Capítulo 16 | O filho pródigo da Fenbram
Três anos antes.
Diante do portão da mansão dos Tulling, Kinsey foi recebido por um lacaio de ar desconfiado, que o olhou de cima a baixo. Não tinha a mínima ideia do que o homem poderia estar pensando, naquele momento. Às suas costas, as caldeiras do bizarro protótipo de veículo tossiam como um velho operário doente.
A desconfiança do lacaio pareceu se esvair quando seus olhos se fixaram no Brasão do Estigma, estampado no écoht do jovem.
– De modo que é isso – disse o sr. G, com um sorriso curto, dando um tapinha em seu ombro. – Que passe uma boa tarde em companhia do sr. Tulling filho, jovem Excelência.
E entrou no veículo, que voltou meio rodando, meio escorregando, pelo caminho por onde viera. O lacaio abriu o portão apenas o suficiente para que Kinsey passasse, e logo depois o fechou.
Kinsey o seguiu através de um caminho de pedra-fabh – a variante mais cara e esbranquiçada da pedra-cali –, que cruzava um pátio todo pavimentado com granito. E nada mais. Aquilo foi uma surpresa. Supusera que as inclinações botânicas do Arquiduque talvez não fossem compartilhadas pelo restante dos sujeitos da elite, mas havia sido apenas um pensamento sem relevância. Agora via que estava certo. Não havia árvore, arbusto, flor ou erva nenhuma à vista, do portão até a entrada da mansão. Apenas lampiões, estátuas, pedra-fabh e granito.
Depois de viver um ano num oásis vegetal em plena Kalori, aquilo lhe pareceu triste.
Todos esses devaneios desapareceram quando chegaram à porta de entrada do casarão. Quando duas criadas abriram-lhe a porta, e o lacaio deu meia volta. Quando viu Woffrey sem camisa, com ar sorridente.
– Como vai, Kin?
– Desculpe, acho que esqueci algo em cas... – Kinsey ia dizendo, mas o outro já havia passado um braço ao redor dos seus ombros e o puxado para dentro do vestíbulo.
– Obrigado por vir. De verdade. Sendo sincero, até o final eu tinha minhas dúvidas.
Mas Kinsey não estava em posição de retribuir esse agradecimento. Ver as duas criadas ajoelharem-se quase aos seus pés estava deixando-o desconfortável. No Palácio da Coroa, mesmo o criado de cargo mais baixo nunca era tratado de forma tão humilhante.
– Podem tirar as botas dele, senhoritas. Não se deve sujar muito o piso, não é mesmo? – enunciou Woffrey, e por algum motivo isso tranquilizou o jovem. No instante seguinte, lembrou de que Woffrey ainda estava sem camisa.
– Deixem minha camisa no lugar, por favor!
– Sim, as calças podem ficar para depois. Por hora, apenas as botas.
Antes que pudesse recuar, as duas já haviam tirado as suas botas, e meias também. Haviam se curvado em reverência, e desaparecido com as suas botas num corredor estreito à esquerda do vestíbulo. Não restavam mais vestígios da presença delas até um momento atrás.
Kinsey ficou estático, sentindo o frio do mármore chegando através dos seus pés. Olhando para o vazio.
– Vamos, Kin – disse Woffrey, de repente, com a animação de um trombadinha ao ver um bolso exposto. – Irei te mostrar a minha humilde casa.
Não haviam muitos criados na mansão dos Tulling. Kinsey não sabia se era pelo efeito de compará-la ao Palácio (que era, obviamente, maior), mas não viam-se mais do que alguns poucos nos corredores, passagens e salas. O primeiro havia sido um sujeito baixo, que meticulosamente limpava a sujeira nas roupas de uma estátua com um pano, e que parou seu trabalho e fez uma reverência ao passarem por ele. A segunda, uma camareira que transportava um caixote de garrafas de vinho sob o braço. Entre os dois, fora um intervalo de alguns minutos de caminhada.
