1: Ela disse adeus
- ALERTA DE GATILHO –
Esse capítulo possui cenas de bullying, assédio e pensamentos autodepreciativos. Respeite seus limites!
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Ela disse adeus
(Agora o fato está acabado)
(Enquanto você pisca, ela se vai)
(Deixe-a seguir com a vida)
(Deixe-a se divertir)"
- Os Paralamas do Sucesso -
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20 de julho de 2019, O Dia
— Não! — A jovem usou todo o pouco fôlego e coragem que restavam em seu peito para gritar aquela palavra, de forma que todos que estavam a, pelo menos, trinta metros de distância, puderam ouvir com clareza.
Mesmo aqueles que não estavam tão próximos puderam entender, através da reação dos outros, o que acabara de acontecer.
Os olhos de Alexandre se contraíram e arregalaram. Eles se fixaram nas pupilas negras e brilhantes da mulher ao seu lado. Não podia acreditar naquilo. Certamente, ouvira errado.
Nicole Martins ficou mais alguns segundos sem falar nada. Sua respiração estava ofegante, seu coração batia aceleradamente, sua pele escura suava e a testa franzia. Enquanto pensava em mais coisas para dizer, aproveitava o silêncio perturbador que se instalava no gigantesco salão que eles se reuniam.
Aquela não foi uma resposta fácil de dar. Mas ela estava certa de que era a melhor escolha a ser feita. Talvez, não era aquele o melhor momento.
— Eu não aceito! — Ela exclamou mais uma vez, pausadamente. No entanto, mais perto do microfone, para que todos tivessem condições de entender bem.
Aqueles que estavam na dúvida se realmente era aquela a resposta de Nicole, agora tiveram certeza.
— Como assim? — Perguntou o homem que estava no meio dos dois, atrás de um púlpito de madeira polida, ainda com as sobrancelhas elevadas e a mandíbula caída. Sua cor de pele era um pouco mais clara que a da moça.
A noiva disse não.
Nicole virou a cabeça para o seu pai, o pastor Bernardo Martins, rapidamente. Ficou alguns instantes fitando os olhos dele com as sobrancelhas unidas e baixas. Sentia-se envergonhada por ter que dar tantas satisfações, mas era necessário.
— Pode cancelar tudo, pai! É isso mesmo o que vocês ouviram!
Alexandre, que vestia um paletó preto bem elegante, ainda não sabia o que dizer. Ele, Nicole e Bernardo eram o centro das atenções naquele momento. Cerca de quinhentas pessoas observavam, de suas cadeiras, os três na plataforma. Fora aqueles que assistiam tudo ao vivo através das redes sociais e os que assistiriam posteriormente.
Gradativamente, essas pessoas começavam a quebrar o silêncio à medida que cochichavam com os outros ao lado sobre o que acabara de acontecer.
"Eu nunca vi isso na minha vida"
"O que será que deu nela?"
"Essa garota está é louca"
— Nicole... — Alexandre chamou a mulher e, ainda com o coração batendo mais forte que o normal, comprimiu os lábios e começou a tentar convencer sua noiva a mudar de ideia — Pare com isso! O que você está fazendo?
Repentinamente, ele segurou nos braços da mulher por alguns instantes, que espontaneamente o afastou com um tapa em seus punhos.
— Não encosta em mim! — Ela berrou mais uma vez. Estava exaltada. Não havia ensaiado para aquilo. Queria ter uma resposta pronta e marcante para deixá-lo calado, mas não tinha.
Ela se olhou para o espelho que existia na parede lateral do salão.
Os cantos de sua boca se voltaram para baixo e suas pálpebras superiores caíram ao ver a sua imagem. Estava tão bela...
O vestido branco, sem manga, estilo semi-sereia, era feito de cetim com elastano e cobria seu corpo com perfeição. O véu em sua cabeça arrastava até o chão e as flores em suas mãos enfeitavam ainda mais sua aparência. Seus cabelos crespos e pretos estavam moldados em um coque bem produzido com uma tiara branca e brilhante.
No entanto, por que não estava feliz?
Não era beleza o que ela tanto almejava?
Não era um amor que ela tanto desejava?
Agora que conquistara o que queria, por que se sentia daquele jeito?
Ou será que não havia conquistado?
Mesmo com as cirurgias, as dietas malucas, os remédios para emagrecer... Faltava alguma coisa!
Talvez, a beleza não trouxesse felicidade como ela imaginava.
E no amor... Havia conquistado um excelente partido! Um semifinalista de um dos maiores concursos musicais da atualidade! Ele não era como os outros homens. Ele abominava o machismo, as imposições sociais que cobravam a mulher, o assédio, a violência...
Por que não havia dado certo? Era só ela responder que "sim" e seriam casados. Felizes para sempre.
