Capítulo 3
Ainda estou tentando processar o que acabou de acontecer. A cena se desenrolava lentamente. Grãos de areia em uma ampulheta poderiam escorrer bem mais rápido. Borrões indistintos cortam o ar, enquanto meu cérebro absorve o que acabei de ver e ouvir. Meus ouvidos estão com um zumbido agudo e irritante. Será que um pernilongo entrou e eu não vi? Meus olhos ficaram enevoados por algum motivo.
Quando minha visão e audição retornaram ao seu estado normal eu percebi que não havia ficado louco e nem sonhado.
Aquele rapaz... intrigante, estava ali ainda. Parado em minha frente. Seus olhos azuis-escuros me encaravam, me... analisavam? Não sei de fato o que ele estava olhando. Tinha pedido um lugar para sentar e o lugar estava ali. Ponto! Nada mais a acrescentar.
Só que depois de tantos minutos naquela situação, eu comecei a ficar incomodado com ele me olhando. O ar pareceu ficar mais quente. Mais abafado. Pigarreei e desviei o olhar. Que interessante, vi um rapaz jogar uma aliança dentro de uma taça de vinho branco. A garota não viu e acabou bebendo a aliança. Começou a tossir ao se engasgar com a aliança e a bebida. Alguém foi lá e a apertou por trás.
Ela cuspiu a aliança na mesa ao lado. Que romântico. Não ri, pois também engasgara ainda há pouco. Embora as situações tenham sido totalmente diferentes. Voltei-me para minha mesa. Os cubos de gelo se desfaziam gradativamente no suco de laranja. Ainda podia sentir o peso daqueles profundos olhos azuis. E isso era perturbador. Algo não cheirava bem.
— Como é seu nome? — perguntou ele.
Ah pronto! O que é que ele estava querendo afinal? Não quis ser mal-educado, então respondi:
— Me chamo Maurício.
Ele assentiu, sem deixar de me analisar com seus olhos.
— Na verdade os outros é que me chamam de Maurício, eu mesmo não me chamo — falei automaticamente. Por que eu disse isso? Nem o conhecia e já estava fazendo piadinhas.
Ele não pareceu se importar com a minha graça. Gargalhou em alto e bom som. Algumas pessoas se viraram para ver. Sorte a minha eu estar oculto por parte das sombras do local.
— Cara, você é engraçado. Meu nome é River.
Mas que raio de nome era aquele? River? Ele inclinou-se para frente e estendeu a mão para me cumprimentar. Eu a apertei, instintivamente. Uma coisa engraçada aconteceu. Um formigamento estranho brotou na palma da minha mão com o toque da mão dele. O lugar onde houve o contato pareceu ficar anestesiado. Tirei minha mão rapidamente.
— River? — repeti.
Esse é um nome incomum. Se eu bem entendo de inglês, a tradução para este nome seria rio. River confirmou com um sorriso. Mas a forma que ele fez, eu não conseguiria reproduzir nunca.
— Sei o que deve estar pensando — ele falou, interrompendo aquele sorriso. Talvez migrando para um ar mais relaxado. — Aposto um real com você que pensou que meu nome é incomum e que a tradução do inglês para o português é rio.
Cruzou os braços e sorriu vitorioso ao perceber minha cara de espanto. Minha nossa! Como é que ele adivinhou exatamente? Isso não me deixou apenas boquiaberto, me deixou muito assustado. Jogou os braços para trás da cabeça e se espreguiçou. Isso mostrou que ele malhava bastante. Já eu, no entanto... enfim!
— Como foi que adivinhou? — perguntei incrédulo. Não bastava ter um nome incomum, agora uma habilidade incomum de ouvir ou "ler" os pensamentos das pessoas? Pelo visto, vou ter de pagar um real para ele, se de fato River se lembrar.
O sorriso torto voltou. Huum...
— Não estou lendo seus pensamentos, se é isso que pensou. — Riu ele. Ah não, imagina se estivesse. Até isso. — É já passei por isso antes. Todo mundo fica estranho ao ouvir meu nome. E pelo que já vi e alguns me disseram, todos pensam sempre a mesma coisa. Que meu nome não é "normal".
— Eu não disse que não era normal — murmurei ligeiramente desconfortável. Não sei o porquê, mas senti que fiquei vermelho. — Só é diferente.
River não se importou com isso. Nem com o fato de eu ter ficado vermelho — embora eu também não saiba o motivo disso —, ele devia estar acostumado com esse tipo de situação. Apenas sorriu. Minhas orelhas começaram a pinicar. Minhas mãos inventaram de suar. O que estava acontecendo? Que coisa mais chata.
