Capítulo 10 | Questões antigas e desfechos (?)
Últimos dias do Hai Suff.
Nímie voltou a si ao ouvir um estalar de dedos bem próximo aos seus ouvidos. Olhou em volta, para a sra. Vinders, Firth e a diretora Lugh, que a observavam com preocupação.
– Ela tem estado assim o tempo todo, nos últimos dias – constatou a mentora, num tom compreensivo. – Desde os dias posteriores ao fim do Festival da Cascata, se me lembro bem. Algo aconteceu por aqui?
A diretora Lugh, que havia parado de assinar os papéis dos formulários ocasionais do aprendizado da garota, desviou os olhos para Firth.
– Nada que tenha chegado ao meu conhecimento – A jovem monitora encarou as duas senhoras. – Mas não é como se ela – apontou para Nímie – ou Airyn me contem qualquer coisa.
– Airyn? Ah, a colega de quarto...
Nímie suspirou, sentada junto à sra. Vinders numa das cadeiras de frente à mesa da diretora. Aquele cômodo – o antes infame escritório do diretor Happer – havia mudado muito desde que Ceanna Lugh assumira o cargo nesse orfanato de Estrado. Antes, costumavam haver vasos caros de cerâmica, estatuetas de bronze, retratos do próprio diretor e gravuras indecentes lotando as paredes. Costumava feder a cigarrilha. Agora, tudo fora substituído por duas plantas ornamentais de nomes esquisitos, um carpete vermelho-escuro e apenas um retrato na parede: o do Estigma.
O único que não mudara era aquela saída dos tubos acústicos, por onde se ouviam fragmentos de tudo que ocorria nos corredores das alas do orfanato. As memórias dos castigos desmedidos haviam ficado para trás. Para a garota, apesar disso, nada havia ficado para trás. Vez ou outra, se pegava apreensiva com a voz que às vezes reverberava pelo tubo, chamando-a para ir até a sala. Apreensiva quando os monitores vinham em sua direção, de repente.
Felizmente, esses momentos estavam ficando cada vez mais raros. Toda a questão do aprendizado, que envolvia seu afastamento quase diário do orfanato e preocupações de outra ordem, vinha sendo mais importante para ela, nos últimos tempos. Lembrava de ter comentado alguma vez sobre isso com os apóstolos-pregadores.
– Aprendiz? – zombara um Amarelo. – De quê, estivador? De mecanoengenheiro? Você não é habilidosa, nem tem músculos suficientes para carregar um saco de folhas de seivaroxa, menininha.
Mas Viesling, de um jeito sempre incomum, a defendera.
– Ela pode não ser isso, ou ser aquilo... mas pode ser alguma coisa! O Kase me disse que você sabe ler, não é?
– Eu sei ler. O sr. Hammson me ensinou!
– Você pode ser uma oradora, como Níd. Ou escrevente... Bem, tudo depende dos Caminhos, eu acho. Você devia consultar o Kase, pequena Nímie. – Viesling fizera uma pausa. – Quer chá?
Isso não pode terminar assim..., pensou Nímie, lembrando de todas as vezes que havia visitado a casa anelar desde aquele dia, só para constatar que Vies não retornara ao normal. Às vezes, os braços dele apareciam todos arranhados; outras vezes, um ou dois hematomas grandes. "Ou ele está se machucando sozinho, ou o corpo está dando sinais de que não vai suportar esse estado por muito mais tempo", havia dito Kasern. Ainda que não soubessem como tirar o chissei de dentro dele, se é que havia como...
Firth estalou, mais uma vez, os dedos próximo aos ouvidos da garota.
– Viram? – repetiu a sra. Vinders. – Será que é a idade? Gostaria de saber no que ela anda pensando...
Nímie bufou.
– No que está pensando, menina? – perguntou a diretora, o olhar curioso por trás das grossas lentes.
– Em nada. Me deixem em paz.
As três se entreolharam, mas não disseram nada. Nímie fechou os olhos, imaginando-se na escuridão confortável do seu quarto, à noite. Não muito depois, ouviu recomeçar o som da pena da diretora Lugh escrevendo sobre o papel.
– Mas, diga-me, a senhora – a voz da diretora tinha um tom distraído, embora pontual. – Como andam as ruas? Ouvi que tem crescido o número de incidentes nas regiões mais perto dos guetos. Tem visto dessas coisas?
– Não muito, não muito – respondeu a sra. Vinders, com delicadeza. – Nós, eu e a garota, costumamos evitar as zonas muito baixas; o mais próximo que chegamos, na ronda diária, é à Praça dos Arcos. Pela proteção de nosso Estigma, felizmente, até agora, não aconteceu nada conosco.
