Capítulo 4
Acordei com o irritante toque do meu celular. Irritante, mas necessário e preciso. Ainda bem que eu fui ordinário o suficiente para deixá-lo no carregador a noite inteira. Chegar atrasado hoje de novo não seria uma boa. Ainda mais com a Cíntia rondando cada canto da loja. O despertador do meu celular ainda berrava feito louco. Desativei-o e dei um pulo da cama.
— Urgh! — exclamei. Acordar cedo não era bem uma das minhas preferências, mas, enquanto não fico rico do nada, é o jeito.
Me arrastando fui até o chuveiro. A água estava morna, abri mais o registro até a água ficar fria. Fiquei assim por uns trinta segundos — que mais valeram por uns quarenta minutos —, e me lembrei da noite passada.
"River".
Esse nome me voltou num único flash. Um cara alto, pinta de cantor ou ator. Olhos azuis profundos e um sorriso torto. Será que tinha sido um sonho? Não, não poderia. Será que trabalhei tanto a ponto de ter fantasiado tudo aquilo? Percebi que não quando saí do banheiro. Sobre a cômoda estava um guardanapo. Números foram escritos ali. Uma caligrafia redonda. Não era linda, nem feia. Era comum e legível.
Ler aquele nome no papel fez meu coração acelerar. Também senti meu estômago dar um salto e acho que a temperatura deve ter caído uns cinquenta graus negativos. Então me lembrei da noite toda. Dele se aproximando do nada, pedindo para sentar. Cortesia e gentileza deviam acompanhar seu nome. O que ainda me intrigava não era o fato de ele ter feito isso, pois é comum uma pessoa querer fazer amizades.
Mas sim o porquê. Eu também me recordei de meus últimos pensamentos ontem à noite. Algo que fez meu estômago dar outro salto. Posso dizer que ele até deu um "mortal" para trás. Não podia ser verdade, eu não acreditava naquilo que cheguei a pensar.
Amor?
Seria mesmo, amor? Paixão? Atração? Que sentimento poderia explicar o que eu estava sentindo naquele momento? Se sou gay? Não, sempre gostei de garotas. Nunca fui um arraso com elas no colégio e nas baladas e festas eu também não fazia sucesso, mas eu gostava de mulheres. O que aconteceu para eu estar sentindo isso?
Coloquei o guardanapo branco e macio até a altura dos olhos. "River". Meus dedos começaram a tremer. Olhei no relógio do meu celular. Seis e meia da manhã. Fiz um teste. Digitei os números e adicionei River na minha lista de contatos. Abri o InstaWord, ele atualizou e o número dele também apareceu depois de alguns segundos. Toquei sobre seu nome.
Meus dedos tremiam ainda. Eu podia sentir um redemoinho gelado dentro de mim, fazendo todos os meus órgãos congelarem e se entrelaçarem em um emaranhado que jamais fosse capaz de ser desenrolado. A sua foto de perfil era incrível. Não era cheia de filtros como muitos colocam — inclusive a minha, que vergonha. Ele estava normal. Uma foto original, sem filtros. E acho que isso a deixou mais bonita. Seus cabelos pretos e ondulados estavam penteados para trás, seus olhos azuis cintilavam com a luz. Olhava para mim e sorria. Aquele mesmo sorriso travesso e inocente que ele exibiu em vários momentos da nossa conversa.
"Espera aí!", pensei comigo. Sorrir para mim? O que é que eu estava pensando? Ele estava sorrindo para a câmera! Fechei o aplicativo rapidamente e atirei o celular na cama. Ele aterrissou suavemente. Para a minha sorte, pois eu ainda estava pagando as parcelas. Sacudi a cabeça e tentei tirar toda essa história da minha mente. Tenho certeza de que estou enganado. Tudo isso só pode ser um engano. Um terrível engano.
