Caos no palácio - IV
Abdul retornou a seus aposentos sentindo o peito acelerar com força, envolvendo o colar em uma tira de linho o qual amarrou junto a cintura. Naquele instante correu o olhar pelo imenso cômodo vazio. Era o quarto favorito de seu senhor e sempre que estavam no palácio o general exigia acomodar-se nele. E não eram poucas a noites que passavam ali, Nebhotep costumava dizer que o faraó se sentia seguro em sua companhia, mas a verdade é que ele adorava desfrutar dos luxos cedidos pelo faraó. Luxos os quais Abdul mesmo o acompanhando em todas as estadias, jamais pode desfrutar. Sua cama era um tapete velho no quarto de banho e tudo que podia comer eram as sobras de Nebhotep. Uma vez ou outra o general lhe lançava um pedaço de carne intacto ao chão para que pegasse, na primeira vez Abdul mesmo faminto deixou que seu orgulho falasse mais alto e não aceitou o regalo dado como a um cão, mas depois de sentir tanta fome e ver suas costelas cada vez mais aparentes, lutaria com os cães se fosse preciso.
Correu um olhar cuidadoso pelas paredes meticulosamente detalhadas, retratando deuses e faraós em tons vibrantes de azul, verde e dourado. O chão, coberto por tapetes tecidos à mão, que amortecia cada um de seus passos, enquanto ele se aproximava da imponente cama no centro do quarto. Elevada do chão e adornada com um dossel majestoso, a cama parecia um refúgio de tranquilidade e luxo.
Cruzou a mão pelos lençóis macios, olhou em volta e decidiu que não se privaria daquela sensação, em dois dias nunca mais pisaria num palácio o plano sendo um sucesso ou não. Sentou-se e depois jogou as costas contra o colchão macio de penas. Fechou os olhos e por instantes se sentiu em casa, seguro, confortável e levou poucos minutos para adormecer.
Um sono sem sonhos, mas também sem pesadelos como costumava ter.
Acordeou abruptamente com um baque surpreendente, seguido por um grito breve que escapou de seus lábios e a dor lascerante de chutes contra a suas costas.
一Pare com isso Nebhotep!一 Ouviu a voz da esposa de seu senhor clamar em meio ao choro desesperado do bebê. 一 Já é madrugada, seus filhos estão vendo.
一Ótimo, assim aprendem como se deve lidar com servos folgados. 一 berrou irritado levantando Abdul pelos cabelos 一 Ainda acha que é um príncipe eunuco? 一 falou jogando novamente o rapaz contra o chão.
Abdul reuniu as forças para tentar escapar dos chutes rastejando em direção a sua senhora para clamar misericórdia, antes de sentir a força de Nebhotep puxa-lo pra cima e e lança-lo, como se nada pesasse, contra uma das colunas.
Sentiu a boca preencher-se de sangue e encolheu-se esperando o próximo golpe que não aconteceu nos próximos segundos. Quando levantou o olhar viu Nebhotep e a esposa olhando confusos para a joia que desprendeu de sua roupa.
一 Não. Não é minha, mas de longe da pra se ver que é valiosa. 一 Confirmou a mulher.
一 Além de imprestável é um ladrão?! Eu abriguei um ladrão dentro de minha casa!
一 Não.. não eu não roubei 一 ele disse tentando se afastar rastejando de Nebhotep que caminhava de forma intimidadora na direção dele. 一 Foi Willa, ela me deu... o senhor Khalid deu a ela... Eu não roubei, eu juro. 一 falou se curvando aos pés de Nebhotep. Foi um presente, eu juro..
一 Levante-,se e vá até o pátio. Agora eunuco! Levante-se!
Seus braços tremiam e suas pernas pareciam pesadas como chumbo, cada movimento exacerbando as dores que percorriam seu corpo machucado. Cada respiração era um esforço, mas fez o que pode para de por em pé. Percorreu o olhar com a visão turva pelo quarto e vou o rosto de raiva de Nebhotep e o espanto de sua esposa que tentava controlar o choro de uma das criancinhas. Com um passo hesitante, Abdul começou a caminhar para fora do quarto sendo escoltado por Nebhotep até o pátio. Quando não pode mais andar seu senhor arrastou-o pelo colarinho chamando a atenção de alguns soldados e transeuntes que olhavam curiosos, mas sem nenhuma intenção de intervir. Quando encontrou a privacidade necessária Nebhotep lançou Abdul contra o chão.
一Eu juro... Eu não roubei... Eu não... 一Pode perguntar , eu trago ela aqui, tenha misericórdia meu senhor. 一 implorou vendo Nebhotep desprender a kopesh da cintura. 一 Ela era minha noiva, em me deu o colar.
一 Eu não vi Khalid, muito menos a sua serva.
一 Mas eles estão no palácio. Estão aqui, num quarto que faz parte da área da casa real 一 ele disse com dificuldade. 一 Eu estive com ela mais cedo.
一 Na casa real? Junto ao faraó? Porquê o faraó daria um quarto próximo a ele a aquele demônio de Anubis?