Quando finalmente expressou essa dúvida em voz alta, Woffrey disse:
– O velhote, meu pai, diz que os que há são o suficiente. Embora eu discorde, ainda não sou eu que gerencio os fundos da família, sabe? Uma vez adquiridas, máquinas são mais fáceis de lidar (e menos dispendiosas) do que criados humanos. É o que ele diz. De modo que, sim, você está certo ao afirmar que este lugar passa a impressão de estar meio vazio.
– Máquinas? – ponderou Kinsey. – Mas eu não vi nenhuma no caminho até aqui...
– Ah, elas estão por aí – Woffrey fez um gesto de desimportância com as mãos. – Dispositivos, escondidos nas paredes, ou coisa do tipo. Eu não sei. Mecanoengenharia não é o meu forte, para falar a verdade – Quase no mesmo instante, Kinsey se tornou consciente do ruído velado de engrenagens e pistões, permeando os limites da sua audição. Dos dutos, canais e tubos acústicos que se entremeavam e se separavam, seguindo pelo teto do corredor; das saídas de controle que surgiam junto à entrada de cada recinto. Considerando os anos que tinha trabalhado como aprendiz na oficina de um mecanoengenheiro, era estranho que não tivesse percebido.
Mais à frente no corredor, Woffrey indicou que entrassem por uma porta. Era um recinto grande, à meia-luz, onde estavam alinhadas dezenas de expositores dos mais diversos tamanhos. Pequenos, como o tamanho da sua mão aberta, largos como um caixão, ou altos, três, quatro vezes a sua altura. Os vidros, banhados por luzes de pequenas lâmpadas amarelas de aquacristal, reluziam como cristais numa caverna escura. O lugar todo guardava o cheiro de verniz, formol e poeira. Como um museu privado. Não era tão ruim. Considerando o que estivera esperando desse pervertido, não era tão ruim.
Kinsey encontrou-se observando um elmo preto e vermelho dentro de um expositor. A forma lembrava bastante a cabeça de um focinhoescavador.
– O que é isso? – perguntou.
– Um elmo usado pelos Hurz Pat'yun em combate. Deve ter uns mil e duzentos anos.
– Os nativos da Ilha dos Escavadores?
– Exatamente – Woffrey coçou o queixo com o polegar. – Você gosta de história, arqueologia, Kin?
Kinsey se permitiu pensar um pouco.
– Não muito – admitiu. Não desgostava dessas disciplinas, mas também não podia dizer que tivesse apreço por elas. Como ocorria com quase tudo o que vinha tendo que aprender, no último ano.
– História é uma das poucas coisas que gosto, nesse campo acadêmico – continuou o outro, como se não o tivesse ouvido. – O velhote dizia que não fazia diferença se eu fosse ou não à escola (e não fazia mesmo), mas eu continuava indo porque gostava dessa disciplina. Imagino que só por isso. O resto era descartável. Até os amigos, ali, eram descartáveis – Pareceu refletir durante um breve instante. – Como foi a escola para você?
– Eu não fui à escola – disse o rapaz, encolhendo de ombros. Nem eu, nem nenhuma outra criança dos baixos, pensou.
– Entendo – murmurou o anfitrião, assentindo. Logo depois, Kinsey o viu se aproximar de outro expositor. – E isso aqui, sabe o que é?
– Para ser sincero, não faço a mínima ideia.
– É um bacamarte – explicou Woffrey, fazendo um gesto como se atirasse no ar. – O bacamarte usado por Olfren Heasey durante o Primeiro Cerco a Wextainham. Dizem que, depois do aparente sucesso dessa primeira investida, Olfren ficou obcecado com essa coisa, imaginando que fosse uma espécie de amuleto. Não se separava dele nem quando ia para a cama com mulheres.
Embora isso não tenha impedido que fosse assassinado enquanto dormia, assentiu Kinsey, lembrando do evento relatado nas suas lições. No meio tempo, Woffrey havia passado para o próximo.
– Esta aqui você talvez não saiba o que é – disse o anfitrião, batendo de leve no vidro. No interior, via-se uma pedra inerte em pleno ar.
