Capítulo 8
Dois belos e inacreditáveis olhos azuis me encaravam profundamente. Eu encarava aqueles olhos com tamanha audácia e coragem. Até que o rubor era maior e tomava conta de mim, então eu acabava desviando o olhar para alguma outra coisa menos importante.
Acontece que tudo ali parecia e devia ser importante. Desde às velas que subiam em espiral pelas vigas do coreto, até às flores que estavam sobre a mesa. Ainda não acredito que estou sentado diante disso tudo. Era um verdadeiro jantar à luz de velas.
Se me contassem que eu estaria aqui, hoje, jantando dessa forma e com um rapaz, provavelmente eu diria que essa pessoa tinha perdido todo o juízo. Era definitivamente um sonho. Embora eu ainda me mantivesse relutante em acreditar nele. Tinha mais certeza de que fosse um estado de demência total, onde eu, Maurício Sutil, era apenas mais um paciente em algum campo verdejante e vestido com uma camisola branca.
Mas enquanto eu não tinha certeza se era mesmo um paciente psiquiátrico, decidi viver esta realidade que chamava de vida. Meus olhos ainda estavam fixos nas flores. Eu tentava entender e acreditar se elas de fato, simbolizavam o amor à primeira vista.
— Sim, elas realmente simbolizam o amor à primeira vista — River respondeu ao meu pensamento.
Olhei-o aturdido. Minhas indagações à cerca de sua habilidade em adivinhar (ouvir, ler ou o que quer que seja) meus pensamentos estavam voltando. Devo ter feito uma expressão muito tosca e de incompreensão, pois ele sorriu. Um sorriso terno e que eu já reconheceria de longe.
— É que você olhava para as flores com um ar de indeciso.
Fiz um bico. Mas tratei logo de desfazê-lo ao ver seu olhar curioso.
— Sabe, estive pensando, você costuma responder os meus pensamentos no exato instante em que penso — comentei, fitando as luzes das velas, que dançavam com a brisa suave, mas aproveitando para desviar de seus olhos. — Tem certeza de que não possui poderes telepáticos e está me manipulando agora?
Ele riu, mas riu mesmo. E isso me deixou bem, extremamente bem.
— E eu acho que você anda assistindo ficção demais — disse ele, um sorriso satisfeito estampado no rosto. — Ou será que você está me confundindo com algum vampiro de romance adolescente?
Ele me lançou um olhar misterioso que logo se tornou em algo sufocante, subindo para notas mais maliciosas e potencialmente sensuais.
— Se for esse o caso, não precisa se preocupar. Pois eu encontraria outros meios para morder seu pescoço! — arrematou River.
Ele dizer aquilo me deixou tão envergonhado e fez meu rosto esquentar com aquele comentário. Meu rosto devia ter assumido uns cinquenta tons de púrpura naquele momento.
Tentar fugir da conversa era minha única alternativa.
— Você estava dizendo que as gloqui... — Como era mesmo o nome das flores? Minhas sobrancelhas se uniram num V. Tentei inutilmente me lembrar do nome das delicadas flores que enfeitavam a mesa. — Gloqui... hum!
— Gloxínias? — ele sugeriu.
— Isso — assinto e estalei a língua. — As gloxínias têm mesmo esse significado?
Ele aquiesceu. Seus olhos tremeluziam com a luz das velas. Ficaram impressionantemente misteriosos, porém belos.
— Sim, e essas em especial me custaram uma boa parcela do meu salário.
Prendi o fôlego por um instante.
— Como assim? Aliás, quanto é que lhe custou tudo isso aqui? — questiono, minha voz se alterando para um tom mais sério e perturbado, ao mostrar toda a decoração.
Por mais que ele quisesse fazer com que eu me sentisse especial, o que estava conseguindo, eu não podia admitir que gastasse qualquer que fosse a quantia comigo.
— Isso não é importante — ele objetou. Ligeiramente ofendido. — Quando eu disse que paguei uma nota por estas flores, quis dizer que...
— Pagou caro por elas! — confirmei, não dando chance a ele de argumentar.
Ele suspirou e fechou os olhos, franzindo o cenho. Sua expressão podia ser de mágoa, como de ofensa, como de "dane-se". Quando voltou a abri-los a expressão era amena, até podia dizer que estava se divertindo.
— Do que é que você está rindo?