Me vesti rapidamente e saí do quarto. Andei suavemente pelo corredor. Abri a porta do quarto de minha mãe com toda a delicadeza que pude. Ela rangeu de leve e eu segurei a respiração por um segundo. Minha mãe ainda dormia. Foi por um triz ela não ter acordado, visto que tem um sono levíssimo. Coitada, devia estar cansada. Fechei a porta e fui para a cozinha.
Coloquei a água no fogo, para fazer o café. Enquanto isso, corri até a padaria que tinha na esquina para comprar pão. Lúcia, a dona da padaria, estava acabando de abrir as portas. Dei sorte, consigo pegar pães quentinhos. Ela me recebeu educadamente como sempre. Trouxe um saco com seis pães e comprei um iogurte.
Voltei e passei o café. Limpei a louça que sujei e deixei o pão sobre a mesa, na cesta. Cobri-o com o pano de prato referente à terça-feira, isso já era um ritual lá em casa. Minha mãe tinha esses tiques desde jovem e acabei aprendendo com ela. Como hoje eu estava no meu horário normal de sair de casa, me permiti ir andando sem pressa até o trabalho. Ainda estava longe da loja, mas havia tempo. Não passava das sete e meia. Decidi pegar o caminho do parque. Nesse horário sempre acontecia uma coisa incrível por lá.
No parque tinham várias árvores, bancos, um pequeno lago para uns peixinhos, mas não era isso que eu gostava de ver. Bem no centro, tinha uma grande árvore. Não me lembro ao certo, mas parece que é uma paineira. Sei que toda manhã, independente do dia estar frio, quente, úmido, seco; do céu estar limpo, coberto, ensolarado, chuvoso; nenhuma intempérie era capaz de interferir.
Olhei para o horário. Sete e trinta e quatro. Não iria demorar. Se eu pudesse contar os segundos eu teria feito, mas como não sabia quanto faltava para as "sete e trinta e cinco", decidi não contar para não pagar mico. E então aconteceu. Uma brisa suave começou a soprar. As flores grandes e estreladas, de cores róseas e algumas púrpuras, começaram a cair da árvore. Elas desciam em espiral, singelas e tranquilas, como se o mundo fosse o lugar mais belo para elas repousarem. Senti inveja delas naquele momento.
Gostaria de poder cair e repousar na grama verde e macia aos pés da árvore, mas isso não era possível, não levando em conta muitos fatores. Depois de alguns segundos eu percebi que não era o único a contemplar tal preciosidade. Alguns, poucos, mas alguns, moradores estavam parados sob a copa da gigantesca árvore. Fitavam com curiosidade o evento, todos sabiam que isso acontecia. Até hoje nunca entendi como e por que isso acontecia e, aparentemente, ninguém mais sabia.
Com o passar dos anos, as pessoas deixaram de especular essa raridade da natureza e passaram a apenas admirá-la como ela merecia. Um minuto depois, a brisa havia cessado e as flores pararam de cair. Exceto uma, que ainda desceu levemente e pousou diante dos meus pés. Seu interior era amarelado, como a maioria das flores, mas tinha detalhes interessantes. Curiosos até. Possuíam dois pontos azuis. Azuis-escuros. Não deviam ser maiores que dois botões, mas me impressionaram por algum motivo. Alguma coisa em minha mente fora ativada com aqueles pontos azuis. Uma lembrança não muito antiga.
Tirei uma foto com o celular, para mostrar para a turma no serviço. Já que não poderia levar a flor comigo. Não teria onde botá-la e seria uma sacanagem com as outras pessoas, não permitir que elas também vissem a beleza dessa flor. Talvez alguma ou outra pudesse até surrupiá-la e levá-la consigo, mas eu não faria isso. Interrompi esse momento e me apressei para o trabalho. Chegar atrasado agora não era mais uma opção.
~~~*~~~
Lia me passava as caixas de sapato, enquanto eu as empilhava no formato de torre. Com o canto dos olhos pude ver os olhos aguçados e ameaçadores de Cíntia. Não tínhamos medo dela, apenas estávamos ficando desconfortáveis com ela nos rondando a cada cinco minutos. O nosso horário de almoço estava quase chegando. Lia fora apanhar sua bolsa. Um arrepio percorreu todo meu corpo. Será que tinha esfriado de repente?