– Não é uma pedra flutuante?
– Sim, de fato é – Woffrey olhou para Kinsey com uma sobrancelha erguida. – Não vê nada de estranho numa pedra flutuante?
– Talvez, eu acho... Não sei.
– Se uma pedra começasse a voar sozinha, diante dos seus olhos, não acharia estranho?
– Sim, eu acho que sim. Tem razão – Kinsey olhou para a pedra, que não se movia. – Mas ela não está voando. Está parada. No ar.
– Ela está voando – disse o outro, e cruzou os braços. – Pode ser que esteja inerte, mas não muda o fato de que ela está flutuando vários centímetros acima do suporte do expositor. Se a chacoalhássemos, ela se moveria. Mas continuaria voando, sem cair – Fez uma pausa. – Essa é "A Pedra Voadora", uma anomalia essencial do terceiro tipo. E antes que você diga qualquer coisa, não fui quem deu a ela esse nome tão idiota.
Kinsey assentiu, dirigindo por breves instantes a atenção para aquela pedra (que, para todos os efeitos, era apenas uma pedra comum que voava). Mas logo se cansou dela. Nos outros expositores – e pareciam haver dezenas, centenas deles – haviam armas, máscaras, estátuas, retratos, pergaminhos e todo tipo de coisas antigas. As cores variavam entre o azul-cobalto ao vermelho-sangue; as texturas, do mineral mais granulado à madeira mais lisa. Uma característica única, ou todas de uma vez. Cada expositor parecia ter se agarrado a um objeto em específico e o separado da realidade, conservando-o. Afastado do tempo e das mudanças do mundo. Parecia quase uma espécie de santuário.
Enquanto andava, o jovem parou ao lado de uma espécie de concha amarronzada, vazia, iluminada de ângulos superiores. A fila de expositores parecia se estender até o infinito.
– Eu gosto deste lugar – ouviu a voz de Woffrey comentar, do seu lado. – Me faz lembrar da finitude da vida, e de como somos pequenos diante do grande esquema das coisas. Não importa o que façamos. Somos insignificantes.
Kinsey se virou para ele.
– Você fala como um apóstolo-pregador. Ou como o meu pai.
A expressão de Woffrey se iluminou.
– O Estigma também reflete sobre esses assuntos? Que curioso. Eu sempre achei que ele fosse um sujeito dos mais superficiais. Sempre jurei que ele era... Assim como o meu velho. Tudo o que o velhote pensa gravita em torno da Companhia. O resto, para ele, não existe.
– Não, Lowald vive falando sobre essas coisas filosóficas – reafirmou Kinsey. – Mas acho que não em público. Em público, ele age assim como você falou – E eu ainda não entendo o motivo disso, pensou.
– Faz sentido. Imagino que seja por isso que eu tive essa impressão.
Para ser sincero, Kinsey não sabia qual era o verdadeiro. O superficial, diplomático? O pensador? Não havia tido tempo de decifrar a verdade por trás de cada palavra, de cada expressão que se formava no rosto do Arquiduque. O que havia era apenas incógnita. Seria ele apenas um ingênuo ou um exímio mentiroso? O que ele escondia (porque era óbvio que ele escondia algo)? Afinal, não podia confiar totalmente em alguém que não revelava as suas intenções. Ao mesmo tempo, percebia que Lowald muito provavelmente não era tão ruim assim. A sua nova vida não era tão ruim assim.
O dilema. Kinsey, mais uma vez, caíra na armadilha de pensar no dilema. Agradeceu mentalmente quando o outro, de repente, comentou:
– De qualquer forma, acho que já é o bastante de turismo arqueológico por hoje. Você não acha? Podemos voltar para cá em outro momento.
Kinsey concordou.
– Há outro lugar que quero te mostrar – ouviu-o dizer.