一 Eu não sei, talvez ele não saiba que Khalid matou um faraó e por isso foi amaldiçoado.
一 Qem lhe disse isso? 一 Nebhotep o encarou com uma expressão incrédula. 一 Que faraó?
一 Eu não sei ele contou a Willa, não disse quem foi, só que faz muito tempo. Talvez a grande Dama Neferet saiba, Willa disse que eles são próximos. Eu sei o quanto odeia o general Khalid, ele confia em Willa e ela em mim, eu posso lhe ser muito útil meu senhor, por favor não me mate. 一 Abdul falou curvando- se aos pés de Nebhotep.
一 Levante-se. Precisa repetir o que me disse a Pashedu.
***
Os primeiros raios de luz, mal começaram a iluminar o horizonte quando Khalid despertou. O silêncio do palácio era quebrado apenas pelo suave respirar da sua serva, Willa, que dormia tranquilamente em um canto do quarto sob algumas almofadas. Ele observou-a por um momento, os traços serenos de seu rosto banhados pela luz fraca que entrava pela janela. Uma onda de pensamentos invadiu sua mente enquanto ele se perguntava o porquê de se importar tanto com ela.
Ela era apenas uma serva, no entanto, algo nela tocava seu coração de uma maneira que ele não conseguia compreender completamente. A gentileza, alegria e a coragem silenciosa de Willa eram qualidades que ele admirava profundamente, qualidades que muitas vezes faltavam em outros que ele conhecia Khalid sabia que desafiar uma ordem do Deus Anúbis era um risco imenso. As consequências poderiam ser graves. No entanto, ele não conseguia ignorar o sentimento escente dentro dele, o desejo de protegê-la, de garantir que ela estivesse segura.
Com um suspiro, Khalid se afastou em direção a varanda. Decorada com móveis elegantes, talhados em madeira escura e adornados com almofadas macias em tons terrosos, era uma mistura de paz e requinte. Ele se posicionou diante da balaustrada, olhando para o horizonte onde o sol estava prestes a nascer. O céu estava tingido de tons suaves de laranja, rosa e dourado, criando uma paisagem celestial que parecia pintada à mão.
O general respirou profundamente, enchendo seus pulmões com o ar fresco da manhã, misturado com o aroma das flores do jardim. Ele fechou os olhos por um momento, permitindo-se sentir a serenidade do momento, o silêncio que precedia a agitação do dia. Os primeiros raios de sol tocaram seu rosto, aquecendo sua pele e iluminando seus olhos com um brilho suave. Por instantes, Khalid se sentiu em paz, conectado com algo maior do que ele mesmo.
一Senhor khalid 一 ouviu a voz resmungada de Willa cortar seu momento se contemplação.
一 O que é? 一 Perguntou sem paciência.
一 Eu pensei a noite toda, e só consigo encontrar um motivo para Anúbis me querer morta. 一A garota fez uma pausa e ele assentiu com a cabeça para que continuasse. 一 Meu pai vai lutar uma guerra em meu nome. 一Ela disse com um tom visivelmente orgulhoso e Khalid sorriu balançando a cabeça 一 Do que está rindo? Eu sou uma princesa acha que ele não lutaria por mim.
一Ele colocou você num navio e te mandou pra longe de casa quando mal tinha saído dos cueiros, acha mesmo que ele iria declarar guerra ao maior império da terra por você? Sabe o que homens poderosos fazem quando perdem um filho? Eles fazem outro. Então princesa, apenas esqueça da sua vida de antes pois ela está morta para você para sempre e quanto mais cedo entender isso melhor será 一O tom de Khalid era sério, mas permeado por uma tristeza profunda que fez Willa entender que a conversar não era mais sobre ela.
一 Foi isso que aconteceu com você? Seu pai te mandou pra longe de casa? 一 Questionou com um olhar triste e empático a dor que ela conhecia bem. Enquanto seu senhor depositava um olhar surpreso sobre ela.
一 Chega de conversa, estou faminto. Faça o seu trabalho. 一 disse findando a conversa e se voltando a balaustrada com um olhar perdido ao longe.
Willa curvou o corpo em reverência e tratou de fazer o que Khalid havia lhe pedido. Embora fosse um pouco confuso caminhar pelo palácio não demorou muito para encontrar a cozinha, com um cenário caótico diante de seus olhos. O espaço amplo estava repleto de servos, cada um ocupado com sua tarefa, buscando preparar o desjejum dos senhores hospedados ali. O aroma de pães recém-assados e especiarias misturava-se ao burburinho das vozes e ao som dos utensílios sendo manuseados.
Enquanto se esgueirava entre os ocupados funcionários, Willa avistou o balcão com bandejas e espaço onde pudesse preparar o desjejum do general. No entanto, seu caminho foi interrompido quando seus olhos se encontraram com os da grande dama Neferet, uma figura imponente que supervisionava os preparativos feitos por duas jovens garotas com uma expressão serena.Willa hesitou por um momento, surpresa ao encontrar Neferet ali, em meio ao tumulto da cozinha. Tentou manter sua compostura enquanto se aproximava do balcão, onde Neferet a observava atentamente.
