Caminhos Tortuosos - IV
Os raios de sol já atravessavam as réstias do couro da tipi quando Tokalah retornou. Elena já havia acordado e tentava não fazer barulho ao organizar o local enquanto as crianças ainda dormiam profundamente..
一Como ele está? 一 perguntou ansiosa assim que o indígena tomou um lugar junto aos filhos.
一 Subiu ao cume alto com Wichaswakan, ele ainda não teve sua visão.
一 E o que acontece se ele não tiver?
一 Nada, ele pode tentar de novo no próximo ano. As visões são presentes e presentes não são recebidos quando e como querermos, o sacrifício só mostra a grande mãe o quanto estamos a pagar pela dádiva. 一 Ele disse retirando com cuidado os cabelos do rosto de Wewomi beijando a bochecha rechonchuda da filha e em seguida fez o mesmo com a testa do bebê que dormia profundamente junto aos braços da irmãzinha.
一 São boas crianças...E muito bonitas também 一 ele refletiu em voz alta fazendo Elena sorrir levemente.
一 Nos, precisamos conversar. 一 Ela disse soltando um longo suspiro e o índio voltou im olhar triste a ela.
一 Não, ainda não. 一 ele respondeu com a voz baixa.
一 Tokah..
一 Eu sei o que vai dizer e eu entendo, mas ainda temos tempo, e eu preciso desse tempo. 一 Ele disse voltando-se novamente ao bebê.
一 Tudo bem.一 Ela concordou sentindo os olhos marejados percebendo que ele sabia exatamente só que se trataria a conversa. O indígena estendeu a mão a ela convidando-a pra junto dele.
一 Já amanheceu.
一 Ainda eh cedo, e todos ficaram em silêncio para que Enepay possa ouvir o grande espírito. Não teremos muito tempo pra isso, 一 ele fez uma breve pausa olhando as criancas 一 sermos nós quatro, descansando despreocupados sobre os tapetes. Entao, venha. 一 Falou estendendo a mão e Elena que se juntou a eles até que Tokalah adormecesse..
Ao sair da tenda, Elena percebeu que a aldeia permanecia em silêncio. Poucas mulheres e algumas crianças estavam envolvidas em tarefas essenciais, mesmo assim, mergulhadas em um silêncio absoluto. Ela decidiu descer o vale em direção à área ocupada por Kewane e os harikaras, sentindo a necessidade urgente de obter notícias de Sarah.
Caminhou apressadamente até o local onde as tendas da tribo de Kewane estavam erguidas. Embora fossem tão amigáveis quanto os mandan, os harikaras se distinguiam por suas peculiaridades.
Diferente dos mandan, cujo vestuário consistia basicamente de couro cru e peles de búfalo, os harikaras usavam tecidos de lã colorida. Além disso, camisas de algodão e saias longas, embora desgastadas, também eram comuns entre as mulheres. Havia muitas penas e todo tipo de pele que as pradarias podiam oferecer. Na cultura deles, o cabelo não tinha grande significado como demonstração de força ou beleza, por isso existiam os mais diversos penteados. A maioria das mulheres mantinha o cabelo na altura dos ombros, enquanto os homens se diferenciavam ainda mais, exibindo cabelos curtos, longos ou até moicanos, trançados com penas.
一O que faz aqui? 一 a voz rouca de Kewane interrompeu seus pensamentos. Elena virou-se rapidamente para ele.
一 Gostaria de ver Sarah, a moça que trouxe da fazenda dos Norton. Ela é minha amiga, e quero falar com ela.
一 Lua Negra lhe deu permissão? 一 ele perguntou, erguendo suas grossas sobrancelhas negras. Elena permaneceu em silêncio. 一 Ele nem sabe, não é?一 Kewane continuou, com um sorriso irônico. 一 Sinceramente, tenho pena dele... entregar o coração a uma mulher branca que desconhece o verdadeiro sentido da lealdade.