Enquanto deixavam o recinto do museu privado, o jovem pensou que talvez tivesse julgado mal esse sujeito. Certo, o que acontecera no baile não podia ser considerado de forma alguma respeitável, mas talvez fosse um fato isolado. Havia imaginado Woffrey Tulling como um pervertido – impressão que se fortalecera ao ser recebido por ele sem camisa –, mas a mansão Tulling talvez não fosse um antro de depravação como havia fantasiado. Afinal, não vira nada de tão incomum até ali. E acabavam de deixar um museu.
Essa impressão positiva terminou por se dissipar ao adentrarem uma luxuosa sala de visitas. De todos os lugares pelos quais haviam passado, esse certamente era o menos adequado para receber visitas.
– Seja bem-vindo ao meu espaço particular, Kin – anunciou Woffrey com um gesto teatral, sorrindo.
Woffrey era certamente um depravado.
***
– Kin, talvez eu esteja irritando você falando isso de novo – disse Cinmayn, a voz suave –, mas não precisa ficar tenso assim. Está parecendo um cavalheiro com medo de que a esposa descubra que está fazendo algo de errado. Mas você não está fazendo nada de errado. Eu não mordo! – As palavras dela vinham intercaladas com a massagem que Kinsey a sentia realizar nos seus ombros. Já fazia um tempo desde que desistira de tentar convencê-la de que estava bem, de que não precisava deitar nas coxas dela nem receber massagem nenhuma. Mas aquela garota, a quem acabava de ser apresentado, parecia alguém difícil de convencer. No fim, fechara os olhos. Podia fingir que não estava num recinto cheio de pessoas nuas. Talvez estivesse em casa, no Palácio, recebendo massagens de alguma das velhas criadas, que o teriam achado excessivamente preocupado com as lições diárias. Uma inocente massagem; nada demais.
– Bom, se quiser, ela pode mordê-lo – ouviu Rineal sugerir. – Se quiser, é claro. Às vezes, Wof me pede que eu o morda devagarzinho...
– É excitante, não posso negar – concordou Woffrey. – Mas não pode ser muito forte, de fato.
Kinsey não disse nada. Acima dos passos abafados no tapete, do farfalhar das cortinas da janela aberta e dos murmúrios de uma pequena multidão, ouvia uma suave valsa tocando num volume mínimo. Uma caixa de música estivera tocando desde que havia chegado. Não a tinha visto – ela podia estar em qualquer lugar entre as tantas estantes que vira antes, de relance –, mas o som era evidente.
No meio tempo, alguém havia encostado uma taça de cristal aos seus lábios. O cheiro de licor de leanberry invadiu o seu nariz.
– Beba um golezinho, Kin – disse a voz de uma outra garota, de quem não tivera tempo de memorizar o nome. – Pela nossa amizade.
– Kin está muito ocupado descansado no meu colo – retrucou Cinmayn. – Não o incomode, Herriett!
– Acalmem-se, meninas – Woffrey ria. – Há suficiente de Kinsey para todas.
Os lábios de Kinsey se abriram minimamente para beber o licor, sem que enunciassem frase alguma.
– O que está achando do meu santuário? – perguntou Woffrey, e o jovem soube que a pergunta era para ele. – Antes, este lugar costumava ser uma entediante sala de visitas.
Kinsey abriu os olhos, encarando o herdeiro dos Tulling. Teve vontade de dizer: você me enganou, seu desgraçado. Tive a bondade de acreditar que tinha julgado você mal, mas essa bondade me traiu. O que quer que eu diga sobre esse bordel particular? Quero ir embora daqui de uma vez. Na verdade, esteve a ponto de dizê-lo. Lowald teria dito. Ao invés disso, murmurou:
– É um espaço... bem-aproveitado.
Rineal, que estava ao lado de Woffrey, abriu um largo sorriso.
– Foi ela que o organizou – disse o outro, apontando para a moça ao seu lado. – Como eu disse, esta costumava ser uma sala entediante de visitas. Um dia, não sei o que deu no velhote meu pai, mas ele disse que iria jogar fora todos os móveis daqui. Que eu fizesse o que quisesse com ele; não faria diferença. Comprei o mobiliário moderno a pedido dela, que fez todo o desenho e processo de organização. Rin daria uma ótima decoradora, não daria?