一Boa manhã, senhora Neferet,一 cumprimentou Willa, elevando um pouco a voz para ser ouvida acima do ruído ao seu redor.
A grande dama ergueu um olhar calmo para Willa, seus olhos escuros estudando-a por um instante antes de responder com um suave aceno de cabeça. 一Boa manhã, jovem Willa. O senhor Khalid já despertou?
一 Sim, senhora. Estou aqui para buscar sua refeição 一 respondeu Willa, tentando manter o foco apesar da agitação ao seu redor. A grande dama assentiu, permitindo que Willa se aproximasse do balcão e preparasse a bandeja com o desjejum do general. Enquanto trabalhava, Willa podia sentir o olhar penetrante de Neferet sobre ela, como se a grande dama estivesse avaliando cada movimento.一 Precisa de alguma coisa senhora? 一 perguntou em tom áspero tentando findar o interesse incomodo da mulher sobre ela.
一 Pegue algumas uvas, ele parecia muito o sabor delas.
一 Pelo apreço que ele tem por vinho, deve mesmo gostar. Nunca em toda minha vida vi alguém beber tanto quanto ele. 一 respondeu servindo-se de alguns cachos.
一 Apesar de você ainda ter pouca idade para fazer esse tipo de comparação, sim, devo concordar. Mas em defesa do general ele precisa beber o triplo que qualquer homem para sentir-se embriagado. E a bebedeira o faz lembrar de como era ser puramente humano. 一 ela disse se aproximando em um tom tão baixo que Willa mal conseguiu escutar 一 Isso e estar entre as pernas de uma mulher que sabe o que fazer com a dádiva que os deuses lhe deram 一 sorriu um sorriso malicioso que fez o rosto de Willa corar. 一 olha só pra você está vermelha como uma pimenta.
一 Não gosto de falar sobre esses assuntos, senhora Neferet. Respeito seus costumes e seu... Seu trabalho na casa Senet, mas cresci sobre outros valores.
一 A maioria cresce e sabe porquê? É um mundo dominado pelos homens, mesmo aqui no Egito onde gozamos de certas liberdades que em outros lugares são totalmente proibidas. Nos manter presas a dogmas e convenções sociais nos torna incapazes de descobrir o quão poderosas somos. Nem os deuses podem resistir a uma mulher consciente de seu poder e que sabe usar as armas que tem. 一 falou levando a ponta dos dedos ao queixo de Willa, forcando-a a levantar o olhar a ela. 一 Um Deus te quer morta, se quer viver o suficiente pra ter rugas como eu, é melhor matar de vez a princesinha tola que há em você e agir como uma mulher. Mas não qualquer mulher, uma mulher inteligente.
一 Como você? Me desculpe, mas por mais bem vestida que esteja ainda não passa de uma prostituta numa casa de Senet. 一 respondeu recuando o rosto com o semblante fechado e Neferet sorriu mais uma vez .
一 É isso que pensa? Bem não posso dizer que escolhi a minha vida, afinal eu tinha menos que a sua idade quando meu pai me vendeu ao primeiro Jafar, mas quando Sekmet me fez perceber onde eu poderia chegar e me dediquei a isso, nunca mais precisei abrir as pernas a um homem que eu não desejasse. Quantas mulheres podem dizer o mesmo? A maioria na melhor das hipóteses passa a vida presa a um casamento arranjado onde é usada como mera parideira até que fique velha e morra. Eu dispenso esse tipo de vida.
一 E não te incomoda nenhum pouco ser uma desgraça diante de Deus ou mesmo dos deuses estranhos que cultuam aqui? 一 Questionou a jovem.
一 Querida para os deuses eu, você, Khalid e até o próprio faraó não passamos de animais que servem aos seus propósitos. Você vale o mesmo que uma mosca para eles. Então o mesmo conselho que dou sobre homens serve aos deuses; respeite os, mas não viva para eles.
一 Preciso levar o desjejum de meu senhor, com licença senhora Neferet. 一 disse Willa passando por ela com a bandeja em mãos.
一 Espere, vou com você.
Quando Willa e Neferet saem da cozinha, um guarda se aproxima com uma expressão séria. Ele pede para Willa acompanhá-lo, seu tom deixando claro que é uma ordem. Neferet olha para Willa com preocupação enquanto ela se prepara para seguir o guarda.
一Sobe o que se trata? 一Neferet intrometeu-se 一 Ela fez algo errado? Se sim imagino que devam chamar também o seu senhor, o general Khalid.
一 São ordens de Nebhotep.
一 Se não há nenhuma acusação, não há motivos para Nebhotep solicitar a presença dela. Diga para que fale com o Senhor Khalid.
一 Disse que é sobre Abdul. Falou o guarda e Neferet viu a expressão de Willa mudar no mesmo instante.
一 Eu ... Eu não devo demorar senhora Neferet. Por favor Abdul é um grande amigo, por favor não conte nada ao senhor Khalid, não devo me demorar .一 Disse a garota visivelmente preocupada e Neferet deu os ombros.
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