一Tenho total liberdade para tomar minhas próprias decisões, assim como qualquer mulher Mandan. Vai me deixar vê-la ou não? 一 perguntou Elena com firmeza. Kewane sorriu e acenou com a cabeça em direção a uma das tendas. Elena assentiu em agradecimento e caminhou até a tipi improvisada, feita de restos de couro costurados. Assim que entrou, avistou duas crianças que levantaram os olhares curiosos, e a mãe delas, que imediatamente se colocou à frente dos filhos. Em um canto, estava Sarah, encolhida, com a cabeça apoiada nos joelhos.
一Eu... meu nome é Onatah, vivo com os mandan. Eu gostaria de falar com Sarah... 一 disse Elena, com dificuldade, tentando se comunicar na língua Mandan e esperando que a mulher a entendesse.
一 Eu falo sua língua. Quase todos os harikaras conhecem a língua dos brancos 一respondeu a mulher. Elena observou Sarah levantar o olhar em sua direção. "Vamos, meninos" - continuou a mulher, chamando as crianças e saindo da tenda.
一Sarah... 一 chamou Elena, se abaixando para ficar mais próxima da jovem.一 Eu sinto muito... Eu nunca quis que nada disso acontecesse.
Sarah levantou a cabeça lentamente, o rosto marcado por lágrimas e sofrimento. 一 Ele segurou o rosto do meu pai no braseiro, cortou a garganta da minha mãe e da minha sogra. Atiraram no meu noivo e no meu sogro, e minhas irmãs... Eles mataram todos! 一 relatou, com a voz trêmula de dor. 一Você os mandou até lá! Eu te considerava parte da família, como uma irmã. Como pôde? Abandonou meu irmão por um monstro como aquele!
Elena respirou fundo, tentando manter a calma diante da acusação. 一 Nem sempre eu concordo com todos os métodos de Tokalah, mas ele está longe de ser um monstro... Não posso dizer o mesmo do seu irmão, Sarah. Andrew queimou uma aldeia inteira, cheia de mulheres e crianças. Mesmo assim, Tokalah não teria lhes feito mal se não tivesse encontrado nosso bebê a beira da morte. Eu sinto muito pelo que aconteceu, de verdade. Quero te ajudar a sair dessa situação, mas não vou carregar essa culpa 一 disse Elena, em tom firme, mas conciliador.一 Eles estão te tratando com dignidade?
一 Você está perguntando se me batem? Se eaquele índio maldito me violou? 一 Sarah respondeu, enxugando as lágrimas com raiva. 一 Não... mas estou presa nesse lugar horrível, cercada de estranhos. Estou tentando viver o luto pela minha família, aguardando o dia em que alguém vai oferecer dois bons cavalos por mim. Porque foi isso que ele disse que eu valho. Dois cavalos! 一 sua voz estava cheia de dor e indignação. 一 Eu não consigo entender como você pôde escolher isso, Elena...
一 Eu vou te ajudar, Sarah... Prometo. Mas agora, eu preciso ir. Vou fazer o possível para resolver essa situação 一 disse Elena, com um nó na garganta, antes de se levantar e sair da tenda.
Elena subia a colina lentamente, seu coração ainda pesado após a conversa com Sarah. O caminho de volta a área dos Mandan parecia mais longo do que o habitual, como se cada passo a lembrasse da distância entre os dois mundos aos quais ela pertencia. Quando se aproximou de sua tipi, notou a Tokalah sentado à entrada. Ao lado dele, sua pequena filha estava de costas, sentada em um banquinho de madeira. Tokalah, com paciência e delicadeza, trançava os longos cabelos negros da menina, suas mãos calejadas movendo-se com surpreendente suavidade. Desde seu regresso, não havia o visto tão sereno, concentrado em uma tarefa tão simples, mas cheia de ternura. A filha, com os olhos fechados e um sorriso tímido, balançava-se ligeiramente ao ritmo dos movimentos do pai. O contraste entre a força de Tokalah e a doçura com que cuidava dos cabelos. Ela suspirou e se aproximou lentamente, sem querer interromper o momento, mas Tokalah, como sempre, percebeu sua presença antes mesmo de ela falar. Ele ergueu os olhos por um instante, seus traços duros suavizados pela intimidade daquele instante familiar. Ele continuou a trançar o cabelo da filha, mas seus olhos acompanharam Elena enquanto ela se aproximava.
