Capítulo 18 | O problema da criança perdida
Atualmente.
Já fazia um mês e meio desde que Forley havia se casado. Dedicado ao ofício que herdara do seu pai, e do seu avô antes dele, quase nunca tinha tempo para pensar em mais nada além dos códigos e retransmissões. O telégrafo! Desde o incidente que culminara na repentina morte do Estigma, vinha acompanhando a situação por meio de mensagens que chegavam do Continente e do além-mar, trazidas pela extensa linha que cruzava Kell de norte a sul. Dos céus, por carta. Forley, dado o seu ofício, estava a par de todas as preocupações que rondavam a grande metrópole. De empresários receosos a parentes preocupados, todos passavam pelas suas mãos. Ou melhor, as palavras deles. Às vezes, tudo parecia muito mais do que um pequeno grupo de pessoas – seus colegas de trabalho na Central do Telégrafo – conseguisse lidar sozinho.
Forley passava os seus dias enfurnado entre decodificadores mecânicos e rolos e mais rolos de papel. O que dizer a respeito de romance? Não tinha tempo para pensar nisso. Ganhava o suficiente para sustentar a si mesmo num apartamento alugado na Praça dos Arcos, e era isso. Que mulher iria querer um sujeito circunspecto que vivia para o trabalho? Não havia perspectiva, ação, ou aventura em sua vida. Às vezes, quando parava para refletir a respeito, talvez nem mesmo ele gostasse de como vivia. Como poderia uma mulher gostar de alguém assim?
Dwynne parecia ter gostado.
Agora que pensava, talvez tudo tivesse acontecido rápido demais. Num momento, estava conhecendo aquela jovem mulher de índole movimentada e alegre, que tomava cada pequeno acontecimento como se fosse o último, e no outro a estava pedindo em casamento diante de uma pequena plateia de apóstolos-pregadores na rua. Certo, talvez ela tivesse um pouco de razão quando dizia que eram tão diferentes que se completavam muito bem. Não podia e não queria negar que esse mês e meio de recém-casado havia sido um dos mais felizes da sua vida. O fato de ter conseguido viver sem conhecê-la, até então, era um mistério.
De igual forma, Forley estava feliz em abrigar seu ex-colega e melhor amigo Einard no seu apartamento. Embora a presença dele às vezes constituísse um obstáculo – principalmente quando estava disposto a fazer coisas de casal com Wynn –, gostava de tê-lo por perto. Sabia que a sua esposa pensava da mesma forma. Por causa disso, vinha tolerando as misteriosas saídas vespertinas dele (que cada um fizesse o que entendesse), mas, a partir de determinado momento, os potenciais perigos da leniência começavam a assombrar a sua mente. Einard era seu amigo, mas se o que quer que ele estivesse fazendo fosse trazer algum perigo para a recém-formada família...
Naquela tarde, o telegrafista acabava de voltar para casa, disposto a esclarecer esse problema de uma vez, quando ouviu as esporádicas batidas na madeira que caracterizavam os jogos de Casco e Canhão. Pelo que sabia, não tinham nenhum tabuleiro em casa. Quando abriu a porta, encontrou-se no meio de uma partida em curso no tapete, uma entre Wynn e Einard. E havia mais alguém numa cadeira ao lado deles – uma menina –, e Forley não soube o que pensar a respeito disso.
Wynn ergueu o olhar para ele, e abriu um largo sorriso. Einard acenou, uma peça de Monge entre os dedos. A menina não disse nada; sequer se moveu. Dava a impressão de estar olhando para o vazio.
– Não sou de reclamar, vocês sabem. Mas, por Lenkin, estou vendo demasiadas coisas estranhas por aqui – disse Forley. Olhou para a menina. – Por onde começo...
– Eu estou sendo humilhada pelo Einny – Wynn suspirou. – Talvez tenha passado muito tempo desde que uma pequena Dwynne jogava esse jogo com os colegas de trabalho do meu pai. O que você acha, meu amor?
Forley olhou para a esposa e não soube o que dizer. Será que ela tinha noção de que as coisas estavam um pouco fora do lugar? Sentou ao lado dela para analisar a partida, lançando olhares ocasionais à menina misteriosa.
– Hmm, bem... O que é que eu posso dizer? – murmurou o telegrafista, pensativo. – Você mesma parece ter se metido numa enrascada. Sinto muito, minha Wynn – No tabuleiro, a maior parte das peças havia dado lugar a grandes vazios; a maior concentração estava no canto esquerdo, ao redor do Guardião do Braseiro e dois Carabineiros defensores. Era questão de tempo até que as peças do atacante (Einard) sobrepujasse as de Wynn.