O dia que era para ser o dia mais importante de sua vida acabava de ser destruído. E era por culpa dela.
Teria como ficar pior?
Organizar uma cerimônia que custou mais de cem mil reais, com a participação de um programa de TV e vários convidados foi em vão.
— Nicole! — Seu pai a tirou de seus devaneios, chamando sua atenção — Pare com isso e vamos continuar com esse casamento!
— Não! — Ela gritou logo em seguida. Cerrou os punhos e deu uma leve agachada — Eu não vou me casar com ele! Eu não aceito viver a minha vida com ele! Não aceito! E não mereço isso!
— Você está sendo ingrata, Nicole! Depois de tudo o que fiz... — Alexandre trincou os dentes, mas permaneceu com o corpo trêmulo.
— Tudo o que fez? — Ela repetiu o que ele disse, boquiaberta — Não venha com esse "discursinho" podre que você se esconde, Alexandre! Você não é melhor que nenhum galanteador barato por aí! — Ela fez uma pausa, fechou os olhos, respirou fundo e continuou olhando no fundo dos olhos dele — Nunca vou me perdoar por ter percebido isso só agora!
Não conseguiu conter as lágrimas depois daquilo. Elas saíram. Na frente de todo mundo. Mas Nicole já não fazia nenhuma questão de escondê-las. Aquele ambiente já estava demasiadamente desconfortável para ela.
Ela precisava sair dali.
Comprimiu os lábios. Lançou seu buquê de flores para longe, em um movimento brusco e, tomando cuidado para não tropeçar no seu salto alto, ela partiu com passos rápidos para o outro lado do salão. Não sabia exatamente para onde iria. Apenas queria se retirar.
Ainda transtornada, Joana, uma mulher alta, negra, trajando um vestido vermelho que ia até seu calcanhar, não conseguiu se conter. Saiu de sua posição, ao lado das madrinhas, e foi atrás de sua filha. A noiva.
Quando a moça estava perto da portaria, Joana a puxou pelo braço.
— Nicole! — Ela disse, assim que encostou na jovem. Ela se virou. As duas se encararam por alguns segundos. Sem dizer nada. O rosto da mais nova estava banhado pelas lágrimas. Suas pupilas estavam dilatadas. Seu corpo ficou estático, aguardando com ansiedade as palavras que sua mãe diria — Eu não sei o que falaram pra você, minha filha, não sei como fizeram a sua cabeça, mas você e o Alexandre fazem um ótimo casal, sim! Agora, não me faça passar essa vergonha! Volte lá, peça desculpas àquele rapaz, aos convidados e continue com esse casamento! Isso é uma ordem!
A mulher falava com autoridade, exagerando nas expressões ao pronunciar aquilo.
Nicole puxou suas sobrancelhas para cima e balançou sua cabeça para os lados, lentamente, em negação.
— Eu passei a vida inteira ouvindo e seguindo o que falavam para eu fazer, mãe... Mas hoje, eu vou ouvir o meu coração! — Ela exclamou, fazendo a mulher arregalar os olhos em surpresa — E se você acha que o Alexandre é tão bom assim... Case-se você com ele. Eu tô fora!
Em um movimento rápido, Nicole se soltou das mãos de Joana e correu ainda mais rápido. Mas não era necessário. Ela não foi atrás da filha.
"O banheiro"
De repente, Nicole viu na porta do banheiro feminino a sua frente a oportunidade perfeita para se esconder de todos e expor toda a dor que sentia.
Entrou lá e trancou a porta por dentro. Ao perceber que estava sozinha, sentou-se no chão e começou a chorar.
"Agora, está feito. Não dá mais pra voltar atrás"
Ela abraçava as pernas, olhando fixamente para o nada.
"Será que fiz a escolha certa?"
As lágrimas se intensificavam. A dúvida a consumia. O medo e a insegurança mexiam demais com a sua cabeça.
"Não! Ninguém vai gostar de mim... Por que eu sempre faço a coisa errada?"
Enterrou a cabeça no peito e começou a fazer uma oração. Ela precisava ter fé que tudo daria certo. Não tinha outra escolha.
"Meu Deus, me ajuda! O que eu fiz com a minha vida?"
Sem perceber, já estava lembrando de três anos atrás. Quando tudo começou...
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5 de maio de 2016: 3 anos, 2 meses e 15 dias para O Dia
Era maio. O município do Rio de Janeiro enfrentava mais uma época de intenso calor em sua área urbana.
Apesar de não estar no verão, a metrópole ardia a quase 40º Celsius.
Os moradores davam seu jeito de não serem tão afetados pela temperatura. Compravam protetor solar, usavam óculos escuros, instalavam ar-condicionado em seus carros, compravam água gelada, picolé, sorvete, entre outros.
"Merda"
Nicole Martins odiava o calor.
