Prólogo: Sob o Véu Ordálico
❝Bruxas nunca se assustam na floresta escura,
pois possuem a mais profunda certeza de que
as coisas mais aterrorizantes na floresta
são elas.❞
Terry Pratchett
{as notas com significados/referências, ficarão no comentário ao lado dos asteriscos}
Vila de Mystic Creek, Nova Inglaterra — 1687
O despertar repentino chegou com um aperto desconfortável no peito. No ventre, a pressão obrigou a mulher a se sentar no acolchoado com o máximo de cuidado, respirando com dificuldade. Em busca de ar fresco, afastou a cortina pesada de lã que envolvia o local de repouso e passou a mão trêmula sobre o pavio apagado da vela. Uma chama débil se acendeu, iluminando o rosto pálido, emoldurado pelas mechas grossas dos cabelos castanhos.
Um som insistente teimou em não a deixar em paz, como se ela ainda estivesse adormecida e sonhando com o ruído ao pé do ouvido. Foi levada a visitar lembranças que desejava enterrar no mais profundo esquecimento. Na memória, uma sinfonia atordoante, composta por grunhidos entrecortados e gorgolejantes, saídos dos lábios quase roxos da puritana içada no ar pela corda ao redor do pescoço. Ela se debateu frente ao inevitável abraço da morte.
A mão morna nas costas da mulher dispersou a recordação sombria, carregando sua mente de volta ao aposento. Não precisou se virar para visualizar o semblante de preocupação do marido na escuridão. O tormento que a afligia disseminava suas raízes por toda a família tal qual erva daninha. Em sua barriga, o pequeno ser ali abrigado a chutou como se por escárnio, lembrando-a que carregaria o mesmo fardo e o transmitiria para a próxima geração em um ciclo infindável. Tudo isso causado por erros cometidos por medo.
— Annabella? — O tom de voz impaciente do companheiro deu a entender que não era a primeira vez que a chamava.
Ela meneou a cabeça para o lado, cansada demais para abrir a boca e mentir ao afirmar um suposto bem-estar. Permitiu-se ser puxada com delicadeza pelo marido e envolvida em seus braços. Annabella o contemplou por alguns segundos antes de sorrir, mas um sorriso sofrido, carente de perdão. Com a ponta dos dedos, tocou o rosto dele, sentindo a barba grossa e cinzenta pinicar a pele. A presença do marido tornava a situação menos árdua e não conhecia outro ser humano que a compreendesse tão bem, incluindo a razão de suas aflições.
— Acreditei ser capaz de lidar com o que aconteceu — disse ela, depois de um longo momento em silêncio. — Que não seria atormentada pelo passado, porém não consigo me livrar das memórias na clareira. Assombra-me a maneira como todos parecem ter seguido em frente, até mesmo desejando outro festival de abutres como aquele. Como podem, Obadiah?
— Não sei, mo ghrá dhil, e não sei se desejo descobrir. — Ele beijou a testa da esposa, abraçando-a com o cuidado de quem possuía a própria vida em mãos.
Annabella se afastou de repente, aproximando-se da janela e deixando o fantasma do seu perfume para trás. As ervas usadas nas suas tinturas milagrosas, vendidas pelo marido na botica da vila, estavam entranhadas na pele. Doía saber que a melhor maneira de disfarçar suas habilidades era à sombra de Obadiah, mas o orgulho não valeria de nada caso acabasse enforcada. O vento gelado a fez tremer, iluminada pela luz pálida da lua cheia que, vez ou outra, desaparecia por trás das nuvens.
A atenção se voltou na direção da casa da congregação, onde era obrigada a confraternizar com o povo da aldeia a fim de manter uma imagem impecável, livre de suspeitas quanto à sua verdadeira fé. Uma tarefa difícil, porém, desempenhada com presteza invejável, deixando o marido admirado e, dentro dos limites aceitáveis, orgulhoso.
Obadiah e ela deixaram a Inglaterra vinte anos antes, pouco depois de se casarem, em busca de uma vida diferente no Novo Mundo; ele trocara de nome, permitindo-se manter o sobrenome de família, e Annabella dissera "adeus" aos pais. Embora soubessem que encontrariam empecilhos com os puritanos, não imaginaram lidar com outra perseguição. Ambos conheciam muito bem a capacidade dos homens em realizar atrocidades em nome da religião. Obadiah precisou fugir aos cinco anos com o pai e a madrasta para longe do famoso General Caçador de Bruxas, Matthew Hopkins, durante a Guerra civil inglesa. Antes disso, os ancestrais, bem como os da esposa, foram perseguidos durante o auge da caça às bruxas.