一 Onde estava? O menino teve fome o entreguei a Inuê para que lhe desse seu leite 一 ele comentou calmamente, sem interromper sua tarefa.
Elena se agachou ao lado deles, observando o cabelo escuro e brilhante de Wewomi ser habilmente trançado pelo pai. 一 Fui ver Sarah, 一 respondeu ela, a voz baixa, ainda carregada pela tensão do encontro anterior.
Tokalah não respondeu de imediato. Com cuidado, ele finalizou a trança, amarrando-a com uma tira de couro. A menina, satisfeita, sorriu e correu para dentro da tipi, deixando os dois adultos sozinhos. Só então ele se voltou completamente para Elena, com um olhar firme e atento.
一 Ela ainda está com kewanne? 一 disse ele, sem precisar que Elena explicasse mais. Tokalah parecia sempre entender o que se passava, mesmo sem palavras.
一Está, 一 confirmou Elena. 一 Ela me culpa por tudo. Não entende... 一 Ela suspirou, a frustração evidente em sua voz.
Tokalah a observou por um longo momento e se aproximou, ficando de pé ao lado dela, a diferença de altura entre eles acentuando sua presença imponente fazendo os olhos d4 Elena subir na direção doa dele.
一 Você esperava que ela não te culpasse? 一 ele perguntou, com a voz grave, 一 A dor sempre busca um culpado, Elena.
Elena abaixou os olhos, sabendo que ele estava certo, mas ainda assim incapaz de aliviar o peso em seu coração.一Eu só queria que ela entendesse que eu não queria que nada disso acontecesse. Sarah é uma boa garota, é difícil olhar para ela e ver tanto sofrimento. Me deixe levá-la comigo.
一 Eu não posso, ela pertence a Kewanne , ele me foi leal, arriscou a vida dele e dos seus homens para que você pudesse ter seu bebê de volta, devia ser grata.
一 E eu sou. Ele quer dois cavalos, você tem muitos, por favor Tokah.
一 Não, Elena. Nao se trata do que ela vale, mas sim do que representa. Por mim ela estaria morta com o resto daquela família.
一 Ela não tem culpa, é uma menina! Não vou permitir que a vendam como se fosse uma égua.
一 Meus irmãos também eram meninos e eu fiz o que devia fazer, porque eu sou um Manto. E a grande mãe sabe o quanto eu a amo Onatah, mas eu sou Mandan, um guerreiro, o manto do clã do vale, o grande chefe do que restou da nação Mandan. Não vou te obrigar a ficar na aldeia, você é livre, mas tudo que vai levar é sua égua e seu filho. 一 Tokalah, sem dizer mais nada, estendeu a mão e tocou de leve o ombro de Elena. Seu gesto era silencioso, mas carregava todo o apoio que ele podia oferecer. 一 Você sempre será dividida entre esses dois mundos, Onatah, 一 disse ele, usando novamente o nome Mandan de Elena. 一 Mas é no espaço entre eles que sua lealdade será testada. Então pense muito bem no que vai fazer.
Ela assentiu, sabendo que as palavras de Tokalah carregavam a verdade. Ainda assim, o caminho à frente parecia incerto. Enquanto ele se afastava adentrando a tenda, Elena sentou-se por um momento, sentindo o calor do sol sob sua pele, refletindo sobre tudo o que havia sido dito. Ela sabia que a decisão que tomaria não afetaria apenas Sarah, mas todos ao seu redor, inclusive Tokalah.