– Isso eu sei – disse ela, rindo. – Mas não há nenhuma forma de reverter essa situação ao meu favor? Sei que estou em desvantagem. Mas já perdi muito, e não quero desistir.
Einard se balançava sentado nas próprias pernas, no tapete, como uma criança que não consegue ficar quieta. Forley observou a partida de todos os ângulos possíveis, apenas para concluir o que já sabia: não havia forma de ganhar aquilo. O Guardião do Braseiro estava fadado a cair, a ser conquistado pelo exército inimigo como um mero troféu de guerra. Os Carabineiros simplesmente não tinham um raio de movimento grande o suficiente para criar qualquer jogada miraculosa. Estava perdido.
A análise da situação do jogo, por algum motivo, fez Forley lembrar da notícia do falecimento do Estigma de Kalori. Esse pensamento enigmático persistiu até a garota estranha se levantar de repente da cadeira, caminhando por cima do tabuleiro em direção a uma parede vazia. As peças se espalharam.
– Podemos considerar essa uma "jogada inesperada"? – perguntou Wynn, zombeteira, e se levantou também. – Eu acho que você perdeu, Einny. Estou indo preparar o chá.
– É... Eu acho que perdi....
Forley riu e ajudou Einard a recolher as peças jogadas. Enquanto isso, a menina estava encostada à parede. Imóvel.
– Eu encontrei essa garota lá nos altos – explicou Einard, assoprando a xícara fumegante. – No Farol. Ela parecia perdida... Não havia ninguém com ela... Ninguém para tomar conta dela...
– Não, pare, eu já sei aonde você quer chegar. Mas posso perguntar como tem tanta certeza disso?
– Bom, foram uns cinco dias... Toda vez que saía do Farol, a via por ali, andando perto dos arbustos.
Forley se conteve para não perguntar o que Einard fazia no Farol. Ao invés disso, murmurou:
– Certo. Vamos com calma – Fez uma pausa, respirando fundo. – Basicamente, você encontrou uma criança perdida e julgou que a melhor alternativa era trazê-la para cá. Para a sua casa. Tudo bem. Você nos conhece o bastante para saber que não o repreenderíamos por isso. Mas por que não um orfanato? – Forley, Einard e a menina estavam sentados ao redor da mesa na sala, bebericando chá de cinzamel que Wynn fizera. Ao menos os dois primeiros; a menina deixara sua xícara intocada.
– Eu sou órfão... Qualquer coisa que acontecesse, os monitores arranjavam uma desculpa para me baterem...
– É verdade. Você tinha me dito. Me desculpe, Einard.
Forley suspirou, encostando os dedos na testa enquanto refletia. A menina não parecia alguém saudável. Desde que chegara, não pronunciara uma palavra sequer, e, muito mais do que isso, em momento algum ele teve qualquer motivo para acreditar que ela entendia o que estava acontecendo à volta dela. Sequer reagia a estímulos; era como se vivesse num outro mundo. Suas roupas – um vestido cinza simples – estavam maltratadas, as extremidades desfiadas. Baixou o olhar para o fundo da xícara. Ouvia o assobio da esposa vindo da cozinha.
– O que sabemos a respeito dessa garota? – perguntou, finalmente.
– Que ela... estava perdida no Farol? – arriscou Einard, armado com a xícara entre os dedos.
– Essa é apenas uma suposição sua. E se ela tivesse ido para lá por vontade própria? – Forley desviou o olhar para ela, e seu semblante de repente ficou mais sério. – Bem, como você mesmo disse, há algumas possibilidades que eu não gostaria de considerar. Não gostaria, mas...
– Esse é um uniforme de Orfanato... Mas algumas oficinas também usam, para aprendizes mulheres jovens...
Forley chamou Wynn em voz alta. A mulher apareceu com os braços brancos de farinha. Explicou a ela tudo o que estivera pensando. Wynn concordou de imediato.
– Mas... acha mesmo que pode ser isso, meu amor? – Wynn hesitou. – À primeira vista, esse não parece ser o caso dela.
– Talvez não seja, mas é melhor conferir. E só posso pedir a você – Forley levantou da cadeira, puxando Einard consigo. – Vamos, nós dois temos que esperar lá fora.
Os dois homens saíram; Forley pensativo, Einard com o olhar de quem havia se perdido com o rumo dos acontecimentos e estava sem entender nada. Quando voltaram, Wynn terminava de abotoar as costas do vestido da garota.