— De nada. Só que você não precisa ficar preocupado com nada. Afinal, fui eu quem te convidou para jantar e como convidado, você tem de aceitar a minha cortesia.
Fiz menção de protestar, mas ele não permitiu. Levantou uma das mãos e colocou o dedo sobre os lábios. Foi um gesto que despertou alguma criaturinha estranha dentro de mim. Uma criaturinha que se mexeu e fez todos os meus órgãos se retorcerem.
Não disse mais nada. Apenas ficou me encarando. Eu comecei a ficar desconfortável. Não era porque o olhar dele era ruim, só que isso me deixava com uma sensação esquisita, seus olhos penetravam fundo na minha alma. Pelo menos era isso que se passava dentro de mim.
— Sim, paguei caro, mas é porque tive de trazê-las de muito longe — explicou. — Elas têm um tempo específico para florescer e não é a época delas aqui na nossa cidade.
Dei de ombros e assenti. Levemente indignado com a minha ignorância. Ele não se deixou abater por isso.
— Melhor comermos, não é?! — ele falou.
Só então me dei conta de que estávamos ali para jantar. E não havia jantar. Ainda...
Ele estalou os dedos. Meio que ri dessa atitude. Ele riu também e, claro, foi só porque eu ri. Olhei ansioso para a mesa, esperando que os pratos (sabe-se lá com o quê) surgissem magicamente sobre ela.
Não aconteceu nada. Mas passos próximos de mim me alertaram. Tinha alguém vindo. Entrei em pânico, eu iria ser visto. O que eu iria dizer? Devia escapulir para debaixo da mesa enquanto tinha tempo? Saltar sobre o cercado do coreto e correr para a escuridão? Qualquer outro pensamento foi interrompido por uma bandeja de prata reluzente que ficou suspensa no ar à minha frente.
Droga! Eu devia ter sido mais rápido.
Quando meus pensamentos se organizaram, vi um braço sob a bandeja. Como se ele fosse uma extensão dela própria. Ou seria o contrário? Enfim, isso não era importante. O braço, na verdade, pertencia a um homem. Era um garçom, e creio que devia estar mais para mordomo (e um mordomo digno de ser chamado de Jarbas). Estava todo de preto, exceto pela camisa branca.
Ele não parecia se importar comigo, segurava a bandeja disciplinadamente e aguardava a minha decisão. Eu sequer tinha olhado para ver o que tinha na bandeja, estava paralisado com a presença dele. E mais surpreso ainda por ele não estar se importando com a minha.
— O que foi? Você não gosta de camarão? — River me perguntou.
— Cama de quem? — falei, totalmente atrapalhado e voltando-me para ele.
Ele riu. Eu não tinha compreendido. O seu rosto estava com duas covinhas (como é que eu só percebi elas agora?) não muito profundas. Olhei para a peça de prata que estava sendo praticamente enfiada no meu rosto e finalmente entendi.
Um prato com camarões assados e regados com um molho dourado. Deve ser barbecue. Só iria ter certeza quando experimentasse. Ao redor deles, uma folha de alface com duas bolinhas vermelhas brilhantes e uma folha de manjericão. Tomates-cerejas.
— Para ser sincero eu nunca experimentei, não que eu me lembre.
O "Jarbas" repousou o prato na mesa e rapidamente trouxe outra bandeja igual para River. E eu me perguntava de onde é que ele estava vindo.
Uma taça de cristal foi trazida até a mesa, eu recusei qualquer bebida. Não era de beber muito. Isso quando bebia. River insistiu para que eu aceitasse. Expliquei minhas prioridades. E a saúde era uma delas. Ele disse que estava apenas tentando ser cortês.
Isso não era ruim. É até bom. Porém eu já estava ficando incomodado com tanta cortesia. Eu não estava me sentindo merecedor de tudo aquilo. Ver esse tipo de comportamento me deixou irrequieto. Era tudo novo e muito inesperado. Eu realmente não podia receber toda essa atenção.
Ele levou um camarão à boca. Mastigava lentamente, na certa para não machucar muito o pobre animalzinho. Minha nossa, o que é que eu estava pensando? Meus olhos estavam fixos nos camarões. Com o garfo rolei um tomate para a borda do prato. Me detive e descansei o talher sobre a mesa.
— Eu não entendo.
