Vinte e seis: enfrentar o medo
Paula chegou a sua casa no início da manhã. Apesar de algumas placas com mensagens de indignação a respeito da situação política e um pouco menos de carros pelas ruas, São Marcos não parecia estar em guerra, como seu pai já havia lhe explicado. Mas, com a diminuição dos negócios na clínica, ele e Mariana haviam se mudado para uma casa menor.
Sentiu o cheiro de feijão fresco e sorriu. Tocou a campainha e Mariana, com sua barriga de seis meses de gravidez, abriu a porta sorrindo. Agora que viviam em mundos diferentes, Paula finalmente se dava bem com o pai e a madrasta. Inclusive sabia que eram dois bebês, que se chamariam Denise e Renata, conhecia todos os detalhes sobre a gestação, sobre o quarto que dividiria com elas quando viesse a Gaia e até sobre o parto.
Paula entrou na casa e recebeu o abraço do pai, ela sentia que precisava estar com pessoas que também quisessem estar com ela. Conversaram amenidades e depois ela foi até seu novo quarto, alegando precisar organizar suas coisas.
Pegou um batom nas mãos, ele estava um pouco ressecado, mas ela passou nos lábios mesmo assim. Olhou-se no espelho e franziu a testa, ao mesmo tempo em que se achava bonita com ele, se achava estranha, como se nunca tivesse usado maquiagem na vida. Então, deitou-se na cama, que ficava entre os dois berços. A claridade estava batendo em seu rosto e ela cochilou, achando um sol insuficiente para aquecê-la...
Nos primeiros dias tudo era outra vez interessante, mas ali também, as pessoas tinham sua rotina. Ela cogitou ir à zona de guerra, como os guardiões haviam comentado, mas seu pai a convenceu a não se arriscar sozinha. Voltar a ter aulas não era uma opção já que ela havia largado a escola e não tinha vontade de reiniciá-la. Também não quis visitar a academia, ou procurar velhos conhecidos como Rodrigo, pois teria que inventar alguma história e ela não tinha energia para isso. Passava boa parte do dia dormindo ou assistindo televisão. Era óbvio que Celso e Mariana reprovavam a situação, mas não queriam pressioná-la.
E numa noite, quando voltava de uma caminhada, Paula encontrou Madrini sentada na guia, em frente à casa de Celso.
– O que você tá fazendo aqui?!
– O que você está fazendo aqui? Isso sim. Eu vim te buscar, de novo! – Madrini se levantou e a abraçou.
Paula deu um curto sorriso enquanto abria porta. Madrini continuou com a bronca:
– Posso saber por que você veio para Gaia? E sem deixar nem uma mensagem?
– Ah... Cada um tinha suas coisas... Eu quis... Eu pensei...– ela respirou fazendo barulho – Eu precisava pensar.
– Você deveria ter me dito algo! Parecia que estava tão bem!
– Não quis incomodar. Achei que... Mas aqui também...
– Achou que ninguém precisa de você em Antaris?
– Acho que não pertenço a lugar nenhum. – Paula disse sem olhar Madrini nos olhos.
– Ah, pertence sim! Essa sua curta ausência... – e o sorriso desapareceu do rosto de Madrini.
– O que foi?
– Nós temos que voltar agora. A guerra de Nialon e Alamandá... Recomeçou... E o palácio Imperial foi tomado... Por Datemis.
– O que?! – Paula gritou. – Mas não estou aqui nem há um mês... Como isso é possível? –Correu para o próprio quarto e começou a colocar suas poucas coisas numa sacola.
– As pessoas não esperam. O povo exigiu um líder e o palácio estava vazio, não há mais ninguém da sua família para herdar o trono. E o Conselho não sabia o que fazer, o correto seria procurar algum parente distante, mas... Há alguns dias, Datemis invadiu o palácio e está convencendo o povo de que ela é essa herdeira. Ela está com os soldados da escuridão, novos soldados, e ninguém é capaz de lutar contra ela.
– Os Amuletos! – Salesh gritou.
– Sim, eles estão no palácio e em breve começaremos a ser caçados pelos soldados. O seu – ela apontou para o brinco que a princesa nunca tirava – é o único que temos agora.
– Eu sabia. Pérola avisou, mas não levamos a sério!
Madrini lhe deu um olhar pesaroso em resposta:
– Eu sei.
– E agora a guerra recomeçou...
– E não é a única guerra. Outras cidades também estão começando a ter conflitos.
