Inimigo em casa
Alto Egito
Tebas
一 Onde se meteu? 一 Khalid questionou irritado quando finalmente avistou a menina andando distraída pelo jardim principal.
一 Desculpe senhor khalid, eu estava procurando pelo senhor e me perdi.一 Ela disse e o viu se aproximar dela tomando uma mexa de seu cabelo e a cheirando, causando estranheza na garota.
Khalid a encarou por instantes e Willa sentiu o peito bater mais forte, e se ele fosse mesmo um demônio? E se soubesse do acordo que ela havia acabado de formar?
一 Onde estava? 一 Ele epeguntou se aproximando dela o que a fez recuar um passo.
一 Eu... Eu... Eu achei que talvez Abdul ainda estivesse no palácio, eu procurava por ele. 一 Mentiu.
一 Eu já te disse pra esquecer essa besteira. Saiba que existem dois motivos pra se tornar um eunuco no Egito, o primeiro é pela fé e o segundo pela vergonha. Eu cortei a cabeça de Mohamed, mas eu não o matei, porque Abdul já tinha feito isso. Ele traiu o próprio sangue achando que obteria a simpatia de Menerptah. Mas não há nada que o faraó odeie mais do que a falta de lealdade.
一 Mentira 一 a jovem retrucou. 一Está mentindo.
一 Porque motivo eu mentiria? Agora vamos!
Os dias passaram rapidamente e assim como Pashedu a recomendou. Willa manteve os olhos atentos sobre seu senhor. No entanto além das saídas noturnas, nada parecia fugir do normal.
Khalid seguia uma rotina rígida, se exercitava e treinava com espadas durante quase toda manhã, almoçava e a tarde seguia para o posto do exército onde só retornava para casa no entardecer, se banhava, comia e bebia vinho ou cerveja, depois se trancava no quarto em orações. Em algumas noites Willa acordava com o ranger da porta, ele a observava por minutos e ela fingia dormir, depois descia as escadas em passos apressados e só retornava quando o dia já havia raiado. Não poderia dizer que era uma atitude suspeita, afinal uma vida noturna era algo comum aos homens.
Uma vez por semana, um garoto de não mais de oito ou dez anos começou a passar vendendo peixes e recolhendo as informações de Willa que nunca pareciam ter novidades.
一 Voltarei mais tarde hoje, irei com o chefe e engenharia analisar umas novas bigas, disse que são muito mais rápidas e estáveis. 一 Falou khalid enquanto rasgava um naco se pão e Willa assentiu com a cabeça. Desde que voltaram do palácio, a menina estava silenciosa e embora tenha adorado a ideia nos primeiros dias, começou a sentir falta das perguntas incansáveis da garota.
一 Está doente?一 perguntou arranhando a garganta.
一 Não senhor khalid.
一 Então esse silêncio todo ainda é por causa do príncipe eunuco 一 falou com um desdém provocativo.
一 Não senhor khalid, entendi que o senhor tem razão, tentarei agir de acordo com minha posição e assim as coisas serão mais fáceis. Deseja mais alguma coisa?
一 Não.
Willa esperou ate que não conseguisse mais avistar o cavalo de Khalid, ele disse que demoraria então era a oportunidade que esperava há dias. Não deveria ser tão dificil encontrar a casa de Nebhotep, sendo ele um homem tão importante. Colocou um manto sobre os cabelos e iniciou a caminhada a passos apressados.
Percebeu a mudança brusca do ambiente e viu que estava chegando perto da cidade alta, a parte rica onde a maioria dos cidadãos de prestígio viviam. Parou em uma fonte lavando o rosto para espantar o calor e finalmente decidiu perguntar sobre Nebhotep a um dos transeuntes e foi indicada uma casa próxima aos muros do palácio. Diferente da residência simples de Khalid, a casa de Nebhotep parecia um pequeno palacete. Muros baixos circundavam um terreno grande onde um belo jardim era cultivado. A fachada ostentavam duas colunas altas onde diversos hieróglifos foram entalhados . Willa abaixou-se a altura do muro de tijolos quando viu dois homens abrirem o portão principal. Espiou as duas figuras deixarem a casa e logo em seguida saltou a mureta, circundando a lateral da casa até os fundos. Não demorou muito para avistar Abdul, usando um saiote egipicio enquanto fazia um esforço enorme para levantar um machado e cortar a lenha. Willa percebeu que ele havia perdido muito peso, suas costelas estavam aparentes e em sua pele queimaduras solares as fundiam a feridas em diversos estágios de cicatrização.
一 Abdul 一 chamou-o sentindo o coração apertado.
O rapaz voltou-se a ela com um olhar confuso, a cicatriz em seu rosto estava com uma aparência um pouco melhor do que no outro dia, mas os olhos do rapaz continuavam mergulhados naquela profunda tristeza.