— Como se come o camarão? — ele me perguntou. Tirei os olhos do prato e olhei para ele. Seus cabelos começaram a se agitar com um ventinho fresco que tomou conta do coreto. Uma vela se apagou atrás dele. — É muito fácil, basta você prendê-lo com o garfo e levá-lo até a sua boca.
Ao mencionar essa última palavra, ele fixou seus olhos em meus lábios. Senti uma coisa formigando no canto da boca e precisei cobri-la com as mãos na mesma hora.
— Não é isso — resmunguei. — Eu sei como se come camarão.
Foi a vez dele descansar os talheres.
— E então?
Respirei fundo. Acabei respirando rápido ou profundamente demais, pois fiquei ligeiramente tonto.
— Por que estou aqui? É isso que não entendo. Qual o motivo?
— Foi porque te convidei.
A resposta foi sincera. Sua voz não demonstrava ser de alguém que estivesse mentindo. Mas atores sabiam muito bem desempenhar seus papéis na TV.
Olhei para os lados. Eu estava com receio de que tudo isso não passasse de uma mentira. Podia jurar que estava sendo observado e (meu instinto quase gritava) até filmado. Uma vontade louca de correr dali o mais rápido possível se apossou de mim.
— O que houve, por que está olhando para todos os lados? Como se estivesse com medo de alguma coisa? Você tem fobia de escuro, é isso? — ele me perguntou aflito. Eu conseguia enxergar preocupação em seus olhos.
Fiz que não com a cabeça.
— Sabe River, é que é muito difícil acreditar em tudo isso.
Seu rosto endureceu. Pude ver todos os músculos de seu rosto se enrijecerem. Seus lábios tremeram ao serem apertados uns contra os outros. Mas não era sinal de que ele estava bravo. E sim ofendido. Decepcionado.
— Agora sou eu que não estou entendendo.
— Não é que eu esteja sendo ingrato e nem nada, mas tenta me compreender... — tentei explicar. Seus olhos antes radiantes, agora se tornaram frios e cinzentos, quase que sem vida. — Somos dois homens.
Ele me encarou por alguns segundos. Não pude evitar de sentir a frieza do seu olhar. Por um momento, suas expressões se fundiram e eu já não soube separar e identificar nenhuma delas.
— Então só porque somos homens não podemos gostar um do outro? Ou nesse caso, eu me apaixonar perdidamente por você?
Me apaixonar perdidamente por você.
Essas palavras foram capturadas pelos meus ouvidos, mas ainda não foram devidamente processadas por meu cérebro. Eu o analisei, e por um tempo, me analisei.
— Não foi isso que eu quis dizer! — protestei. Suas palavras surtiram efeito depois que eu disse isso. — Peraí, se apaixonou por mim? Perdidamente?
Ele confirmou.
Seus olhos tristes e magoados não me olhavam mais. Estavam focados nos nós dos seus dedos.
— Mas como? A gente nem se conhece direito.
Minhas palavras saíram mais cruéis do que eu gostaria. E eu não queria que elas tivessem soado assim. Ele arqueou a cabeça.
— Foi como eu te disse. Estas flores... — Apontou para as gloxínias. — Simbolizam o amor à primeira vista. Eu não as teria trazido, se elas não significassem nada. E sim, eu sei que não nos conhecemos direito. Mas foi desde o primeiro instante em que pus meus olhos em você, que te amei no mesmo segundo.
Eu estava de queixo caído.
— Também não entendo direito isso que estou sentindo. Afinal, nunca senti atração nenhuma por outro cara. Nunca ignorei ou fui contra, mas também não achei que fosse acontecer comigo um dia. A única coisa de que tenho certeza é que desde o primeiro segundo em que vi você naquele bar, senti uma explosão dentro de mim. Algo que não sei de onde vem, me faz quase deixar o chão quando penso em você. Por isso quis me sentar com você. Por isso te dei meu número. Por isso te beijei na loja. Por isso te convidei. — River ficou em silêncio por um tempo. Levantou a cabeça e me olhou fundo nos olhos. Ele estava com os olhos marejados. — Por isso estou aqui, chorando e afirmando que estou perdidamente apaixonado por você. Me declarando, afinal sou homem o suficiente para isto.
Eu não sabia bem o que dizer diante de taldeclaração. Fiz algo que achei certo.
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