Respirou profundameente e caminhou à tenda de Inuê, encontrou seu filho já alimentado, deitado sobre um tapete com um sorriso enquanto brincava com as próprias maos. Agradecendo com um aceno respeitoso, ela pegou a criança e começou a caminhar de volta para sua própria tenda. Mas, ao se aproximar do centro da aldeia, algo chamou sua atenção. Um som de vozes baixas, porém intensas, ecoava pelo espaço. Ela parou por um instante e viu um grupo de guerreiros arrastando uma carroça coberta por panos rudes.
Liderando o grupo estava Icaue, um dos guerreiros Arikara encarregados da patrulha. Sua postura orgulhosa se destacava ainda mais por um detalhe que fez o coração de Elena acelerar. Pendurado em um cordão grosso sobre o peito nu de Icaue, balançava um escalpo ensanguentado. O couro cabeludo, ainda úmido de sangue, cintilava à luz do entardecer, como um troféu macabro. Sem pensar duas vezes, ela apertou o filho nos braços e começou a correr em direção à sua tenda, sentindo que urgência de avisar Tokalah.
Chegando à tenda, ela encontrou Tokalah conversando com a filha com o olhar concentrado, mas tranquilo. Ao ver a expressão agitada de Elena, ele imediatamente voltou se a ela.
一 O que houve? 一 erguntouu.
Elena, ainda ofegante, colocou o filho sobre as peles e agarrou o braço de Tokalah.
一 Os guerreiros... Icaue... eles voltaram , mas algo está errado. Eu vi... 一ela pausou, engolindo em seco, tentando organizar as palavras. 一 Ele tinha um escalpo, Tokalah. E há uma carroça... algo está acontecendo.
Tokalah se levantou de imediato, e disse para que Elena ficasse com as crianças.
Sem esperar uma resposta, o líder saiu da tipi, movendo-se com a destreza enquanto Elena ficou na entrada, observando enquanto ele seguia em direção ao grupo de guerreiros que se reunia no centro da aldeia.
Quando Tokalah se aproximou, Icaue e os outros homens já descarregava a carroça, recheada com sacos de grãos e mantimentos e algumas pecas de roupa. As peles grossas que cobriam parte da carga pareciam ter sido arrastadas de longe.
Tokalah se aproximou de Icaue, que sorriu ao ver o líder.
一 O que é isso? 一 Tokalah perguntou levantando o olhar sobre a carroça.
一 Dois viajantes mesticos - disse Icaue, com a voz grave. - Adentraram nosso território sem permissão. Eu e meus homens fizemos o que devia ser feito. 一 Ele ergueu o queixo, indicando o escalpo sobre seu peito 一 um deles escapou.
一 Meu território, vocês são convidados 一 Retrucou Tokalah fazendo Icaue esmorecerbo sorriso. - E a carroça?
- Grãos e mantimentos suficientes para alimentar nossa aldeia por semanas - respondeu Icaue, sua voz profunda e carregada de ponderação. - Toda a Aldeia, não só a minha. Não desobedecem nenhuma de suas regras Lua Negra, eses homens não deveriam ter cruzado "suas" terras, mas isso não deixa de ser um presente valioso que o vento nos trouxe.
Tokalah, no entanto, sentia uma inquietação crescer dentro de si. Ele olhou para a carroça, para os sacos de grãos, mas seus pensamentos estavam nos viajantes. Eram mercadores que desconheciam a regiao, talvez perdidos?
Ele sabia que, apesar de toda a brutalidade do gesto, decisões assim não eram tomadas levianamente. Ele abriu uma das sacas repleta de feijões, enfiou a mão tomando um punhado, cheirou e depois colocou de volta.
- Está tudo bem grande chefe?
一Está, garanta que a comida não esteja invenenada antes de distribuir as mulheres. Não seria a primeira vez que os brancos presentearam o povo da terra com algo assim. 一 Disse e Icaue assentiu com a cabeça. 一 Bom trabalho.
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