Abdul largou o machado e caminhou até ela rapidamente puxando-a pelo braço até os fundos de um depósito.
一 Você enlouqueceu? 一 Ele questionou afoito com um olhar de pavor.
一 Achei que estivesse morto 一 falou e tentou abraça-lo porém ele a afastou rapidamente.
一 Não deveria estar aqui Willa, vá embora por favor. O senhor Nebhotep... Se ele lhe encontra aqui. Eu não quero pensar no que ele faria, vá embora. 一 Ele pediu com o rosto virado para o lado tentando evitar que ela visse sua deformidade. Willa porém segurou seu queixo com a ponta dos dedos e o fez olhar para ela, beijando levemente seus lábios.
一 Senti sua falta. 一 Ela sussurrou e ele sorriu com lágrimas nos olhos a abraçando carinhosamente.
一 Também senti a sua, demais. Mas precisa ir, por favor. Não quero que Nebhotep a machuque. 一 Falou se afastando e segurando a sua mãos.
一 Achei que estivesse morto 一 ela disse com pesar 一 o que fizeram com você? Porque estão te torturando desse jeito?
一 O faraó acha divertido entregar membros da família real para que seus generais de sangue comum os torturem.一 Ele falou se afastando 一 Eles tiraram tudo de mim, tudo mesmo. Eu tentei acabar com isso, eu juro que tentei. Mas eu não consegui ir até o fim 一 Falou olhando pra uma cicatriz em um dos pulsos. Mas você parece bem 一 ele falou tocando levemente o rosto dela com o dorso da mão calejada. 一 E isso me alegra, também achei que estivesse morta.
一 O senhor khalid tem sido gentil. 一 Embora ela mesma achasse que gentil era um elogio grande demais para a maneira que era tratada, a grosseria de Khalid não se comparava aos castigos que Abdul claramente sofria. 一 Ele me disse que, que foi você quem matou Mohamed, é verdade?
一 E acreditou nisso?一 Ele questionou dirigindo um olhar firme a ela que balançou negativamente a cabeça. 一 khalid matou meu irmão e dizem que foi o faráo que matou meu pai, mas eu sei que não foi, foi ele. O demônio.一 Abdul respirou profundamente 一 Ele é um monstro Willa, e não estou repetindo o que egípcios dizem. Eu o vi em campo de batalha, os olhos dele, os dentes...
一 Eu ouvi coisas assim também, mas ele não é tão ruim... Ele é um guerreiro, serve ao faraó. Você viu coisas horríveis, machucaram você, deve ter imaginado isso.
一 Eu não imaginei nada! Ele não pode morrer, meu senhor disse que khalid já era general quando ele ainda era um menino sonhando em ser soldado e que não ganhou um fio de cabelo branco, que é amaldiçoado e que devora as almas a pedido de Anubis. 一 falou e Willa balançou a cabeça descrente 一 Gosta dele? Como pode? Ele destruiu tudo que tínhamos e amávamos?
一 Não! Eu juro que não. Eu só, não sei bem o que pensar.
一 Ele é um demônio talvez esteja entrando na sua cabeça, precisa ter cuidado. Me escute, há um porto em Denderah eu soube que eles transportam fugitivos, desde que paguem um preço. Eu não sei como conseguir ouro, mas podemos conseguir. Fugir daqui, o que acha? 一 Perguntou e ela assentiu com a cabeça, mas você precisa ir agora, meu senhor já deve estar chegando.
一 Quando eu te verei de novo?
一No templo de Isis, amanhã depois de que escurecer, Consegue ir até lá? A noite meus senhores não saem de casa e eu durmo aqui então eu posso sair sem ser visto. E você?
一 Eu vou dar um jeito.
一 Tudo bem, agora vá.
Willa seguiu o mais rápido que pode, mas o retorno parecia ainda mais longo, quando adentrou a cidade baixa aumentou a velocidade, praticamente correndo entre as pequenas ruelas. Não tinha permissão para deixar a casa e não sabia qual seria a reação de seu senhor se não a encontrasse. Ao dobar uma curva sentiu um puxão rápido pela cintura e seu corpo ser prensado contra a parede ao mesmo tempo que sua boca foi tapada por uma pesada e quente mão.
一Olá menina, lembra de mim. Quase não a reconheci tão limpa e nesse lindo vestido de uma senhora rica. 一 ela reconheceu a voz, rosto barbado e dentes podres de kassim, o homem que tentou assalta - la na outra noite.
Willa resmungou e relutou tentando se soltar. Mas ele deixou que ela se afastasse da parede só o suficiente pra que a empurrasse com força novamente a deixando tonta com a pancada.
一 Tem alguma preciosidade com você. Falou tirando a mão da boca dela e deslizando pelo corpo a procura de algo valioso. 一 Nada?