— Fique calmo, não precisa ficar vermelho. — Sorriu descontraído, enquanto eu explodia de vergonha. — Concordo que meu nome é diferente, e ele tem uma pequena história por trás disso.
— Sério? E o que seria? — perguntei curioso. Ele se ajeitou na cadeira, tomou um gole de água (não me pergunte como aquela garrafa de água gaseificada apareceu ali, pois também não sei).
— Foi minha mãe quem me deu este nome. Meus pais estavam viajando de férias, numa região fria dos Estados Unidos. Eu estava prestes a nascer e ela pensou que fosse levar mais tempo pra isso acontecer. Parece que eu queria ver a neve logo. — River fez uma pausa nessa parte para rir. — Eles foram caminhar perto de algumas fontes termais e tinha um rio ali perto. Suas águas eram muito cristalinas. Minha mãe diz que até hoje se lembra do aroma que havia nas fontes. Da cor das pedras que estavam no fundo do rio e do ruído suave que fazia.
— Então você não nasceu aqui no Brasil? — indaguei.
— Não. — Fez questão de rir mais uma vez. Esfregou o dedo no queixo, pedi que continuasse. — Meu pai tinha ligado para os paramédicos quando minha mãe entrou em trabalho de parto. Quando eles chegaram lá eu já tinha nascido. Ela se aproximou das fontes termais para que eu não passasse frio. Fui enrolado em uma jaqueta do papai e em um suéter rosa da mamãe.
— Impressionante! E muito bonito também — observei. Ele me olhou no fundo dos olhos. Senti um arrepio subir pela minha espinha e terminar no meu pescoço.
— Sim, muito lindo — ele concordou. Cruzou os braços e recostou-se na cadeira sorrindo. Cara, ele só sabia sorrir daquele jeito? Isso era incompreensível e um tanto suspeito também. — E foi assim que ganhei o nome de River, uma eterna lembrança do local onde nasci.
— Não te incomoda?
— Nem um pouco. Até gosto. — Eu o interrompi perguntando o porquê. — Não sei se no Brasil existem outros "Rivers", mas isso me torna autêntico. — Assenti, mas por dentro pensei que é um convencido. — Quero dizer, fico tranquilo em saber que meu nome é estrangeiro e que tem de fato um significado maior que o próprio nome em si.
Meneei com a cabeça. Pensando por este lado, era verdade. Como será que meu nome seria se eu morasse fora do Brasil? Que estupidez. Parei com as minhas divagações mentais quando meu celular começou a vibrar no bolso e fazer um barulho incômodo. Era uma mensagem de alerta. Indicava que estava na hora de ir para casa. Hora de dormir.
Se pensaram na minha mãe me mandando esta mensagem; bem, devo dizer que se enganaram. Eu tenho uma mãe maravilhosa, claro, mas ela deixou de se envolver na minha vida depois dos dezessete anos. Eu também nunca lhe dei motivos para que se preocupasse — exceto quando caí no lago aos dez anos, foi hilário e muito úmido.
A mensagem era minha. Eu tentava me organizar ao máximo possível. Não quer dizer que eu cumprisse com minhas próprias regras de organização.
— Alguma coisa muito grave? — perguntou River. Seu olhar era gentil e ligeiramente preocupado.
— Não. Está ficando tarde e preciso ir embora descansar para amanhã.
Ele franziu o cenho e comprimiu os lábios. Não consegui evitar em achar aquele gesto engraçadinho. Sorri. "Ué, o que está havendo?", pensei comigo. Não disse nada, apenas chamei o garçom e paguei o suco. Deixei o restante como gorjeta. River ainda estava pensando em alguma coisa. Estendi a mão para cumprimentá-lo, ficando em pé. Ele pareceu despertar de um devaneio e olhou para mim, profundamente. Devo admitir, o rapaz leva jeito para galã de novelas. Será que ele não era ator?
— Você já vai? — ele perguntou. Um tom entristecido escondido em sua voz. Aquilo fez meu coração acelerar um pouco.
— Tenho que ir. Olha, foi um prazer te conhecer — disse mais uma vez e me virei para sair. Ele agarrou meu pulso. Senti uma injeção de adrenalina percorrer o meu corpo. Estranho.
— Qualquer coisa é só chamar. — Ele me passou um pedaço de papel com um número rabiscado. Era um guardanapo. Será que anotou o número agora?