— Papai costumava contar uma história quando eu não passava de uma menininha — Annabella quebrou o silêncio, ouvindo o marido se aproximar de mansinho —, sobre um chefe indígena chamado Hatuey, que lutou contra os avanços dos espanhóis para proteger seu povo, suas terras... suas crenças. Não foi o suficiente, pois não evitou a própria captura e morte.
As mãos de Obadiah foram de encontro aos ombros da esposa, ainda mornos apesar do frio.
— Antes de o queimarem vivo, tentaram convertê-lo para ser aceito no paraíso — continuou ela sem conseguir conter o riso de escárnio. — "Os espanhóis também vão ao céu?" — Lembrava com clareza do pai lhe contando a história, relatada em uma carta enviada por um amigo. — "Eu não quero ir para lá, mas sim para o Inferno, onde vocês não estão e onde não verei pessoas tão cruéis" foi sua resposta. Pelo visto, segundo os sermões do reverendo Appleton, teremos o prazer de conhecer o chefe Hatuey pessoalmente.
— Caso eu acreditasse em um inferno além desse onde vivemos — respondeu Obadiah com calma —, não faria objeção alguma. Que tipo de condenação seria pior do que a de conviver eternamente ao lado de pessoas que nos odeiam? — Annabella se virou para o encarar e, pelo olhar da esposa, entendeu seus pensamentos. — Não, Bella, é arriscado demais e sabe disso.
— Mesmo assim preciso fazê-lo — contrapôs, pegando uma capa de lã e a jogando sobre os ombros. — Fique aqui com Brian. Voltarei antes do amanhecer.
— Pense no bebê. — Os dedos nodosos de Obadiah tocaram o ventre da esposa com carinho.
— É nele em quem penso. Em todos nós.
Não havia discussão quando Annabella colocava algo na cabeça, e o marido estava cansado demais para discutir. Restou-lhe observá-la deixar a casa e caminhar rumo ao pesadelo que os assombrava. Ao botar os pés do lado de fora, ela olhou ao redor por precaução, embora duvidasse que encontraria alguém perambulando àquela hora. Às portas do inverno, todos permaneciam em seus lares, contando também com a influência de dois casos de pessoas contaminadas com varíola.
O número de doentes, por coincidência, caíra desde o último julgamento, servindo como a prova "irrefutável" do crime cometido pelos acusados. Isso não explicava, contudo, a seca repentina no afluente que cortava a floresta e servira de inspiração para o nome da vila. Quanto a esse mistério, Annabella tinha suas teorias.
Por outro lado, ela não compreendia os benefícios em espalhar a desordem por Mystic Creek, como pensavam os puritanos. As acusações, sob sua compreensão, representavam os próprios acusadores e seus pecados. Expurgar a iniquidade de suas almas lhes era mais seguro através de uma alegoria deturpada, responsável por acolher a necessidade de uma figura a quem culpar pelos males cometidos em sociedade e contra seu deus.
Annabella respirou fundo, as narinas ardendo graças ao ar gelado e seco, olhando para cima onde o plenilúnio, descortinado pelas nuvens, banhava o mundo em prata. Por mais que a visão pacífica a atraísse, todo cuidado era pouco ao se esgueirar pelos cantos. Não permitiria que algum bisbilhoteiro a observasse ao cortar a vila em direção à floresta.
— Que a noite me esconda em sua penumbra. Sob o manto de névoa e sombra, a magia deslumbra — murmurou Annabella, concentrada, fitando a lua a se esconder aos poucos na escuridão.
Sem tempo a perder, iniciou a caminhada solitária rumo ao lugar que lhe torturava todas as noites ao fechar os olhos. A ideia de revisitar a clareira a perseguia há semanas, exigindo uma visita dolorosa de Annabella ao local onde as execuções por bruxaria foram realizadas; execuções essas responsáveis por abrir um talho sangrento na história de Mystic Creek, servindo como exemplo de sacrifício expiatório durante os sermões inflamados do reverendo. As mortes das "bruxas" e "hereges", segundo ele, purificaram a vila de todos os males.
Contudo, não havia nada de puro no ar. O vento carregava o odor da morte e formava uma nuvem densa de desespero sobre a floresta. Ao avistar as árvores após o longo percurso, Annabella passou a mão pelo rosto, desejando limpar a camada de sujeira invisível das bochechas coradas. Não conseguia encarar o local sem desviar o olhar por alguns segundos, envergonhada pelo o que acontecera ali. Voltar para casa lhe pareceu uma opção melhor, mas continuou até a orla, experimentando a mudança pungente no ambiente.
O ar ganhou forma ao sair dos lábios ressecados, enquanto os pés afundavam no solo úmido à medida que os passos serenos a levavam até a clareira. As lembranças da melodia delicada composta pelos sons da noite repousavam em uma época distante. A folhagem das árvores assobiando ao sabor do vento, acompanhada pelo canto das aves noturnas ao saudar os visitantes. Tudo fora abafado pelo silêncio impiedoso.