Nímie imaginou-se deitada num campo de talonuvens.
– Ainda assim, imagino o perigo potencial que correm – insistiu a diretora do orfanato. – Será que a senhora não consideraria "subir" um pouco mais em seu trajeto? Digo, por aqui nas redondezas já temos um ou dois agentes da Guarda, de vez em quando.
Passaram-se alguns instantes de silêncio.
– Podemos considerar essa proposta, sim – disse a sra. Vinders, e a garota sentiu a mão dela tocar o seu ombro.
– Eu agradeço. Sabe como são as coisas... O bem-estar das crianças sempre nos preocupa.
Nímie sentiu vontade de sorrir com ironia. Mas não sorriu. Não parecia totalmente certo: não estava mais diante do diretor Happer, que mentia descaradamente diante dos emissários do governo para continuar recebendo os fundos, enquanto fazia todo o contrário quando iam embora. Muita coisa havia de fato mudado. Ainda assim...
Ao abrir os olhos, se deparou com as três mulheres ainda observando-a. Por trás dos óculos escuros, via-as em tons quase cinzentos.
– Bem – comentou a diretora Lugh, com os olhos fixos em sua direção –, tenham muito cuidado, por favor.
***
– Me passe o bisturi, querida – pediu a doutora, compenetrada sobre a bancada de cirurgia.
Airyn correu de mesa em mesa, procurando o bisturi entre as bandejas com álcool parcialmente enferrujadas. Seus dedos mergulharam no álcool passando por tesouras, alicates, pinças e agulhas. E o bisturi. Ah... o bisturi. O magnífico bisturi, que corta os tecidos e a carne como o Arco do Mundo corta o céu... Tinha lido uma comparação como essa, numa das últimas cartas que havia recebido do seu remetente misterioso. Ou melhor, Nímie tinha lido para ela. Lembrava da careta que ela tinha feito antes de dizer que era uma metáfora estúpida.
A doutora tomou o bisturi das suas mãos, indicando que a acompanhasse de volta à bancada de cirurgia.
– Consegue perceber, garota? – perguntou a mulher de vestes claras, em tom explicativo. – Isto aqui está gangrenado – Apontou um lugar no músculo da perna do jovem paciente desacordado. – Isto aqui também. Está tudo...
– ... ah, gangrenado?
– Condenado! Pelos abismos – o bisturi tiniu quando a doutora o largou de volta numa bandeja –, não há forma de recuperar nada. Vamos ter que serrar.
Airyn correu para trazer a serra para a sua mentora. Seus passos ressoavam através da madeira do cômodo, um cubículo que era em sua totalidade uma clínica clandestina.
– Ainda bem que o cavalheiro não está acordado. Ele provavelmente não ia gostar de ver a perna sendo serrada. Bem... o que podemos fazer? Vou ter que correr contra o tempo para transformar aquele toco de madeira numa prótese minimamente decente.
– O que será que aconteceu... Foi a mordida de um peludinho? – perguntou a garota, estremecendo.
– Não é impossível, mas... Não. Seria ridículo! – zombou a doutora, rindo. – Mais provável seria um quatropinças ter lambido a perna dele na praia, mas isso também é difícil de acontecer. Deve ser uma anomalia do organismo dele.
Embora já tivesse aprendido que a doutora se referia às enfermidades e doenças como anomalias, a palavra trouxe à tona as memórias recentes de Airyn. Anomalia. Tinha ouvido comentários sobre alguma tal anomalia essencial dos apóstolos-pregadores, através dos sonhos de Nímie das últimas semanas. Algo ruim... Era tudo o que sabia sobre essa coisa, e não precisava saber mais. Essa tal anomalia vinha causando preocupações na mente da sua amiga. Logo, era ruim.
– Anomalia essenc... Posso voltar mais cedo hoje, senhora? – perguntou a garota, pensando em que a amiga ficaria sozinha, se não estivesse com ela. Nímie, embora não dissesse nada, era do tipo que se deixava levar pelos pensamentos tristes quando parava para ouvi-los. A solução para isso era nunca deixar que ela tivesse tempo para isso. Airyn não se importava se a outra achasse que a estava incomodando. Desde que conseguisse cumprir seu objetivo...
A mulher de vestes claras e cabelos com leve tom alaranjado sorriu antes de dizer:
– É claro... que não. Quem vai me ajudar a lixar aquele toco de madeira se não for você, querida?