Fiz um aceno com a cabeça e saí. Pelo espelho do balcão do bar, vi que ele estava me olhando. O mesmo arrepio de antes voltou a escalar cada centímetro da minha espinha. Segui andando sem olhar para trás, ainda pensativo. Por que raios um cara como ele sentaria com outro cara? Como eu ainda? E até me passou o número de seu telefone. Eu tinha uma teoria, mas achei que pudesse ser coisa da minha cabeça. Guardei o papel no bolso traseiro e fui embora.
~~~*~~~
Alguns metros depois, quilômetros para ser exato, eu cheguei em casa. Minha mãe estava na sala assistindo à telenovela.
— Oi, filho, ficou trabalhando até agora? — Ela parecia preocupada. — Até pensei em te ligar, mas fiquei com medo de te atrapalhar.
Ela tinha cabelos ondulados e eram da mesma cor que os meus, ela apenas fazia alguns reflexos mais claros em algumas mechas que a deixavam linda. Sua pele era incrivelmente fantástica. Ela reluzia de longe, devido a maquiagem que usava.
— Não, mamãe, não estava trabalhando. Estava tomando um suco.
— Com alguma garota? — indagou esperançosa.
— Mãe! — A repreendi educadamente.
A única coisa que eu não gostava em minha mãe era isso. Quando eu dizia que ia sair ou que iria demorar para chegar em casa, ela já achava que era para namorar. No fundo da minha cabeça alguém respondeu por mim. "Não, com um rapaz". Gelei quando pensei ter dito isso em voz alta, mas minha mãe não ouvira. Graças aos céus ela não podia ler meus pensamentos. Por enquanto.
— Tudo bem, perguntar não ofende. Seu jantar está no forno.
— Obrigado. — Agradeci e a beijei no rosto.
Fui até o forno e esquentei minha janta.
Sentei na mesa e peguei o número daquele rapaz. River. Fiquei pensando em tudo o que aconteceu naqueles minutos. Ele chegar até mim. Falar comigo. Sorrir. As minhas reações de vergonha. Os calafrios. O formigamento na pele e até a estática que ocorreu quando nossas mãos se tocaram. Mas o que me chamou mais atenção foi meu coração se alegrar cada vez que eu via aquele sorriso, e acelerar quando ele ficou triste quando mencionei que ia sair. Eu tentei não pensar muito nessa parte.
Girei o guardanapo rabiscado em minhas mãos. Aquela teoria infundamentada que reverberava em minha cabeça não podia estar certa. E aquela troca de olhares. O jeito que ele me olhava. Parecia estar observando o meu interior, meus órgãos, moléculas e minha alma. Senti meu rosto esquentar. As orelhas também resolveram aderir ao momento e rapidamente ficaram quentes e, possivelmente, vermelhas.
Meu Deus. O que estava acontecendo? Lembrar do rosto dele agora estava me fazendo ficar inquieto. Comecei a engasgar com o pedaço de frango do estrogonofe. Minha mãe veio correndo da sala ao ouvir meus acessos de tosse e tentativas inúteis de tentar me desengasgar. Ela deu uns tapas bem fortes nas minhas costas e eu consegui cuspir o pedaço mal triturado de carne. Urgh!
— Está tudo bem, Maurício? — perguntou, visivelmente aterrorizada e preocupada.
— Sim. Só tentei engolir e respirar ao mesmo tempo — esclareci, bebericando um pouco d'água. — A senhora sabe bem o que acontece nesses casos, não é?
Tentei sorrir. Ela riu em resposta e ao notar que eu estava bem, voltou para a sala. Terminei minha janta, limpei a bagunça que fiz no chão e após lavar meu prato fui para meu quarto. Minha mãe já tinha limpado o cômodo. Só conseguia sentir o cheiro de um perfume, o que era uma coisa boa. Deitei na cama, nem ia me dar ao trabalho de tomar banho. Acertei meu telefone celular para me acordar meia hora mais cedo. E desta vez o coloquei na tomada para carregar.
A única coisa que fiz foi tirar a roupa do serviço e atirá-la no cesto de roupas sujas. Coloquei, para tocar, uma trilha sonora suave no meu celular. Fiquei fitando o teto. Meu dia tinha sido complicado. E conturbado também. É, aquele pé esquerdo com o qual eu levantara talvez tivesse ajudado. Para completar, um cara metido a modelo chega perto de mim com um jeito e papos estranhos. Me fez ficar com uma pulga atrás da orelha e acho que conheço essa pulga. Fechei os olhos não querendo admitir. Mas acho que as sensações estivessem intimamente ligadas à essa pulga. De nome... Amor.
Isto seria Sorte ou Azar?
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