Salesh arregalou os olhos.
Após uma rápida despedida, ambas entraram no carro com destino ao portal em Santa Barbara.
– Datemis simplesmente apareceu lá um dia, abriu a porta e invadiu?
– Basicamente isso.
– E Nita? E os soldados? E Lótus?
– Não sabemos sequer se estão vivos.
Os olhos da princesa se encheram de lágrimas. Madrini rapidamente continuou:
– Mas você não estar lá não significa que Datemis não teria atacado de qualquer jeito. Aliás, e se você estivesse lá, despreparada?
Salesh apenas concordou com a cabeça e permaneceu calada o resto da viagem. Ela sempre estava despreparada.
Quando chegaram a Antaris tiveram que correr para sair dos jardins antes que alguém as visse. Elas precisavam reunir os guardiões, recuperar os Amuletos e o palácio.
Depois de pularem os portões, Madrini guiou Salesh por algumas ruas e chegaram às poucas barracas de comerciantes que ainda insistiam em manter as atividades noturnas.
– Há uma pessoa que vai nos ajudar, ela com certeza tem flutuadores para emprestar e podemos ir atrás dos outros guardiões.
– Tá bom. – Salesh observava as ruas quase vazias e não tinha ideia do que poderiam fazer para que tudo voltasse ao normal.
Uma voz conhecida as interrompeu:
– Salesh?!
Ambas se viraram para trás e a princesa estremeceu ao reconhecer Rudin, que se aproximava vestindo uma túnica elegante, destoando das poucas pessoas nos arredores.
Salesh não tinha tempo para aquele encontro e teria corrido se ele já não estivesse segurando sua mão e fazendo uma reverência.
– Achamos que você tivesse... – e a abraçou.
– Não estou! – ela correspondeu receosa e se logo deu um passo para trás, se libertando do abraço. Enquanto pensava em algo para dispensá-lo, o rapaz desatou a falar:
– E essa Datemis? – ele parecia preocupado – Eu acabei de voltar de uma viagem e ouvi dizer que ela proibiu as festas e que quer mandar todos os jovens entre vinte e quarenta períodos para a guerra.
– Resolveremos isso em breve! – Madrini respondeu ríspida.
Salesh observou uma cicatriz grande em todo o antebraço do rapaz e acabou perguntando:
– O que aconteceu?!
– Ah! – ele sorriu malicioso e parecia o Rudin de sempre – Machuquei por aí... Com alguém...
Ela tentou disfarçar seu desgosto:
– Tá certo, eu tenho que ir.
– Boa sorte em mais um retorno.
Ela odiou o jeito com que ele disse aquilo, mas apenas balançou a cabeça e voltou a seguir Madrini, apressada.
– E ele tem coragem de agir como se nada tivesse acontecido, como se não me devesse satisfações!
– Salesh! – Madrini a olhou nos olhos – Esquece esse idiota. Temos coisas mais importantes pra resolver. Vem!
A princesa concordou com a cabeça e continuaram andando por mais algumas ruas até entrarem num restaurante, pela porta dos fundos. O local devia estar fechado há dias, pois as cadeiras estavam de ponta cabeça em cima das mesas e já acumulavam algum pó. Uma senhora platinada, vestida com uma túnica de estampa florida, surgiu detrás do balcão fazendo Salesh sorrir aliviada por ver um membro conhecido do Conselho:
– Alma!
A senhora a abraçou sorrindo:
– Alteza! Nós sabíamos que você estaria bem!
Quando se afastaram, Alma continuou:
– Venham, há um quarto pra vocês dormirem e amanhã poderemos conversar sobre a conspiração.
– Conspiração?
– Sim! Nós, do Conselho, os guardiões e muitos Antarianos, queremos lutar contra a senhora da guerra.
Salesh sempre via o Conselho como um monte de velhos conservadores e difíceis de conversar, mas, agora eles estavam ao seu lado e ela estava grata por isso.
– E será que podemos vencer? Como conseguiremos buscar os Amuletos?
– É claro que podemos vencer! – a senhora interrompeu as dúvidas de Salesh.
– Como você tem tanta certeza?
Alma riu, debochada:
– Ora! Por causa do que sempre nos dá novas esperanças a cada nova imperatriz: a fé!
Então Salesh se calou.
Na manhã seguinte, enviaram esferas para Noah e Stockeler, depois encontraram Liam, Kamal e Áster na Cidade Imperial e partiram para Nialon, para tentar buscar Vianei.
