A entropia do ofício
Entropia significa aleatoriedade, dispersão de matéria e energia, e desordem de um sistema termodinâmico. Quanto mais alta for a entropia, maior é o nível de agitação e de desorganização das moléculas.
É assim que Clarisse se sente, no meio do caos, desordem, bagunça. Mas não uma desorganização de moléculas, e sim emocional.
Ela havia acabado de colocar água com cloreto de cálcio dentro de um becker, que é um tipo de recipiente de laboratório. Iria aquecer a substância no agitador magnético a uma certa temperatura, havia até pegado o termômetro. A aula era sobre dissociação de sais, e após a demonstração física, iria escrever no quadro branco a explicação desse processo químico usando algumas fórmulas.
Tudo estava preparado, Clarisse realmente queria dar aquela aula. Mas afinal, o que aconteceu? Por que ela não continuou a aula que havia preparado com tanta empolgação na noite anterior?
Ela está chorando compulsivamente em um laboratório universitário, um choro que para todos parece repentino e sem motivos, mas que para essa jovem mulher faz total sentido. E logo empurram sua cadeira de rodas para outro local, sem pedir autorização, nem perguntaram se ela queria ser levada para longe dali.
Não, Clarisse com certeza não queria sair de lá, o laboratório é sua fortaleza, seu porto seguro, o local de amparo e segurança, cheio de boas lembranças e conquistas. Mas a liberdade de ir e vir lhe foi abruptamente retirada, e ela se vê numa sala totalmente branca, cuja única cor está num quadro vibrante com pintura de girassol.
Uma mulher que parece se esconder no meio de tanto branco, pois também usa roupas em cores semelhantes às da sala, abre um sorriso para Clarisse e diz:
_ Fique tranquila, vai ficar tudo bem. Sou a doutora Aline, psicóloga e professora responsável pela clínica escola da universidade, você está em um dos consultórios disponíveis na clínica.
Clarisse está confusa. Foi parar ali por causa de algo tão simples de resolver? Tudo o que ela queria era que perguntassem, falassem com ela, compreendessem e acima de tudo, desejava que realmente a incluíssem. Não precisava que a empurrassem tão rapidamente para uma clínica, se sentia como um amontoado de poeira escondido debaixo de um tapete para não ser visto pelas visitas. No caso, o amontoado de poeira era ela mesma e as visitas eram seus alunos.
Ela enxuga as lágrimas do rosto, olha para a doutora Aline, com os olhos semicerrados por causa da camuflagem em meio a tanto branco, dizendo:
_ Quer dizer que não conseguiram lidar comigo, e me dispensaram do meu trabalho para vir numa clínica escola, como se eu fosse um nada? Com todo o perdão, doutora, não é desvalorizando seu trabalho não, eu só acho que não preciso disso.
_ Tranquilo, não estou aqui para julgar, tudo bem se acha que não precisa de mim. Mas terá que permanecer na clínica até quando acharem necessário, regra da instituição, eu sinto muito _ doutora Aline responde com um olhar compassivo e sorriso dócil.
Clarisse pensa no que fará ali, não tem nada para se distrair naquele lugar e não pode sair por causa de uma regra ridícula. Ela questiona em seus pensamentos o porquê de um trabalho ter que ser dessa forma. Não podia ser como nos seus sonhos? A distância entre expectativa e realidade está tão grande, isso é tão desanimador, quase como se tivesse um elétron na camada K e ela estivesse lá na camada Q, bem distante do seu objetivo.
Como não há nada para fazer, desabafar não pareceu má ideia, então começou a falar:
_ Doutora, eu só quero fazer um bom trabalho, mas sinto que as pessoas me menosprezam por eu ser uma professora diferente. Faz um ano que apresentei minha tese de mestrado e fui aprovada, aí saí atrás de um emprego, afinal havia passado a vida toda apenas estudando.
Clarisse espera uma resposta, mas a psicóloga não diz nada, apenas fica olhando como se ouvisse atentamente e esperasse por mais falatório. O silêncio é um pouco desconfortável, por isso questiona:
_ Não vai me dizer nada? Só eu tenho que falar mesmo?
Doutora Aline responde:
_ Hoje é sua vez de falar e eu só irei ouvir, talvez até fazer umas perguntinhas quando for necessário. Se não quiser dizer nada, a decisão é sua. A única regra é que só poderá sair dessa clínica daqui a uma hora, e não é uma regra minha, sabe.