– Não há nenhum sinal de violência no corpo dela – explicou Wynn, assim que os viu entrar. – Uma ou duas cicatrizes, mas bem antigas. O que achei é outra coisa – Ela balançou uma espécie de cartão diante deles.
– Um crachá de identificação? Onde isso estava? – Forley leu o documento que havia tomado da mulher. Dizia: "NL332: Airyn Daeldhann. Orfanato Público nº21. Distrito de Estrado". – Aqui diz Estrado...
– Achei num bolso interior do vestido. Por fora, não daria para ver.
Einard ainda tinha o olhar voltado para o crachá.
– Ah, eu lembro desses... Eles ainda usam... – murmurou.
Wynn e Forley se entreolharam.
– Ei, Nardy – disse Forley, atraindo a atenção do amigo com um rápido estalar de dedos –, sei que não é o melhor momento para perguntar, mas ainda assim tenho que fazê-lo. Vou fazer uma pergunta e espero uma resposta. Espero que não tome isso como ofensa.
– Claro que não, amigo-Forley. Qual é?
– O que você estava fazendo no Grande Farol de Kalori?
O telegrafista tinha muitas coisas em mente, mas nenhuma parecia fazer sentido, dada a personalidade de Einard. O Farol era uma ruína. Dizia-se que estava ali, no cume do penhasco que formava a cidade, desde tempos imemoriais. Era uma ruína consideravelmente antiga, mas não havia nada ali. Nada... até quase quatro meses atrás, quando o Estigma e o filho dele foram presos depois do julgamento pelo Dah Geri das Casualidades. Um julgamento de índole no mínimo duvidosa, mas o fato é que o Farol atualmente não era nada, além de um cárcere temporário para o filho do Estigma. Kinsey, lembrava direito? O lugar também costumava ser ponto de encontro para os poucos remanescentes dos cultos aos antepassados; mas isso, supunha que já não acontecia, devido à atual condição de cárcere do lugar.
Na verdade, agora tinha motivos para ficar mais preocupado. Se as saídas de Einard – que já vinham sendo uma preocupação secundária sua há algum tempo – fossem direcionadas ao Farol, estava certo em sua preocupação. Por que, que motivos teria alguém para visitar o asilo de um preso político? Nos últimos tempos, a política vinha se tornando cada vez mais perigosa. Regimentos da Guarda rondavam as ruas à procura de "suspeitos" (com critérios pouco claros, qualquer um poderia se tornar "suspeito"), casas eram invadidas à plena luz do dia à procura de um exemplar do As Correntes Invisíveis, e bandidos aproveitavam para abrigar seus crimes sob o estandarte da Cisão. Forley ainda ocultava da maioria dos seus conhecidos a sua ligação com o movimento, mas agora que estava casado, começava a se preocupar se ele não seria o próximo a ser levado. Sem ter a intenção de colocar Dwynne em perigo, vinha considerando se desligar do grupo. Afinal, não é como se a sua função de vazar informações da guarda para as lideranças só pudesse ser efetuada por ele. O problema ficaria ainda maior se além do próprio Forley, Einard (que morava em sua casa) também estivesse ligado à Cisão.
Einard, que parecia alheio à tudo aquilo que povoava a mente de seu amigo, ergueu o queixo num gesto satisfeito. Logo após olhou para os lados, como se estivesse prestes a contar um segredo, e sussurrou:
– Kase me pediu para que eu fosse fazer companhia ao amigo-rapaz-Kinsey... Jogo Casco e Canhão e converso com ele.
Por um instante, Forley achou que fosse morrer.
– Kinsey? – perguntou assim que se recompôs. – Kinsey Grantham, o filho do Estigma?
– Ele disse que, na verdade, é Fowlgrenn – disse Einard. – Vai saber...
Pela segunda vez, Forley sentiu-se arrepiar como escamaemplumado pego em pleno vôo.
– Kasern... – O telegrafista olhou para baixo, e todo o cansaço refletiu em seus olhos. – Bem, mais tarde vou querer que me coloque a par de tudo. De tudo. Mas não quero perguntar agora, porque sinto que já foram incidentes demais para uma única tarde.
Forley, que trabalhava na Central do Telégrafo, ouvira muito a respeito do filho adotivo do Arquiduque do Estigma. Forley, que era secretamente ligado à Cisão de Kalori, conhecia bem esse Dax Fowlgrenn e seu sindicalismo radical. Duas pessoas tão diferentes... Por último, Forley, que convivera desde sempre com os apóstolos-pregadores, se considerava um seguidor não-oficial do Rito Índigo. Havia muita coisa para processar.