Naquela tarde, ao terminar de comprar a farinha, a massa de quatropinças e as especiarias para os próximos dias, Nímie foi dispensada pela mentora. "Amanhã de manhã assaremos as empadas", disse a sra. Vinders. Sem ter muito o que fazer, a garota havia ido parar na conhecida casa anelar de Estrado, à procura de Kasern. Queria perguntar algo a ele.
– O Kase não está aqui – informara Garbyn, confuso. – Ele sumiu desde aquele dia que você o trouxe.
Os outros a haviam convidado para ficar jogando Casco e Canhão com eles, mas recusara. Preferia voltar para casa (tanto quanto podia chamar o quarto no orfanato de "casa"). Ultimamente, tinha a impressão de estar sempre querendo ir para casa.
O orfanato estava quieto: as crianças estariam todas no improvisado auditório, sendo obrigadas a prestar atenção nas lições que a própria diretora Lugh ministrava. Pelos corredores, encontrou um ou dois monitores, que a cumprimentaram. No terceiro andar, o seu quarto ainda estava vazio. Sem tirar o vestido, deitou na cama, pensativa.
O Hai Suff estava para terminar. Logo seria Hai Flamm, onde iria completar oito meses do aprendizado. Depois, na primeira metade do Dah Geri, seria o Declínio... Talvez devesse começar a pensar no que faria depois disso. Não gostava de ver Firth insistindo nisso sempre que tinha a chance, mas a monitora tinha razão quando dizia que as coisas mudariam para ela quando fizesse dezesseis, e que devia pensar nessa mudança o quanto antes. Dezesseis anos... A garota não conseguia evitar de pensar que havia sido uma vida desperdiçada. Nunca houvera nada; todas as lembranças boas que um dia havia tido, agora surgiam como imagens borradas num espelho. Irreais, sonhos distantes. Talvez os dezesseis anos fossem uma oportunidade de deixar tudo para trás, ou talvez não...
Com uma ideia repentina, Nímie sentou à beira da cama. Tirou os sapatos e as longas meias listradas. Olhou em volta. Viu muita coisa fora do seu lugar. Que Airyn fosse a personificação da bagunça, era evidente – seja pelos pentes de madeira jogados em qualquer parte, seja pelas meias e calcinhas ocupando todo o cabide. Mas, admitia, nos últimos tempos vinha cedendo ela mesma a essa negligência. Tinha que corrigir isso.
Nímie começou pelas peças de roupa, espalhadas pelo carpete. Juntou todas e as largou na cesta. Arrumou (parcialmente) os lençóis. Foi recolhendo as moedas, selos de carta, cachimbos, parafusos e outras quinquilharias que Airyn achava na rua e trazia para casa. Guardou-as numa gaveta. Por fim, juntou todas as cartas de amor e as deixou sobre o colchão da outra.
Quando pensava no que ainda restava fazer, ouviu um assobio conhecido vindo da rua. Foi até a janela.
– Como vai, Ním? – cumprimentou Tinn, parado sob a sombra do outro lado da rua. Ao lado dele, Loiss comia um bolinho frito. – Estávamos de passagem. Você pode descer aqui?
– Não posso, não. Estou arrumando as coisas aqui no quarto.
Nímie viu um sorriso exageradamente largo surgir nos lábios de Tinn.
– Arrumando, você diz? E desde quando você arruma alguma coisa?
– Eu não ligo se você não acredita, seu desenraizado – respondeu a garota. – Estou arrumando o meu quarto, e não vou descer só porque você pediu.
– Bom... – Tinn pareceu considerar a questão por vários instantes. – Então vou subir aí.
Nímie suspirou. Mal teve tempo de soltar a trava da janela, quando o jovem ladrão – escalando alternadamente cornijas e tubulações – surgiu à sua frente. Abaixo, na rua, Loiss lambia os dedos, sem dar nenhum indício de que subiria com eles.
– Ele vai ficar aí mesmo? – perguntou a garota, voltando o olhar para o amigo que não via há algum tempo.
– Vai. Eu disse para ele patrulhar a área, enquanto estivermos ocupados – Tinn piscou para ela. – Aliás, onde está aquela menina?
Sem responder, Nímie deu uma volta pelo quarto, ainda digerindo o estranho incômodo que havia começado a sentir assim que Tinn entrou. Sentou de volta à beira do colchão, observando-o tirar o gorro que cobria os cabelos loiros dele, e perguntou:
– O que você veio fazer aqui mesmo?
Tinn fez a familiar expressão de vitimizado.
– Por que acha isso, Ním? – perguntou o jovem. – Eu não posso só ter vontade de visitar uma amiga querida?
– Não, não pode – Nímie esticou a palma da mão para ele. – Aqui. Vou esconder qualquer mercadoria roubada que você precisar esconder, mas só por uma semana. Pode me dar.
