Capítulo 2
Meu dia havia começado bem.
Meu celular descarregou toda a bateria durante a noite e não despertou, novamente eu tinha esquecido de colocá-lo para carregar. Meu despertador reserva também não deu sinal de vida. Acho que vou ter que mandá-lo para os asilos dos despertadores. Levantei rapidamente da cama, escorreguei no tapete e quase caí. Tento me segurar na cômoda e sacudo-a, fazendo com que alguns frascos de perfume venham ao chão. Uma poça de perfumes misturados e estilhaços se formaram perto da minha cama.
— Ótimo! — resmunguei para mim mesmo.
Teria muito serviço depois que voltasse do trabalho. No banheiro, escovo os dentes com uma mão e com a outra eu tento arrumar a massa revolta que meus cabelos castanhos formaram de forma violenta. Lavei o rosto. Os meus olhos estavam cheios de remela, inchados e vermelhos. Abri a tampa do espelho e peguei meu colírio. Pinguei duas gotas em cada olho e pisquei algumas vezes para espalhá-lo. Em breve a única cor dos meus olhos seria o castanho-médio, comum como sempre fora.
Olho para meu relógio traidor. Faltam quinze minutos para às oito da manhã. Hora que eu deveria estar entrando na "Companhia Roupas e Sapatos", a loja onde trabalho. Vesti meu jeans preto, pois estava com preguiça de ir com a calça social, e a camisa polo vermelha. O nome da loja estava escrito em letras garrafais brancas, na parte detrás da camisa.
Apanhei meu celular e o empurrei para dentro do bolso da calça. No outro enfiei o carregador. Peguei minha carteira e as chaves de casa e saí em disparada. Antes de sair, assaltei uma nota de vinte reais do Sr. Porqui, meu cofrinho com formato de porquinho, e corri para a loja.
~~~*~~~
— Está atrasado, Maurício! — Cíntia chamou minha atenção assim que botei os pés dentro do corredor para bater meu cartão no relógio de ponto.
Cíntia havia sido promovida a supervisora fazia uma semana e o poder já tinha lhe subido à cabeça. Ela tinha cabelos pretos e lisos, alguns reflexos vermelhos cintilavam de vez em quando com a luz. Estava com os braços cruzados. Seu olhar era severo. Aqueles olhos pretos pareciam me fuzilar. Nem parece a mesma garota meiga que trabalhava no setor de vendas comigo.
— Cíntia, me desculpe. Meu celular ficou sem bateria e...
— E você nunca ouviu falar em despertador? — Ela me interrompeu.
Engoli em seco. Meu Deus!
— Era isso que eu ia te dizer agora, ele também não despertou. Mas são só cinco minutos de atraso. — Tentei me desculpar e me encolhi. Quem sabe isso a faria ter pena de mim. Obviamente eu estava enganado.
— Bem, por hoje, acho que posso relevar. Mas estes cinco minutos serão descontados de sua hora de almoço, e... — ela disse zangada, sacou um bloco de notas e o consultou. — Deverá compensar mais cinco minutos após o expediente.
— Como é? — rebati perplexo. — De onde você tirou essa ideia absurda? Isso nem existe e...
— São as novas regras da empresa! Procure seu exemplar no RH, em breve faremos uma reunião — disse e sorriu sarcasticamente. Espalmou a mão e agitou os dedos. "Cinco minutos".
"Quer conhecer uma pessoa? Dê poder para ela", essa frase praticamente esbofeteou a minha cara naquele momento. Que droga!
Não tinha muito o que fazer, não é? Subi as escadas do vestiário e alcancei a área de serviços da loja. Contornei um pequeno corredor e saí na porta que dava acesso aos setores administrativos. Cheguei até a pequena sala onde ficava o pessoal do RH, telemarketing e contabilidade. Caminhei até a mesa de Clarisse.
— Mau, oi! — Ela sorriu de forma doce para mim.
Clarisse era ruiva e de olhos azuis. Os quais ficavam quase escondidos atrás dos óculos brancos no estilo aviador. Estava muito bonita hoje. Sua maquiagem cobria levemente as sardas que tinha. O batom rosa suave a deixava parecendo uma boneca. Ela realmente é muito linda!
— Oi, Clarisse — cumprimentei-a cabisbaixo, forcei um sorriso. Tenho certeza de que não fui convincente.
— O que houve, meu gatinho? — disse preocupada.
Ela sempre me chamava de gato ou gatinho após ter proferido as palavras "Maurício" ou "Mau". Eu sabia o motivo dela sempre fazer isso, mas esta já é outra história. Sacudi a cabeça levemente. Não podia deixar que a minha "amiga" Cíntia me deixasse para baixo.