Clarisse continua sua história:
_ Eu fiz a graduação, achei que iria trabalhar logo, mas minha mãe impediu dizendo que somente após o mestrado eu poderia fazer o que quisesse. Sim, foi feito de acordo com o que ela prometeu. Procurei trabalho em tantos lugares, mas não tinha vaga para PCD (pessoa com deficiência), e quando tinha a vaga, não era o que eu queria, o emprego oferecido não fazia parte da área que eu sonho, que é a área da química. Foi tão decepcionante para mim.
Houve mais um silêncio, Clarisse olhou para a psicóloga. Que mulher encantadora, ela exalava poder, sentada em posição dominadora, deve ter tido muitos estudos e experiências profissionais, com certeza uma dama de reconhecimento e uma acadêmica respeitável, parecia uma rainha sentada num trono. Clarisse desejou ser tão incrível quanto doutora Aline, mas resolveu continuar falando, precisava desabafar:
_ As pessoas inventavam desculpas para não fazerem contrato, chegaram a falar que minha função era no segundo ou terceiro piso, e com essa cadeira é muito difícil chegar lá, até queria que ela voasse, ia facilitar tanto minha vida. Infelizmente, como mamãe fala tantas vezes "querer não é poder" e o mundo sempre jogou essa frase na minha cara. Quando não existem rampas, quando fico de rodas entaladas num buraco na calçada, quando as rampas são íngremes demais e a cadeira vai caindo pra trás, quando perguntam o porquê estou só, quando a vaga de estacionamento que deveria ser minha está ocupada por uma pessoa que não precisa dessa vaga, quando fazem o banheiro adaptado de depósito porque quase ninguém usa, enfim, em todos esses momentos disseram que não tenho poder para ter uma vida adulta independente e isso me frustra bastante.
_ Foi por esses motivos que você chorou durante a aula? _ a psicóloga perguntou.
Clarisse ficou pensativa, sua cabeça rodava em meio às lembranças, havia mergulhado de vez num oceano de memórias, as águas imaginárias a impediam de falar, tentou abrir a boca mas nenhum som saía, até que algumas gotas desse oceano escaparam na forma de lágrimas que escorriam em sua face. A doutora Aline entrega um pacote de lenços de papel, porém a paciente está mergulhando e chegando em partes mais profundas, não conseguindo pegar o lenço.
Nossa querida professora de química se sentia vulnerável, as emoções tomam controle de forma que não queria. Por que não poderia ser como essa imponente mulher que a olhava com calma, parecendo inspecionar cada canto de sua alma fragilizada?
Clarisse era uma mulher, mas a sensação era de que havia tido um retrocesso e virado uma menina. O motivo do choro? Direi agora, pois nossa personagem não consegue se expressar nesse momento.
Quando entrou naquele laboratório e se apresentou como nova professora, seus alunos ficaram surpresos e encararam sua cadeira de rodas, mas isso já era o esperado. O problema foi amplificado por cochichos e falta de atenção durante a aula, ela havia virado a atração e o assunto da vez, os cloretos foram completamente ignorados, era perceptível que falavam de suas diferenças e isso fazia com que resgatasse um passado distante, nos anos em que sofria bullying na escola.
Queria abraçar Clarisse, fazer carinho dizendo que esse momento de entropia e agitação emocional em seu ofício e também em sua vida um dia irá acabar, tudo ficará bem, ela alcançará seu potencial máximo e terá capacidade de ser como a maravilhosa psicóloga Aline. Mas não tenho como abraçar e dizer essas palavras.
Não ficará tudo bem enquanto ainda estivermos numa sociedade capacitista, que recusa oportunidades, impõe limites às nossas capacidades, mina nossa autoestima e destrói a saúde mental de milhares de pessoas com deficiência.
Não posso abraçar nem receber abraços porque morri. Engraçado como me mataram e culparam a própria vítima. Fui eliminado por barreiras arquitetônicas, exclusão social, piadas de mal gosto, falta de empatia, humilhações, aos poucos a morte foi vindo e eu só encerrei o pouco que faltava.
A vida de várias pessoas com deficiência é parecida com um sistema termodinâmico em aquecimento na química, com bastante moléculas e átomos em desordens, imprevisibilidades, desequilíbrios e muitas dispersões.
Após meu falecimento, escrevo aqui um pouquinho da vida de Clarisse na expectativa de que os poucos leitores que leem minhas palavras olhem os arredores e acolham as diferenças, recebi a missão de escrever histórias e evitar que mais mortes como a minha ocorram.
Só não queiram saber minha história, é trágica, entrópica demais até para mim mesmo. Aqui me despeço, sabendo que cumpri mais um objetivo. Quem sabe eu escreva histórias de outras pessoas? Ou talvez não, não sei se consigo contar mais sofrimentos.
Agora essa alma precisa descansar. Adeus.
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