– Que exagero, Wof – Rineal corou. – Só fiz uma ou outra coisa, nada de tão importante assim.
– Não, eu não estou exagerando.
Kinsey desviou os olhos para observar o ambiente ao redor; decisão acertada, porque coincidiu com o momento em que Woffrey se aproximava de Rineal para beijar os ombros dela e apalpar seus seios. Entre sofás baixos repletos de cortesãs que conversavam, tapetes trançados de Bak, estátuas transparentes, luminárias vermelhas ou azuis com quebra-luzes arredondados, não podia dizer que entendia qualquer coisa de decoração.
O único que poderia dizer a esse respeito é que cada um desses itens devia valer uma pequena fortuna.
Enquanto tentava não observar as pessoas fazendo coisas obscenas em toda parte (preferia pensar que haviam acabado de começar), o jovem reparou em alguém que não tinha notado até então. Uma mulher, na casa dos trinta anos. Estava sentada no chão, junto à parede, ao lado da estátua transparente de um bicho alado. Lia um livro. A imagem dela – as tranças bem-arrumadas do cabelo loiro, a concentração evidente no olhar, e acima de tudo, o fato de estar vestida – destoava completamente do lugar onde se encontrava.
Um pouco curioso, Kinsey se levantou e foi até ela.
– O que está lendo? – perguntou.
Ela o olhou como um animal desconfiado.
– Relatos sobre um novo mundo, para Sua Majestade.
– Sílatis, o Viajante? – perguntou o jovem. Aquele, se lembrava bem, era o título de um dos vários livros que os seus tutores o haviam feito ler. Não fora a leitura mais fascinante, mas também não havia sido maçante. Outra da escola clássica partyena. Em linhas gerais, conseguia lembrar do que se tratava. O próprio título servia como meio de lembrá-lo.
– Sim – disse ela, assentindo lentamente. – Até que você não é tão iletrado afinal, garoto.
Kinsey ficou sem palavras, desconcertado, imaginando qual motivo essa mulher poderia ter tido para ter essa impressão sua, se nem ao menos se conheciam. Mesmo assim, sentou ao lado dela.
– Nessa parte, ele descreve o avistamento do que os partyenos chamam de "homens vermelhos" – sussurrou o jovem, falando mais consigo do que com ela. – Talvez "homens alaranjados" tivesse sido uma nomeação mais acertada, dizem os autores que comentaram a respeito dessa obra. Meu tutor diz que não faz diferença. Que o mais importante foi a boa relação que estabeleceram através desse primeiro contato. Porque senão a Ilha não teria prosperado tanto – Lembrava do seu tutor comentando que o evento narrado nesse episódio era um dos divisores de águas para a história antiga. O contato primitivo entre os énil de Sílatis e os saik da tribo nômade na costa. A Ilha dos Escavadores não teria tido a importância que teve se esse primeiro contato tivesse terminado de outra forma.
A mulher virou uma página, sem parecer lhe dar ouvidos. O jovem ainda estava pensando sobre as possibilidades.
– Mas não sei... O que você acha a esse respeito?
– Eu não acho nada – disse ela, seca. – Sequer terminei de ler o livro.
Kinsey corou, envergonhado.
– É mesmo – murmurou. – Me desculpe.
A mulher assentiu, sem parecer dar muita importância ao fato. Continuou lendo. Pouco depois, fechou o livro de repente.
– Ouço meu primo comentar a seu respeito já há algum tempo – A voz dela não carregava nenhum sentimento negativo, mas também nenhum positivo. – Ele dizia "Ah, vi um rosto novo no baile da noite anterior". Ou "Parece um sujeito interessante, mas um pouco deslocado, no meio de todos". No início, pensei que fosse mais um dos casos dele. Meu primo também gosta de rapazes, ainda que em raras ocasiões.
– Seu primo? – perguntou Kinsey, ignorando o último comentário dela.