— Devo ter levantado com o pé esquerdo hoje, só pode — respondi. Ela me lançou um olhar sereno e de comoção. — Vim pegar meu exemplar sobre as novas regras da empresa, Cíntia me disse que estava aqui.
— Ah, sim! Me perdoe. — Clarisse juntou as mãos. — Eu me esqueci de entregar o seu.
Clarisse levantou-se da cadeira e caminhou até um armário branco atrás de sua mesa. Vasculhou ali dentro, procurando o meu exemplar de "As Novas Maneiras de Encher o Saco do Maurício". Suspirei. Enquanto ela procurava o manual das boas maneiras — acho que Cíntia deve ter pensado isso também —, percorri o lugar com os olhos.
O ambiente era bem iluminado e amplo. Quatro boxes dividiam o espaço. Cada um com uma mesa, computador e pilhas de papéis, agendas e pastas cheias de documentos. O barulho dos dedos nos teclados era enlouquecedor. Não tinha reparado antes, uma música ambiente suave tocava acima de nossas cabeças. Olhei para as caixinhas de som no teto. Essa melodia, se eu bem me lembrava, era um som tirado de um violoncelo acompanhado de um piano. Um piano de cauda.
Como eu sabia? Fiz música até os onze anos de idade. Infelizmente minha mãe ficou muito doente e acabou não podendo mais custear as aulas. Reprimi essa recordação, arquivei-a no meu depósito de lembranças. Eu não queria ser músico, mamãe era quem queria. Sua avó fora uma grande compositora e violoncelista; já ela, coitada, não herdou nenhum talento para as artes musicais.
Vovô também não tinha talento algum, acabou-se que o talento musical da família havia parado no tempo. Minha mãe e meu avô não tinham tanto dinheiro para me ajudarem. Meu pai menos ainda, ele sofreu um terrível acidente após eu nascer. Uma parte do dinheiro que minha mãe recebeu do seguro foi usado para tentar garantir o meu futuro. Mais tarde mamãe precisou usar um pouco para custear seu tratamento quando adoeceu e o restante foi usado no funeral do vovô.
No final, minha mãe ficou apenas com a pensão mensal do governo. O que nos auxiliava com as contas básicas. Assim que eu atingi a idade que podia trabalhar, comecei a ajudar ela em casa. E assim estamos até hoje. Eu não sinto falta das aulas de música e nem me importo de ter parado com as aulas. O que eu gostava mesmo era de desenhar.
— Aqui está!
— O quê?! — Me virei, ligeiramente espantado. Estava tão absorto em meus pensamentos que até me esqueci de onde estava ou o que estava fazendo ali.
Clarisse gargalhou baixinho. Sua risadinha era delicada e engraçadinha. Meu rosto ficou vermelho.
— Pensando na namorada, Maurício? — ela comentou rindo e me entregou o pequeno manual com as novas regras da empresa.
Esfreguei meu pescoço.
— Sabe que não tenho namorada, Clarisse.
— Não tem porquê não quer! — ela disse. Olhei para ela. Seu olhar meigo e gentil se tornou em algo mais possessivo e sedutor, convidativo.
Sorri sem graça, agradeci e saí dali apressado. Podia sentir sobre meu corpo o olhar pesado e cheio de uma energia poderosa vindo de Clarisse. Desci as escadas até o piso inferior. Minha seção estava sendo vigiada por Lia, minha outra amiga, na verdade minha única mais íntima amiga, já que Cíntia havia passado para o lado negro da força. Terminei de ajeitar meu crachá e assumi meu posto.
— Lia, me desculpe por ter de ficar sozinha aqui — falei para ela, que estava se dividindo entre três pares de clientes ao mesmo tempo.
— Oi, Mau. Que isso, imagina. — Sorriu para mim, seus belos cachos dourados caindo por sobre o ombro, num rabo-de-cavalo e voltou-se para um casal que estava atendendo. — Ele vai terminar de atendê-los, está bem?
O casal assentiu e então terminei a venda. Claro que eu pagaria um suco para Lia, ou um sorvete, ou uma cerveja, ou um ingresso para o show anual no Vitor's. Uma balada onde rapazes faziam danças sensuais e outras coisinhas, Lia me contava cada história que eu ficava até com calafrios. Mas minha amiga merecia isso.
~~~*~~~
Contagem regressiva. Cinco. Quatro. Três. Dois. Um! Dezessete horas e trinta e seis minutos. Fiz questão de ficar um minuto a mais, para que Cíntia não tivesse o que falar. Já não bastava ter me cortado cinco minutos da hora do almoço, ainda me punia com mais cinco minutos de trabalho. Minha vontade era de ficar até às seis da tarde. E esfregar na cara dela. Mas não sou nenhum burro de carga.