Desci as escadas cuidadosamente, meu coração parou e entendi o "frio" repentino. Aqueles olhos azuis-escuros, como os dois pontos azuis no miolo da flor. E então percebi de onde me lembrava deles. Não foi só os olhos que reconheci, mas o cabelo ondulado, postura descontraída e desinteressada e aquele sorriso. Aquele sorriso torto e simplesmente reconhecível a um quilômetro de distância. Apesar de eu estar com alguma coisa nas veias, que estava me fazendo tremer e suar frio, fingi naturalidade. A máxima que eu pude.
— Hum, pois não? — perguntei. Olhando dele para Lia que, aparentemente, tinha sumido nos confins do vestiário.
— Que formalidade — ele disse e sorriu. — Vim perguntar se você não gostaria de sair para comer, estou no meu horário de almoço.
"O quê?", meus pensamentos quase me traíram, por um mínimo de autocontrole e domínio consegui mantê-los em minha cabeça.
— Perdão, como disse? — indaguei, apesar de ter entendido muito bem o que ele tinha dito. — Como me encontrou?
Ele pareceu não dar atenção ao meu comentário, creio eu, pois o ignorou e continuou fazendo piadas.
— Não sabia que era para ser segredo — falou. Não tenho certeza, mas bem lá no fundo, bem entre as brechas destas palavras, eu detectei um sentimento de mágoa. — Se for, e você quiser continuar a se manter escondido, é melhor não sair com essa camisa nos bares. — Apontou para minha camisa com o logotipo da loja.
— Bem, até aceitaria o convite, mas já vou sair com uma amiga daqui a pouco. — Tentei sair dali e procurei por Lia mais uma vez. Nada.
— Uma amiga? — Mais uma vez eu detectei uma tristeza nas palavras. Claro, que ele não demonstrou com expressões, mas não precisou, eu era bem observador. Ele ficou me encarando por um segundo.
— Acho que ela está vindo. Posso chamar alguém para te atender, se quiser alguma coisa da loja — digo ao ver Lia se despedir de Cassandra, a nova operadora de caixa. Pedi licença e desvencilhei-me dele.
Não sei. A gente nunca tem reflexos o suficiente em determinados momentos. Ou talvez, o mundo desacelere ao nosso redor por alguma força mágica sobrenatural e desconhecida. Só sei que foi isso que aconteceu naquele momento. Quando ele segurou meu ombro com uma das mãos, foi como se tudo ao meu redor tivesse perdido sua essência e se desintegrado instantaneamente. Tudo, e apenas tudo, o que restou foram seus olhos. Seus hipnotizantes e incríveis olhos azuis.
River me puxou para perto dele. Fazendo-me olhá-lo, quer eu quisesse ou não, ele estava bem perto de mim. Eu podia contar cada traço marrom que tinha dentro do azul de seus olhos. Também podia sentir o cheiro refrescante e gelado de seu hálito. Eu já não ouvia mais nada, exceto o retumbar do meu coração, que se intensificou mais ainda após esse contato. Ele me olhava profundamente. Sem reação, não consegui pensar em nada.
— Não consigo... parar... de pensar... em você! — ele sussurrou. Sua voz, leve e gentil. Serena. Calma e tranquila, mas sincera.
Eu estava tão imóvel quanto uma porta. Meusmovimentos reduzidos a apenas um leve sacudir da minha cabeça. Ele ainda nãodeixou de me olhar, segurou meu rosto com as mãos. Fechou os olhos e seaproximou de mim. Devagar, até parecia em câmera lenta. Abriu seus lábiosvermelhos e veio de encontro aos meus, me envolvendo num beijo suave, doce egentil. Algo que eu jamais havia presenciado e sentido com outra garota. Umbeijo difícil de descrever.
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