Annabella se perguntava com frequência se ainda existia qualquer resquício de vida por entre as pedras e galhos secos, a despeito da certeza sobre o óbvio: vivo ou não, algo a observava. A intensidade dos olhares voltados a ela seria forte o suficiente para espantar uma pessoa plena em suas faculdades mentais. Entretanto, vivendo em meio a pessoas demonizando o desconhecido e diferente, bruxos e bruxas encontravam proteção no oculto e selvagem.
Pouco antes de vislumbrar a clareira, uma presença familiar se tornou mais clara e, sem surpresa, identificou a silhueta parada de costas para as árvores e próxima ao altar de pedra no coração da floresta. Depois das execuções, os moradores não se arriscavam por ali nem para caçar. Estas caçadas seriam infrutíferas de um jeito ou de outro, pois os animais não se aproximavam mais do ambiente sombrio.
— Imaginei que a encontraria aqui, alta sacerdotisa. — Quando a figura se virou, Annabella viu o rosto da nova esposa do magistrado de Mystic Creek.
As nuvens se dissiparam e a lua voltou a aparecer, criando uma espécie de auréola dourada nos cabelos loiros da jovem, caídos pelos ombros estreitos. As duas dividiam o semblante cansado, embora a postura permanecesse firme. Annabella se retesou, porém, ao notar pela primeira vez os ninhos de vespas e teias densas de aranhas presos aos troncos níveos das bétulas.
— Seu marido? — perguntou Annabella, afastando-se das árvores enquanto mantinha o olhar atento ao redor. — Stanton não ficaria feliz em saber dessas escapadelas, Josephine.
Os dedos percorreram a superfície áspera da pedra circular próxima ao centro da clareira, sem qualquer resquício de cera das velas usadas durante os rituais realizados ali; tudo limpo antes de a denúncia de bruxaria chegar aos ouvidos dos conselheiros de Mystic Creek. A tentativa de remediar a situação não fora o suficiente, contudo.
— Ele vem dormindo como nunca desde nossa união. — Um sorriso discreto surgiu ao ser abraçada pela alta sacerdotisa. — Preciso admitir, contudo, que não será tão fácil enganá-lo agora que suspeita até das sombras. Teme ter se casado com outra bruxa. — Annabella se afastou, encarando-a. — Quanta zombaria do destino, não é?
O semblante soturno foi a resposta à pergunta retórica, calando Josephine. Fora contra o casamento a princípio, mas com a animosidade entre a população teimando a ceder, a alta sacerdotisa precisou deixar o receio de lado para pensar no bem de seu conventículo. Não permitiria a execução injusta de outra pessoa por sua causa.
— O destino não zomba de ninguém — respondeu Annabella, agachando-se e pousando uma das mãos sobre a grama seca. — Somos nós os zombeteiros ingênuos, surpresos quando a vida lança de volta os nossos erros. Então culpamos o destino. — A relva, antes de um verde vivo, esfarelou-se em seus dedos e voou para longe como poeira, deixando um odor bolorento para trás. — Se assim o for, não somos diferentes daqueles que criam demônios para escapar da responsabilidade dos pecados cometidos por livre e espontânea vontade.
A vida não pulsava mais naquelas terras agonizantes e era isso o que tanto desejou constatar ao sair de casa naquela noite. O local onde antes celebravam a vitalidade havia abraçado a ruína, absorvendo os dissabores da morte sofrida. Sentir esse padecimento tão injusto enfureceu Annabella. Levantando-se com a ajuda de Josephine, fez questão de limpar os resquícios apodrecidos de suas vestes. Iria queimá-las na primeira oportunidade. Além das memórias, não guardaria nada oriundo da clareira.
— Não há mais nada para se ver por aqui, Josephine — prosseguiu ela, caminhando em direção às árvores mais uma vez. — Apenas tormento e fúria. A clareira não nos pertence mais.
Só então a jovem se deu conta dos olhares ocultos nas folhagens e se apressou para andar ao lado da alta sacerdotisa.
— A população de Mystic Creek matou aquelas mulheres na esperança de se livrar do demônio. — Annabella arriscou um último olhar por cima do ombro, presenciando de soslaio uma figura indistinta ganhar forma onde antes estivera agachada. — Eles só não compreendem que o artifício usado para aniquilar o inimigo acabou criando o que tanto temiam.
N/A: yey, finalmente estamos de volta! Mas com muita calma, porque se meu cérebro sentir o cheiro do medo, ele trava de novo kkkkk' Quem aqui é leitor novo? Quem é leitor antigo? Quem veio dar só uma olhadinha?
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