Sua pele ficava suada, pegajosa, sentia-se indisposta, não conseguia raciocinar direito, estressava-se fácil, enfim... Era horrível para ela.
Havia escolhido uma roupa mais confortável para ir à escola naquele dia. Uma bermuda justa que acabava seu comprimento cerca de três dedos acima do joelho. Decidiu pôr a regata de Educação Física também.
A inspetora da escola não gostou nada da vestimenta da jovem e a repreendeu. Advertindo-a que aquilo não se repetisse.
A garota bufou ao lembrar do ocorrido daquela manhã.
"Os meninos sempre vão de bermuda. Qual o problema?"
Ela não se conformava com aquilo. No entanto, assentiu após a chamada de atenção. Não queria que nada fosse comunicado aos seus pais. Afinal, sabia que seus pais também não aprovariam aquela roupa.
"Como se alguém fosse olhar para mim..."
Ela fechou os olhos, no meio da aula, e respirou fundo. Não devia ter começado a pensar naquilo...
"Queria eu ser que nem a Beatriz. Bonita, magra, loira, olhos azuis, rica e poderosa!"
Por um instante, ela se imaginou no corpo da garota mais popular do Colégio. Definitivamente, ela não sabia o que desejava. No entanto, sua cabeça se fixava no quanto seria bom receber tantos elogios.
Mas ela não poderia ser Beatriz. Nunca.
Era gorda, negra, seu nariz era largo e sua mandíbula era projetada para frente.
"Com o dinheiro que estou juntando, talvez eu consiga fazer uma plástica..."
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Após entrar no ônibus, para voltar para casa, ela havia conseguido um lugar para se sentar na janela e um senhor de, aproximadamente, cinquenta anos de idade havia se sentado ao seu lado em seguida.
Cinco minutos depois de ela perceber a presença dele, ela sentiu as mãos do homem invadindo seu corpo, apalpando a região próxima a sua genitália. Antes que ela falasse qualquer coisa, ele sussurrou em seu ouvido alguma coisa para que ela continuasse calada. Que, se falasse, seria pior.
Com a outra mão, ele fazia movimentos de vai e vem no seu próprio órgão sexual. Precisava estar muito atento para perceber, de fora, o que acontecia, já que as mochilas de ambos tampavam a visão da abominável cena de assédio.
Nicole nunca havia se sentido tão suja quanto aquele dia. Tão podre. Tão invadida. Tão... Não humana.
O medo a fez se manter quieta, mas seu coração disparava extremamente rápido dentro de seu peito. Estava desesperada. Em pânico. Queria chorar. Queria gritar. Mas resistiu. O que ele faria com ela depois?
De repente, ela ouviu a voz desconhecida de alguém que nunca vira na vida a chamar.
— Larissa? Você por aqui? — Um rapaz gordo de cabelos ruivos que iam até o ombro, vestindo uma camisa de um game qualquer, estava falando com ela — Caramba! Quanto tempo!
"Quem é esse cara? Ele está me confundindo com al..."
Antes que continuasse seu pensamento, ela entendeu o que estava acontecendo.
— Nossa, Guilherme! — Ela exclamou, arregalando os olhos e esboçando o sorriso mais falso de sua vida — Fazem o quê? Cinco meses?
Quando Nicole percebeu, o senhor já tinha tirado sua mão de partes inapropriadas de seu corpo e se recolhido em sua cadeira. Estava ligeiramente sem jeito para se portar a partir de então.
— Estou tão cansado! Segura minha mochila pra mim aí! — Ele falou, tirando o objeto de suas costas e entregando para a moça que fez como o pedido. Afinal, seria mais um empecilho para seu abusador continuar. Eles ficaram alguns instantes em silêncio, até que o rapaz pensou em algo — Mas, e você? Não sabia que estava morando por aqui agora...
— Pois é, né? Eu me mudei faz uma semana! E você? Mora aqui?
— Moro sim! Aliás, você tem algo importante pra fazer agora? — Ele a questionou, piscando um olho.
Nicole deu uma olhada de canto de olho para o homem ao seu lado.
— Pra falar a verdade, não tenho nada! — Ela respondeu, com um sorriso no rosto.
— Então, eu vou descer no próximo ponto. Vem comigo tomar um açaí na lanchonete aqui e eu te mostro onde eu moro! Que acha?
— Olha... Eu topo! — Ela assentiu com a cabeça.
E assim, eles se conheceram.
Eles desceram no ponto de ônibus seguinte. O homem abusador sequer se atreveu em os acompanhar. Alexandre a levou para tomar um açaí e os dois conversaram sobre o ocorrido.
— Eu devia ter feito um escândalo. Chamado a polícia. Enchido a cara dele de porrada. Isso sim... — O rapaz bufou, unindo as sobrancelhas.