– Não há nenhuma mercadoria roubada – disse ele, rindo enquanto sentava ao seu lado. – Estou falando sério, acredite – O rosto dele, que há pouco havia começado a criar uma pequena barba (a garota imaginava como seria a sensação de ter aquilo no rosto), transmitia o bom-humor usual. Ou melhor dizendo, superficialmente transmitia o bom-humor usual. Para ela, estava claro que havia mais coisas.
– Não? Nenhuma? Então por que...
Foi surpreendida quando a cabeça dele pendeu sobre o seu ombro direito.
– Me deixe estar um pouco, certo? – a voz dele saiu cansada. – Eu não tenho tido... muito tempo para descansar. Venho pensando em muita coisa... Até mais do que normalmente deveria conseguir. Me desculpe se estou incomodando você.
– Não está, não – disse a garota. Com um repentino surto de ironia, acrescentou: – Se conseguir ignorar o cheiro do suor, pode descansar aí no meu ombro o quanto quiser.
– Obrigado, Ním – respondeu o jovem, e para a sua surpresa sem fazer as piadas habituais.
Nímie deixou o silêncio criar raízes, crescer à volta de ambos como a noite que já começava a escurecer o céu. Suspirou. A verdade é que não sabia muito bem como preencher esse silêncio, ou se deveria mesmo fazer isso. Hartin Lintoy era o seu amigo? Sim, era. O mesmo Hartin Lintoy havia, nos últimos anos, deixado a sua vida, passando de um amigo inseparável a uma presença quase ocasional? Isso também era verdade. Nada ajudava o fato de nunca ter gostado que ele passasse a liderar aquele bando de trombadinhas. Mas, tendo noção de que ele não dava o mínimo indício de querer assumir uma outra vida (mais honesta), não podia fazer nada.
Talvez, no fundo, até o invejasse. Tinn havia feito o que ela não conseguia: largar tudo e ir fazer o que bem entendesse. Não... A inveja provavelmente não se devia à força para abandonar tudo, mas ao fato dele ter algo que o havia levado a agir desse jeito. Ela, por sua vez, não tinha nada. Talvez, em determinada época da sua vida – na companhia do sr. e da sra. Hammson, ou na de Tinn e Nobaji –, tivesse tido; agora, não. Agora, era o vazio. A sensação de estar perdendo tudo o que antes prezava era avassaladora, embora silenciosa, e contra ela só conseguia se esconder dentro de si mesma. Era isso, ou não resistiria. Às vezes, explodia. Em outros momentos, tinha só vontade de apoiar a cabeça no ombro de um amigo, assim como Tinn estava fazendo com ela. Mas... que amigo?
Sentindo uma proximidade que não havia sentido em meses, Nímie ouviu-se perguntando:
– Me diz a verdade... O que você quis dizer com a carta, naquele dia? – E, ao perguntar isso, a garota lembrou da confusão que havia sido receber aquela carta e não saber o que fazer com ela. Muitas vezes, nos anos seguintes, tentara descobrir algum significado diferente daquilo que as palavras teimavam em dizer. Não tivera sucesso. Não conseguia entender o que Tinn poderia ter querido dizer naquilo; o que era "amor", e porque "não conseguia mais aguentar". Mentalmente havia entendido, é claro. Mas por que ela, e como deveria reagir... isso nunca conseguira descobrir.
– Tudo o que estava escrito nela.
– Eu não acredito! – Nímie se empertigou, contrariada. – Não tem como tudo ser verdade... – Porque se convencera, no fim das contas, que a carta não devia passar de uma pegadinha. Brett, Varil, ou algum dos outros meninos devia ter convencido ele a escrever a carta para enganá-la. Para rir dela, talvez, ou por outro motivo qualquer. Não fazia diferença. Durante um longo tempo, havia ficado chateada com ele por não dar maiores explicações.
Num tom mais magoado, Tinn disse:
– Não entendo como você pode achar que eu mentiria em algo sério assim. Eu... Bem, saiba que os meus sentimentos ainda não mudaram.
– Por que você está falando disso logo agora, desgraçado? – questionou a garota, sentindo com estupefação seus batimentos saindo do controle.
– Por quê? Foi você que perguntou, Ním.
Nímie respondeu com o silêncio forçado, ainda que, no seu interior, houvesse tudo menos silêncio. A perplexidade tinha um som: o dos batimentos cardíacos reverberando por todo o seu corpo. Estaria com febre? Estava quente demais. Ainda era Hai Suff, não era possível. Devia ser porque não tomara banho. Uma onda de calor... Ah, devia ter acreditado na sra. Vinders quando ela lhe disse para começar a usar um chapéu quando saíssem para vender!