一 O senhor khalid... 一 Ela disse sentindo uma dor aguda na cabeça e escorregou pela parede manchando-a de sangue e sem reação quando kassim a soltou.
一 Diga-me há tesouros na casa de Khalid como dizem? 一 Kassim abaixou-se a altura dos olhos dela, mas estava tonta demais para processar as palavras dele. Sentiu seu corpo ser arrastado para dentro da casa e outras vozes masculinas adentraram seus ouvidos.
一 Kassim eu disse que não devia mexer com essa garota, ela é do general.
一 Foda-se o general, eu não tenho medo daquele demônio de sangue ruim. Veja que beleza? Já viu uma mulher assim por aqui? Com olhos de água e cabelo de sol 一 disse pegando algumas mexas do longo cabelo de Willa e cortando-o em seguida com uma faca.一 Não parece que foi beijada por Isis e Amon ao nascer? 一 Falou segurando o rosto de Willa que tentava empurra-lo desordenadamente. 一 Calma, calminha. Eu serei gentil, eu prometo.一 Falou tentando beija-la e ela virou o rosto
一 Ouro... 一Ela disse 一 Ele tem muito ouro e não está em casa. Por favor...
一 Ei do que está falando? Na casa do senhor khalid? 一 Falou dando leves tapinhas no rosto da jovem tentando mantê-la acordada.
一 Pressione a cabeça dela, está sangrando muito, seu idiota 一 resmungou um velho alcançando um pano.
Depois que a noite caiu, embora ainda debilitada, Willa já tinha recobrando a consciência. Permaneceu sentada próxima a parede com a cabeça afundada nos joelhos em posição fetal até que o velho se aproximou dela e disse que era hora de ir.
Ela acompanhou os três homens pelas ruas apertadas e depois seguiram subindo a colina até a casa de Khalid que estava em uma escuridão plena. Willa se perguntou se ele ainda não havia voltado ou se saiu para procurar por ela, de qualquer forma ela estava sozinha e sabia que não sobreviveria aquela noite.
一 Anda, vamos. 一 Eles a empurraram porta dentro e começaram a vasculhar o primeiro andar.
一 Não tem nada aqui?! Achou que ia nos enganar vadia?! 一 gritou kassim no rosto dela.
一 No alçapão, embaixo do tapete.一 Ela indicou e kassim puxou o tapete, o velho e depois as alças do alçapão e kassim saltou para dentro.
一 Estamos ricos! Ricos! 一 gritou o velho e chamou o terceiro homem para dentro que imediatamente enfiou a cabeça para dentro observando o brilho reluzente do ouro ali depositado.
一 Pelos Deuses 一 Kassim sorriu soltando a jovem e voltando-se ao achado 一 Isso parece a tumba de um faraó 一 falou e
Willa rapidamente varreu o olhar pela estreita escada e avistou os pés de Khalid, que observava silenciosamente os homens. Percebendo que estavam distraídos e maravilhados, a garota subiu as escadas em alta velocidade, chegando até Khalid, que abriu espaço para ela passar antes de descer e desferir um golpe de espada no abdômen de Kassim, que tentava alcançar a menina.
O sangue escorreu pela barba suja do homem, que soltou um gemido agudo enquanto encarava os olhos cinzentos do guerreiro à sua frente. Khalid empurrou o corpo com um chute frontal, fazendo com que a espada deslizasse para fora dasentranhas do homem e o sangue fresco respingasse no chão, chamando a atenção dos outros dois que, armados com facões afiados, avançaram na direção dele.
Enquanto Willa ouvia o tilintar do ferro e via as faíscas iluminarem a escuridão do casebre, a luta durou apenas alguns segundos. Kassim teve a garganta cortada e seu corpo foi jogado sobre o do amigo, que não escapou de um golpe entre as costelas, perfurando seus pulmões e lhe proporcionando minutos agonizantes antes da inevitável morte. A menina permaneceu estática, colada à parede, amedrontada com o semblante assustador de seu senhor.
Khalid se aproximou dela com os olhos amarelos-ouro fixos nela, como os de um chacal que espreita sua presa. De perto, o cheiro de sangue fresco que escorria da boca de seu senhor inundava suas narinas. Ela tentou se fundir com a parede de barro enquanto seu corpo tremia de medo. Mesmo na pouca luz, conseguiu perceber que suas mãos agora apresentavam garras proeminentes e aparentemente afiadas. Seu rosto estava coberto por mais pelo, e sua expressão era feroz, com dentes pontiagudos projetando-se para fora.
Ela virou o rosto e fechou os olhos quando sentiu o toque quente e viscoso do sangue em sua mão ao tocá-la suavemente em seu rosto. Lágrimas escorreram de seus olhos quando o ar quente saiu da boca de Khalid.
Foi a primeira vez que Willa ouviu seu nome sussurrado pela boca de seu senhor.
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