– O círculo das famílias do Conselho é bem restrito. Quase não há entrada de elementos externos. Tulling, Galbret... É como se todos fôssemos parte de uma grande família. Imagino que entenda o que eu quero dizer – Lisette ficou silenciosa durante um momento. – Mas o fato é que, de tanto ouvi-lo falar a seu respeito, fiquei um tanto curiosa.
» Nós também temos nosso meio de descobrir as verdades. E admito... Descobrir a sua origem foi um pouco chocante.
» O Arquiduque não é casado, e nem tem filhos. Não tem esposa ou amantes. Tem sido assim desde sempre; desde que assumiu a liderança da cidade, há quase quarenta anos. E não foi por falta de oportunidades: dentre as quatro famílias do Conselho, haviam muitas jovens da idade dele. Não sei se você sabe, mas ele sempre recusou os pedidos de noivado, por algum motivo que ainda falhamos em compreender. De modo que era esperado que não houvessem herdeiros. A questão é que, há um ano, surgiu você.
» Quem imaginaria que o filho de um sindicalista se tornaria o herdeiro do Arquiduque, não é, sr. Kinsey Fowlgrenn? Logo o de um dos subversivos presos em Fragatas. Ao que parece, a sorte ainda existe nesse mundo. Ainda assim, nada indica haver qualquer motivo subjacente na escolha do Arquiduque. Nada, apenas nada. Por que um aprendiz pobre de mecanoengenheiro? Talvez tenha sido apenas isso: o acaso.
» De qualquer forma, foi inusual. Já se esperava que, velho como está, o sr. Grantham morresse sem deixar herdeiros...
Kinsey não conseguia determinar desde quando estava apertando os punhos. Já não conseguia ouvir sobre o que ela murmurava. Não queria ouvir. Não conseguiria olhar para o rosto dela, sabendo que poderia encontrar uma risada irônica enquanto a ouvia falar sobre coisas que não desejava ouvir – ainda que fosse a verdade. Ou, pior, ela poderia estar dizendo essas verdades sem expressão nenhuma no rosto.
Sem deixá-la terminar, Kinsey se levantou e voltou para o tapete onde Cinmayn o esperava.
– Me desculpe pela minha prima – Woffrey coçava a cabeça, parecendo desconfortável. – Lisette sempre falou o que bem entendia, sem qualquer restrição. É por isso que terminou onde está agora. Não posso dizer que foi totalmente inesperado.
– Terminou aonde? Aqui, na sua sala?
– Literal e figurativamente, sim – disse o herdeiro dos Tulling, abrindo um sorriso. – Lisette nunca foi do tipo que se curva à vontade dos outros, ou faz o que se espera dela. Uma virtude, eu diria, mas o tio Pale obviamente não pensa como eu. Então aí está ela, tal como você a vê: deixada de lado pelos Galbret. "Deserdada" é outro nome que se poderia dar a isso; você escolhe. Oficialmente, ela não é mais uma Galbret.
Kinsey franziu o cenho. Sentia os dedos de Cinmayn alisando gentilmente os seus cabelos.
– Ela... não mentiu – sussurrou, amargurado. – Eu sou uma farsa. Ainda não sei o motivo daquele homem ter me escolhido, mas a verdade é que eu não deveria estar aqui. Eu não deveria ser o sucessor de Lowald. Sou o filho de um maldito sindicalista e de uma prostituta, e nada além disso...
A expressão de Woffrey havia ficado sombria.
– Lisette falou isso de você? – questionou.
– Não. Mas é isso que sou.
Afinal, por que estava discutindo isso com alguém que mal conhecia? Kinsey não sabia dizer. Entre uma e outra tragada no cachimbo com raiz-de-ekghiraal, tentara esquecer as palavras dessa mulher que ainda lia o Relatos sobre um novo mundo junto à parede. Não conseguira. Os beijos e subsequentes carícias de Cinmayn também não haviam servido de muita coisa. De modo que a sua primeira vez terminara sendo afetada pelas palavras de outro alguém que mal conhecia.