Os batimentos aumentaram. Não eram mais batidas surdas, mas baques. Badaladas. Passos sobre a madeira. Pareciam muito mais reais do que deveriam ser.
– Rápido, se esconda! – ordenou a garota, levantando-se de súbito. Havia percebido que os ruídos eram, na verdade, muito reais. Alguém se aproximava pelo corredor.
– Esconder? Por quê? Eu não...
– Rápido, Tinn!
Tinn cedeu ao nervosismo de Nímie, dobrando-se para caber debaixo da cama. No instante seguinte, Nímie via surgir na porta a diretora Lugh. A senhora de óculos, ao contrário da garota, parecia tão despreocupada quanto poderia estar. Trazia um papel enrolado nas mãos.
– Ah... a sua colega de quarto ainda não chegou, menina? – perguntou a diretora, lançando um rápido olhar em volta. – Tem algo que preciso conversar com ela. Não é urgente, mas... – A garota percebeu, de relance, que ela segurava um selo entre os dedos. O selo de uma das cartas que vinham chegando a Airyn, provavelmente.
– Eu não vi ela, não – Nímie engoliu seco, segurando-se para não desviar os olhos em direção à cama. Seus batimentos ainda estavam acelerados, mas por outro motivo.
A diretora Lugh suspirou, dando meia volta.
– Por favor, avise-a para ir me ver quando ela chegar, certo? – Nímie viu o olhar dela se dirigir para a cama. – E também... Não precisa se esconder de mim, sr. Lintoy. Eu sei que não faria com essa menina algo que poderia prejudicá-la depois.
E, ao dizer isso, saiu andando como se nada tivesse acontecido, enquanto Nímie corava violentamente.
***
No caminho de volta para casa, Airyn viu um estranho – um garoto da idade dela, loiro e um pouco gordinho – parado na rua que passava pelo orfanato, observando a janela que era do seu quarto e de Nímie. Parou de assobiar uma melodia sobre membros amputados, e se aproximou dele sem pensar duas vezes.
– A janela... Você está olhando para a minha janela, não é? – perguntou.
O garoto pareceu assustado, mas se recuperou logo depois.
– Eu estou esperando o Tinn – respondeu ele.
– Esse nome me soa familiar, eu acho...
– Tinn é o nosso líder – O garoto bateu no peito, fazendo uma expressão que para ele devia parecer heróica. – Quando Redri foi preso, Tinn passou a liderar o bando. Agora estamos ganhando muito dinheiro, por isso tem gente que quer tomar o lugar dele. Mas ele é um bom líder.
Airyn ergueu os olhos até a janela do terceiro andar.
– E o quarto... Por que o seu líder está no meu quarto? – perguntou, depois de um tempo.
– Tinn está visitando a amiga dele, Nímie-não-sei-das-quantas. Ele me disse para ficar aqui vigiando, para caso apareça alguém suspeito. Você... não é suspeita, né?
Airyn estava para responder que não, não era suspeita (o suspeito na verdade era esse garoto), quando ouviu o ruído de um destrave. Ela e o garoto suspeito ergueram os olhos para a janela, justo a tempo de ver a figura de um jovem com colete cinza sair de lá, equilibrando-se entre tubulações, cornijas e tijolos enquanto descia. Reconheceu-o. Era o amigo bonito de Nímie, do dia do último Concílio Aberto.
– Ah... Você é aquele do outro dia! – constatou.
– Do outro... dia? – perguntou o jovem. – Loiss, quem é essa?
– Eu não sei. Ela só disse que o quarto de onde você saiu é dela.
Tinn a ficou encarando por um tempo, de sobrancelhas franzidas, antes de admitir:
– Me desculpe, menina. Eu não lembro o seu nome.
– Airyn Daeldhann – apresentou-se a garota.
– É um prazer conhecê-la, Airyn – respondeu Tinn, esticando a mão. – Eu sou Hartin Lintoy, mas pode me chamar só de Tinn. Esse é o Loiss – Apontou para o outro. – Obrigado por fazer sempre companhia a Nímie. Ela... Bem, ela não foi feita para ficar sozinha, embora às vezes se afaste por pura birra. Espero que a perdoe. E que não conte a ela o que eu disse, também.
Airyn apertou a mão de Tinn, pensando consigo mesma que ele não precisava lhe agradecer por algo que havia feito por vontade própria, e que faria de novo mil vezes. No alto da janela do terceiro andar, surgia pequeno o rosto de Nímie, que os observava intrigada.
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