— Não. Você não conhecia aquele homem. Vai que possuía uma arma? Poderia ser pior! Você fez o certo.
— Eu odeio homem que se acha no direito de violar uma mulher... Odeio!
Após muito conversar, os dois trocaram os contatos. Nicole ficou encantada com o homem que a salvara de um assédio. Começaram uma amizade que se intensificou para algo mais íntimo.
Enquanto namoravam, a vida dos dois passava por várias mudanças. Enquanto Alexandre investia na sua carreira promissora como músico, Nicole havia ingressado a faculdade de Ciências da Computação.
Além disso, escondida de todos, ela se dedicava em se tornar a pessoa mais desejável para seu namorado, gastando dinheiro em cirurgias, maquiagem, academia, dietas "milagrosas", pílulas que a faziam vomitar a comida ingerida, entre outros meios para tentar ficar mais bela.
Até que, alguns anos depois, os dois optaram por envolver Deus e o Estado naquele relacionamento. Iriam se casar.
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20 de julho de 2019, O Dia
23h 10min
Nicole não era capaz de dizer quanto tempo ficou ali. Ouvia as batidas de outras pessoas do lado de fora, gritando, falando para que ela saísse de lá. Mas ela ignorou todos os pedidos. Até que, em determinado momento, eles cessaram.
"Meu camarim"
Quando se sentiu em condições de sair dali, logo se lembrou de um lugar em que poderia acabar logo com aquilo. Iria até seu camarim tirar aquela roupa, aquela maquiagem e aquela máscara de moça feliz e agradável que há tanto tempo exibia para os outros.
Abriu a porta e notou que alguns dos convidados, que não estavam mais em volta do banheiro, surpreenderam-se com a saída da moça.
Logo na entrada do salão, existiam, em um dos cantos, uma escada que levava ao segundo piso do salão. Era onde ficava a logística do evento.
Caminhou naquela direção, determinada. Subiu as escadas e ficou ligeiramente perdida para se encontrar. Tentou buscar em sua memória onde ficava o recinto dedicado especialmente à noiva. Onde ela faria a troca de roupas e ajeitaria sua maquiagem e penteado.
— Nicole! Não entra aí! — Alguém, cujo a voz ela não reconheceu, a alertou. Mas a noiva ignorou completamente. Fingiu que não ouvira.
— Ei! Não faça isso! Volte! — Ouviu de novo, logo em seguida, outra pessoa que não sabia quem era. Ela semicerrou os olhos e trincou os dentes. Estava cansada daquilo. Continuou fazendo o que queria.
Quando chegou ao segundo piso, passou por uns corredores, até que, enfim, achou a porta de madeira com uma placa escrita "Camarim da Noiva".
Só não contava que não estaria sozinha ali. Sua presença foi logo notada por três pessoas que estavam no local.
Dos três, apenas dois eram conhecidos por ela.
Astrid Hoegen, a irmã de Ana Laura Hoegen, sua amiga de infância. Além de ser, também, oponente de Alexandre no concurso musical, Estrela do Rock. Uma jovem branca, de olhos azuis claros, cabelos loiros e corpo sem muitas curvas.
Vinícius Dantas. Um rapaz de pele cor de oliva, tinha cabelos pretos e possuía uma barba rala. Era seu colega da faculdade, mas nunca foram íntimos.
A outra mulher era estranha para ela. Não havia sido convidada para a festa. Ela era alta, negra de pele clara, lábios carnudos, olhos escuros e cabelos curtos e lisos. Vestia uma blusa azul, calça jeans, uma jaqueta e botas.
— Senhora Nicole? — Dizia a mulher — Me desculpe, mas a senhora não vai poder continuar aqui. Permaneça no piso abaixo e aguarde outras ordens.
— Senhorita, você quis dizer — ela corrigiu, com a voz carregada de raiva — O que é isso? — Ela indagou, em voz alta, cerrando os punhos e franzindo o cenho — Quem é você?
— Meu nome é Louise Ferguson. Sou perita criminal e... — Ela disse, exibindo seu distintivo da Polícia Civil.
— Policial? Como assim? — Ela questionou, incrédula, interrompendo a detetive.
— Nico, por favor, não queira... — Astrid inclinou a cabeça e entrelaçou os dedos das mãos, tentando convencer a noiva a fazer o que eles pediam.
Mas a tentativa foi falha. Nicole já não tinha mais paciência. Queria sair dali.
Necessitava sair dali.
Em um movimento ágil, passou pelos três e girou a maçaneta, abrindo a porta bruscamente.
Arrependera-se no instante seguinte.
O grito agudo e estridente da mulher foi ouvido por quase todos os convidados que estavam ainda confusos lá embaixo.
Ela não devia ter visto aquilo.
Tinha um cadáver em seu camarim.
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