Sem que percebesse, seus olhos encontraram-se recaindo sobre a sua mulher, que falava com a menina – Airyn – em voz baixa. A menina, é claro, não respondia a ela.
– Wynn... O que fazemos? – perguntou.
– Sobre o quê? – Wynn ergueu o olhar para ele.
– Sobre Airyn, sobre tudo...
Sentiu o olhar dela se demorando no seu.
– Sobre tudo, não sei – disse a mulher, com um meio sorriso. – Sobre Airyn, acho que deveríamos ficar com ela, por um tempo.
– Mas ela não é uma garota de rua perdida – pontuou Forley. – Pelo que diz o crachá, veio desse orfanato...
– Ainda assim, olhe o estado em que Nardy a encontrou – A expressão de Wynn, de repente, ficou mais séria. – Seria mesmo válido a levarmos de volta, sem ter certeza da situação que a levou a se perder?
– Não seria, mas... – Forley encarou o olhar da esposa. – Não, você está certa, Wynn.
Wynn se aproximou para lhe dar um beijo, que Forley retribuiu.
– Mas é claro – reafirmou o telegrafista – que será apenas por um tempo, não é? Assim que possível, precisamos devolvê-la ao lugar de onde veio. Não seria justo com ela.
– Eu sei.
Forley olhou para a garota de vestido cinzento, que Wynn segurava pelos ombros. Pensou que, ao menos por enquanto, a situação estava resolvida.
***
Já fazia algum tempo desde que Airyn percebeu que as imagens de pedras, arbustos, e céu azul haviam sido substituídas por outras, de um lugar fechado. Impressões rápidas de facas de cozinha, tapete, janela, som de chaleira. Uma casa? Não sabia dizer ao certo. Não era qualquer lugar que já tivesse estado antes.
Airyn permanecia naquele não-lugar que a fazia lembrar das histórias do pós-vida lenkinistas. E se estivesse mesmo morta? Não lembrava de ter morrido, mas também seria estranho se conseguisse se lembrar disso. Assustador, talvez. Como é que teria morrido? O Arco Infinito parecia um lugar solitário...
Em dado momento, teve a impressão de que não estava mais sozinha. O vento ficou mais pesado. O espaço entre as estrelas aumentou, ou um murmúrio quase inaudível atravessou o fundo do mar. Ou talvez fosse apenas uma impressão.
» – Você não parece muito aflita por se encontrar nesta situação, menina.
» – Quem é você?
» – He he, isso é um pouco engraçado. Essa é a primeira coisa que vem à sua mente?
» – Eu estou morta?
» – Finalmente. Isso eu já esperava, para ser sincero. E não, não está morta.
» – Não estou morta. Então, quem é você?
» – Está tão curiosa assim a meu respeito? Tenho a impressão de que vai se decepcionar. Se não está morta, sua próxima pergunta deveria envolver o lugar onde se encontra.
» – Eu quero saber quem é você...
» Pausa.
» – Meu nome costumava ser Tesárkis. Está satisfeita?
» – Estou.
» Silêncio.
» – Você não está morta, mas a sua mente está dormente. Não perguntou, mas vou falar.
» – Como assim?
» – O você-mente está preso no vão entre as partículas da consciência Dele (ou, nesse caso, da inconsciência), e não consegue sair. Para todos os efeitos, está isolada daquilo que tomamos como o mundo real.
» – Não sei se entendi muito bem. Mas então, você também está preso?
» – Não exatamente. O meu eu-corpo já se dissipou há algum tempo. Ainda assim, eu continuo aqui. Por que será?
» Pausa.
» – Por que está me contando isso, Tesárkis?
» – E por que não? Você está na mesma situação que eu estava, há algum tempo. Não sei quanto. O tempo aqui tem um modus operandi estranho. De igual forma, logo você terminará como eu.
» Silêncio final.
» – Você deve ter se sentido solitário aqui, Tesárkis...
» – No sentido tradicional, até que não. Mas agradeço a sua preocupação, menina.
Airyn voltou a ficar sozinha no não-lugar. Voltou? A conversa, que não tivera ordem, início ou fim, talvez não tivesse passado de um delírio seu. Afinal, não vira ninguém, e também não lembrava de voz alguma. Era mesmo possível que tivesse imaginado isso tudo?
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