O jovem respirou fundo, sentindo a fumaça abrir espaço no seu peito. As grandes janelas do quarto revelavam um mundo muito maior do que qualquer um era capaz de imaginar. Mas estava sozinho nesse mundo. Não conseguia se comunicar com ninguém, e a inversa era também verdadeira. Porque... porque a podridão reinava nesse mundo. O egoísmo. As suas lembranças de infância estavam repletas de imagens de um pai bêbado e agressivo. Repletas de hematomas, cortes, inchaços e palavras desnecessariamente duras. As palavras sempre haviam sido as que mais machucavam.
– Você é um idiotinha – dizia Daxcett. – Um ervinha ruim inútil que não consegue fazer nada por conta própria. Pare de ficar me olhando assim! Vai chorar, agora?
Mais tarde, o lugar de Daxcett fora substituído pelo chefe da oficina, que resmungava:
– O que acha que sou, o seu pai? Eu não tenho nada a ver com os seus problemas, pirralho. Faça o seu trabalho e eu continuarei deixando você viver aqui. Mas não pense que não o demitirei, se me causar problemas!
De fato, todos eram uns egoístas, que mal se importavam se o vizinho vivia ou morria. Esse era o mundo.
Kinsey tinha noção de ter pensado dessa forma até pouco tempo atrás. Até enxergar-se espelhado nessa verdade. Se todos eram egoístas, ele próprio também era. Não havia ficado, de certa forma, aliviado ao ter que deixar aquela vida para trás? Ao receber a notícia de que Daxcett havia sido preso? Pelo menos em um aspecto, o pai biológico estava certo: Kinsey não fazia nada por conta própria, porque não conseguia confiar em si mesmo. Tinha que sempre deixar que alguém o conduzisse.
O que era um problema, considerando que dificilmente encontraria alguém que não fosse podre como os outros.
– A verdade é que apenas você importa para si mesmo – O comentário de Woffrey tirou o jovem dos seus devaneios. – Pode-se tentar ver a questão de muitos ângulos, mas o fato permanece inalterado.
– O que quer dizer? – Kinsey voltou-se para olhá-lo, curioso.
– O que quero dizer – Woffrey retribuiu o olhar – é que você não é nenhuma farsa – Suspirou. – Muitos, talvez a maioria das pessoas, desperdiçam a vida vivendo de uma forma em que não acreditam. Fazendo algo que não querem, comportando-se de uma forma que não contrarie as expectativas dos outros. Da família, dos amigos, da sociedade. E fazem isso porque acreditam que não há outra forma de viver, que não seja essa. Mas são apenas grilhões. Estão presos num modelo imposto a eles por gerações, e que nunca ninguém pensa em mudar. Nada nunca muda – Woffrey fez uma pausa, como se dizer todas aquelas palavras o deixasse amargurado. – Por que você acha que é uma farsa, Kin?
Kinsey franziu os lábios. Rineal, Cinmayn, e as garotas à volta, olhavam para ele. De repente, o ambiente ficara silencioso.
– Eu não... quero falar sobre isso.
– Vamos lá. Abra-se comigo, meu amigo. Estamos sozinhos, não precisa se preocupar. Por que você acha que é uma farsa?
– Sozinhos, nós e mais trinta garotas – O rapaz negou com a cabeça. – Eu não estou nem um pouco a fim de falar sobre isso.
– A boca delas será como um túmulo, eu prometo. Por que você acha que é uma farsa?
– Você está drogado. Mal deve estar conseguindo raciocinar com clareza. Esqueça essa bobagem.
– Talvez eu esteja, mas não é bobagem – Woffrey sorriu. – Você está na minha casa, Kin. No meu Espaço do Amor, no meu tapete, com as minhas garotas. Neste exato momento, eu sou animal em seu próprio território. Não poderia estar mais confortável mesmo que quisesse. De modo que eu posso continuar repetindo a pergunta indefinidamente, e você sabe disso. E então? Quer que eu repita a pergunta?
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