seu saltou por cima da formação, abrindo o centro.
– Você já vai começar "fazendo buracos", Tinn? Tudo bem, tudo bem.
Varil moveu um Ginete para longe do perímetro e a meio caminho do centro, tomando a ofensiva.
Tinn usou o espaço para mover um quadrado um de seus Canhoneiros, no centro. Posicioná-lo na abertura que logo surgiria lhe daria a vantagem de sair por aquele lado. Varil respondeu movendo um Monge para se juntar ao Ginete dele.
Muitas vezes, ouvira falar que esse jogo representava uma escaramuça nas Grandes Planícies Centrais de Bak. Uma contenda entre duas tribos de nômades-fogareiros. Tinn nunca vira um autêntico nômade-fogareiro na vida, então só podia imaginar como era ver na vida real seus esforços sendo minados pelas táticas do adversário. Não... Se estivesse ali mesmo, não estaria preocupado com que táticas, mas com a sua própria vida. Ou então seria o Guardião do Braseiro, observando impotente em como o inimigo que vinha apagar o fogo dos seus antepassados, roubar seus animais, levar suas mulheres, ia exterminando pouco a pouco os guerreiros da sua tribo. Não seria uma visão agradável. Mas, por que é que pensava que ele poderia ser o Guardião? A quem ele protegia?
O barulho dos garotos e garotas brigando pela oportunidade de pendurar as flores ecoava ao fundo.
– Sabe, eu acho que nunca agradeci você – Varil interrompeu o avanço de um Monge no meio do caminho. – O-obrigado.
– Pelo quê?
– Ah, você sabe...
– Na verdade, não – Tinn olhou para a peça que o outro segurava, e o fez colocá-la no tabuleiro. Logo entre dois Carabineiros. Capturou o Monge.
– Ei, eu não ia colocar ele aí! Bom, tanto faz. Mas você sabe do que eu estou falando, eu sei – O rapaz de óculos engoliu seco. – Você, lá em Estrado. Nós, aqui...
– Eu não podia deixar vocês sozinhos.
– Claro que podia! Essa é a questão. O seu irmão cuidava bem de nós, muito até, então quando ele foi preso naquela greve ficamos literalmente na corda bamba. Éramos pivetes; ninguém sabia muito bem o que fazer. Você também, mas pelo menos Redrian tinha te ensinado um pouco das coisas. Naquelas semanas... Bom, foi um caos. Não podíamos roubar em lugar nenhum, porque todos sabiam que tinham levado o Redri, sabiam que estávamos sem alguém para nos proteger. Tínhamos que nos mudar toda hora, porque descobriam o nosso esconderijo e nos invadiam. Se viam um de nós, sozinho no meio da rua, era certeza que voltaria com pelo menos cinco ossos quebrados. Aí, ficávamos com fome e brigávamos entre nós mesmos. Uma vez, a Cél quase me matou com uma pá.
– Ela me contou sobre isso – comentou Tinn. – Disse que sente muito.
– Ela não teve culpa. Porque eu digo "fazíamos isso ou aquilo", mas eu era o pior, he, he. Eu era quem mais arranjava confusão com os outros bandos. Um dia, ela se cansou dos problemas que eu vivia trazendo.
– Se eu não tivesse visto vocês naquela época, não acreditaria que você e o Varil de onze anos são a mesma pessoa.
– Eu acho... que você tem razão.
Tinn suspirou. Piscara e agora havia perdido quase todas as suas peças. Talvez três jogadas, e o seu Guardião do Braseiro seria capturado. Piscara, e agora os garotos todos estavam em volta, observando e cochichando o andamento da partida.
– A questão com o Brett – disse Varil, sem parecer prestar muita atenção aos movimentos finais que fazia –, eu penso que você não deveria prolongar mais. E eu falo isso sendo amigo de você e dele. Ele está dando um exemplo muito mau, e está desobedecendo as regras. Só existe um jeito, Tinn.
– Não posso... – Tinn moveu seu Guardião. Duas jogadas para a derrota.
– Você precisa – Varil respondeu fechando ainda mais o cerco. – Não tem outro jeito.
– Eu... não consigo. Ele estava lá desde o começo, Var. Ele me ajudou a reerguer esse bando das cinzas. Eu não consigo. Sinto que estaria traindo... Traindo...
Tinn segurou o seu Guardião no ar, sabendo que assim que ele tocasse o tabuleiro, a partida encerraria. Seria derrotado. Olhou para os garotos e garotas que os observavam, curiosos. Rostos novos, rostos antigos, rostos que havia visto crescer desde pequenos, e agora eram adolescentes barulhentos. Ginger, Nedwey, Jon, Sunnox, Finnen, Doe... Havia muitos deles. A maioria, apenas os encontrara nas ruas, brigando por migalhas de pão no mercado, e os chamara para o bando. Outros, haviam fugido de casa, porque seu pai era um operário bêbado e violento. Era como terminavam assim. Sob a sua tutela, haviam aprendido a roubar com mais eficácia e destreza, no momento certo e com os alvos certos. Eles aprendiam rápido. Assim, o grupo cresceu, e o fundo comum aumentara e aumentara, até que já não precisassem se preocupar com a fome do dia seguinte.
Talvez Varil tivesse razão, e pudesse ter dado as costas a eles, porque afinal eram assunto do seu irmão. Mas... não havia conseguido. Terminara naquele orfanato apenas por capricho, porque via as outras crianças vivendo uma vida diferente da sua e queria experimentar. Mas, no final, provavelmente sempre soubera que terminaria voltando ao bando. Tinn e Redrian não tinham pais. Aquela era a sua única família.
– Hmmm, não estou vendo o Loiss aqui...
Som de batidas no portão.
Tinn se levantou, levando nos dedos o Guardião e gesticulando para Varil que esperasse, que logo voltaria para finalizar a partida. Mais batidas, mais fortes. Franziu as sobrancelhas, irritado. Fosse quem fosse, eram muito impacientes. Haviam passado apenas poucos segundos, não o suficiente para...
Cinco cabeças-de-peixe à luz da tarde.
Ainda confuso, Tinn olhou em volta, para ver se não havia alguém mais. Teve a sensação de ver a sombra de Brett atrás deles. Mas não teve tempo de entender o que estava acontecendo. Um deles o puxou com força pelo colarinho, e Tinn logo percebeu que seria inútil tentar se safar do aperto daqueles braços azul-esverdeados cheios de escamas. Levavam carabinas-tambor e lanças-espada, tão grosseiramente fabricadas quanto letais.
Forçou um sorriso, ainda que estivesse suando frio.
– Os senhores... me permitiriam perguntar-lhes o motivo da sua visita ao nosso lar? É para fins de precaução futura...
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