– Vó! – o tenente Noah gritou para o restaurante vazio.
– Noah! – a mulher colocou a cabeça para fora do porão – estou aqui!
– Vim o mais rápido que pude.
– Como você está bonito nesse uniforme! – Alma veio ao seu encontro, sorridente.
– Onde estão todos?
– Foram buscar Vianei.
– Em Nialon?! – ele arregalou os olhos.
– Sim... – ela respondeu alheia à agonia do rapaz.
– Eles deveriam ter me esperado! Estou acostumado com o território e nós estamos sem os Amuletos!
– Então acho melhor você correr! – ela sorriu, lhe deu um tapinha no rosto e desceu novamente ao porão.
O castelo de Nialon ficava fora do território hostil, mas ainda assim era Nialon. Madican e Raíza não poderiam deixar a cidade em meio a uma guerra para levar Vianei para junto dos guardiões e jamais deixariam o filho viajar sozinho, por isso, lá estavam os guardiões para escoltá-lo. Ficaram apenas algumas horas no local, mas foi o suficiente para que o caminho seguro da ida se tornasse perigoso para o retorno.
Quando a noite chegou, partiram. Usavam seus flutuadores em baixa velocidade, por entre ruas e becos vazios, mas mesmo assim conseguiam ouvir ao longe o som da batalha. Salesh, como sempre, admirava as construções coloridas e as ruas tão retas e sem calçadas, quando de repente o som pareceu vir na direção deles. Abandonaram os flutuadores, correram e se amontoaram num pequeno beco entre duas construções. Salesh apertava a mão de Madrini e mal conseguia respirar.
– Nós vamos morrer? – Vianei começava a soluçar.
– Não, claro que não! – Liam respondeu e agachou a seu lado – Só temos que esperar um pouco.
Kamal cochichou, de costas para o menino:
– Não podemos ficar aqui. Vão nos achar e teremos que escolher um lado, teremos que lutar na guerra! E estamos com o herdeiro do governo de Nialon, o que vocês acham que vai acontecer?
– E você quer ir pra onde? Se sairmos desse beco...
Mas os sussurros foram interrompidos pelo barulho das espadas e dos canhões. Vianei enterrou a cabeça nos ombros de Liam e todos ficaram em silêncio novamente. Madrini parecia rezar aos Deuses, Salesh observava as construções pensando num jeito de entrar em alguma delas e fugir pelos telhados, enquanto Kamal e Áster tentavam inutilmente manifestar algum tipo de poder mesmo sem estar com seus Amuletos. Mas num momento o som era tão alto que todos apenas fecharam os olhos e esperaram pelo pior. Eram sons de metal contra metal, depois explosões que faziam o chão tremer, fumaça com cheiro de queimado e gritos, muitos gritos. Era impossível conversar e por vezes até pensar.
E então, após um estrondo, o som voltou a diminuir. Os guardiões demoraram a se mexer. Liam soltou Vianei e, devagar, foi até a saída do beco. Avaliou cada lado por alguns segundos e depois fez sinal para que o seguissem. Subiram em seus flutuadores e retomaram o caminho. Havia alguns pequenos incêndios e muitos corpos mutilados pela rua que antes era pavimentada de cinza claro e agora era uma grande poça de sangue. A escuridão da noite encobria parcialmente a cena, mas não havia como evitar olhar para aquilo. Liam pegou Vianei no colo:
– Fecha os olhos, nós já vamos passar para um lugar mais calmo.
Mas Vianei espiou mesmo assim e teve pesadelos nas noites seguintes.
Já era quase o meio do dia quando alcançaram a estrada e, no sentido oposto, Noah vinha a toda velocidade.
– Por Genuí! – ele saltou – Vocês estão bem!
Todo o grupo parou de flutuar.
– É claro que estamos. – Salesh respondeu sem sorrir.
– Por que não me esperaram?
– Nós não podemos esperar mais nada, nem ninguém! – Madrini respondeu.
Ele concordou com a cabeça.
O grupo comeu a pouca comida que traziam de Nialon e se organizaram para retomarem a viagem de volta.
Noah se aproximou de Salesh e a puxou pela mão. Ela suspirou com os olhos cheios d'água:
– Oi!
Ele a abraçou apertado e beijou o alto de sua cabeça:
– Oi, menina.
Ela sequer se importou em ser chamada assim. Os guardiões estavam juntos outra vez. Era a hora de mais uma batalha.
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