Eu havia batido a meta do dia, até tinha conseguido realizar mais dez vendas além da minha cota. Pude respirar aliviado ao ouvir o barulhinho do meu cartão no relógio de ponto. Feliz? Não! Cansado? Sim! Bati as mãos no bolso em busca do celular. Ali estava ele. Cinquenta por cento da bateria. Aguentaria até eu chegar em casa.
Guardei-o de volta e encontrei os vinte reais. "Ah é, eu tinha dinheiro!", passei o dia todo sem comer nada, Cíntia me fizera esquecer. Com toda aquela história de desconta minutos, compensa minutos. Insuportável! Já que eu tinha dinheiro... Segui andando até um barzinho ali perto da loja. "Vícios". Cruzei a porta e logo fui recebido com uma salva de palmas.
— Hã? — murmurei para mim mesmo.
Então me dei conta de que as palmas não tinham sido para mim, mas para um tocador de saxofone num palco mais para o fundo do barzinho. Ah, que pena. Eu gostaria de ter ouvido, eu adorava jazz. Escolhi uma mesa vazia num dos cantos menos populares do local. Poucas pessoas, menos conversas, menos iluminação. Um ambiente perfeito. Levantei a mão e um garçom veio até mim.
— Pois não, senhor? — Ele se dirigiu a mim educadamente.
— Um suco natural de laranja, por favor.
Ele me olhou como se não tivesse acreditado no que eu tinha pedido. Mas fez uma leve reverência e saiu. Eu até queria tomar alguma coisa mais forte. Algo capaz de me nocautear. Mas ainda era quarta-feira e tinha mais três dias da semana para trabalhar. Uma sequência de aplausos seguidos de alguns assobios.
Me virei e vi que sobre o palco uma garota de cabelos escuros sentou sobre um banquinho. Estava vestida com um casaquinho preto (acho que é cashmere, não tenho certeza), uma saia bege e botas de cano longo. No alto da cabeça usava uma boina preta. Um rapaz andou apressado e lhe entregou um violão. Ela começou a cantar. Sua voz era extremamente bonita. Doce. O ritmo acompanhava o compasso. A letra era interessante. Meu suco chegou.
Peguei o canudo de papel e comecei a girar o suco, os cubos de gelo dançaram em um redemoinho laranja. A música da jovem cantora era meio triste. Me fez ficar triste. Não sei o porquê, apenas fiquei. De repente, uma figura emergiu das sombras e estacou perto de mim. À meia luz eu quase não identifiquei de imediato quem ou o que era.
— Tem alguém sentado aqui?
Era um rapaz. Forcei os olhos tentando ver como ele era e se o conhecia.
Ele então andou para o lado onde havia um pouco mais de luz. Caramba! Era bem mais alto que eu. Tinha cabelos negros e ondulados, ondas impressionantes de tão controladas. E olhos azuis-escuros, como as águas de um oceano profundo. Sua boca intensamente vermelha se curvava em uma forma travessa.
Sua voz era grave e melódica. Talvez fosse algum cantor sertanejo ou de rock. Afinal, ele tinha todas as qualidades para isso. Alto, bonito, charmoso, roupas elegantes e ainda por cima tinha uma voz bonita como aquela. Certeza que era cantor.
— Não, pode pegar a cadeira — respondi tranquilamente e suguei um gole do suco.
— Não disse que queria levar a cadeira. Quero me sentar aqui com você!
Engasguei com o pouco do suco que eu havia ingerido. Do que é que aquele cara estava falando? Havia umas trinta ou mais cadeiras livres no bar. E se não tivesse, solicitar a algum garçom não seria problema. Mas qual o motivo de ele querer vir e sentar aqui comigo? Tentei falar e respirar ao mesmo tempo, o que causou uma crise de tosse ainda pior. Vislumbrei algumas pessoas nos olhando. Ele contornou a mesa e veio para me socorrer.
— Está tudo bem? — perguntou, ficando muito próximo de mim. Me afastei um pouco, constrangido.
Aos poucos fui retomando o controle e vi quando as pessoas deixaram de nos olhar. Respirei fundo e afirmei que estava tudo bem. Ele endireitou a postura e se afastou.
— Eu disse que queria me sentar aqui com você. Se importa?
Sua voz saiu calma, como se o meu ataque nãotivesse acontecido. Seus olhos pareciam me hipnotizar. E talvez o tivessemfeito, pois não pensei mais depois disso. Apenas sorri que nem um bobo eassenti. Seu olhar se iluminou e ele sorriu também. Algo me dizia que aquelesorriso queria dizer muito mais do que eu podia ver.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro