Vinte e cinco: luto
O céu estava azul, sem nenhuma nuvem, e os sóis brilhavam plenos, desafiando o sentimento dos moradores do palácio.
Salesh estava convencida de que seu destino era perder qualquer um que amasse.
Antaris estava de luto.
Anandí estava morta.
Fora um choque, afinal, os Antarianos são abençoados com uma vida longa. E, portanto, quase impossível que a imperatriz falecesse com pouco mais de trinta períodos. Seria uma tragédia em qualquer dimensão.
A população comentava que era uma maldição por Anandí ter rejeitado o trono quando era jovem, mas os residentes do palácio e os representantes do Conselho sabiam que o que a tinha afetado era uma doença que ela havia adquirido em Gaia. "É por isso que não devemos ir para outras dimensões", os mais conservadores diziam.
Madican veio de Nialon, com Raíza e Vianei, logo que os sintomas da doença se intensificaram, mas não puderam fazer nada além de estar perto da amiga. Ele improvisou um curto discurso no funeral, encerrando entre lágrimas e com a voz sumindo:
– Ela iluminava tudo com sua alegria.
O cemitério, que ficava a poucos metros do palácio, quase não comportava os presentes, todos vestidos de branco. Do lado de fora das muralhas, as pessoas cantavam uma música repetidamente e era possível ouvi-los de longe. Como era ritual em Antaris, os antecessores, enterrados no mesmo local, deviam ser cremados para dar lugar ao novo corpo. Após surgir fumaça na chaminé do mausoléu, a entrada foi liberada para a pequena procissão. A lápide de pedra era trocada naquele momento, por Liam, que derramava lágrimas em silêncio.
Todos os guardiões choravam juntos. Separada do grupo, mas também chorando, estava Salesh, sem sua peruca branca, sem brincos e com o traje do dia anterior. Sentia-se diferente de quando Lúcia morrera. A morte de sua primeira mãe havia sido muito rápida, chocante, inesperada. Já com Anandí havia acompanhado todo o sofrimento, as semanas definhando na cama e as tentativas para salvá-la. Pelo menos desta vez houve tempo para despedidas e a princesa estava ao lado da mãe quando esta parou de respirar.
Porém o desespero, a impotência e a angústia eram velhos conhecidos. Aquilo não estava acontecendo. Não poderia estar acontecendo. Não novamente.
Ao final da homenagem, num silêncio que era o oposto de Anandí, as pessoas foram caminhando para fora do cemitério.
Noah se aproximou de Salesh quando ela saia do mausoléu e fez menção de abraçá-la.
– Não... – ela falou baixo e deu um passo para trás.
– Eu...
– Você foi embora, não mandou mensagem, nem quis saber como a gente tava. Ela morreu Noah!
– Eu sei! – lágrimas desceram pelo rosto de ambos.
Salesh virou as costas e correu o mais rápido que conseguiu, escancarou as portas do palácio, subiu as escadas e trancou-se no quarto. Ninguém entenderia sua dor. Porque Anandí era sua mãe, e de mais ninguém.
Naquela noite Salesh não desceu para a refeição.
Madrini e Noah sentaram-se na sala das almofadas e começaram uma conversa saudosa, porém animada, sobre as lembranças que tinham de Anandí.
– Eu me lembro claramente de quanto a vi pela primeira vez aqui no jardim. Ela era muito mais jovem do que eu tinha imaginado... Era tão fácil conversar com ela.
– Eu quase não me lembro... Sei que me ofereci para ser guardião, mas, faz tanto tempo. É como se ela fizesse parte da minha vida desde sempre...
– Pelo menos pudemos nos despedir... – Madrini disse e logo em seguida se arrependeu – Me desculpa, eu não quis dizer no sentido de que você não quis...
– Não voltei antes porque não pude. Você sabe o quanto eu gostava da Anandí... Eu só achei que era uma doença passageira, que era mais uma coisa que ela superaria. A mensagem de Liam informando a gravidade só chegou a Sarati há alguns dias e eu vim imediatamente. – Noah defendeu-se.
– Eu sei, eu sei...
Alguns minutos depois Noah mudou de feição:
– Porque o Rudin não estava aqui?
– Ele anda meio sumido.
– Por quê? Eles brigaram?
Ela sorriu.
– Quanta curiosidade!
– Não! É que só acho que ele deveria estar aqui, para apoiá-la.
– Nenhum dos homens da vida de Salesh estava com ela.
Noah apenas balançou a cabeça e começou a observar os detalhes do vitral da janela.
– E a Blenda? – Madrini continuou.
– Ah... Você sabe. Eu voltei para Sarati, não era possível viajar a Talismã com frequência. Então, nós terminamos. Foi algo rápido, nada sério.
– E em Sarati, não há ninguém?
– Também nada sério.
– Nada nunca é sério pra você?
– Não. – Ele continuava a encarar a janela.
– Por causa da Salesh?
Ele sorriu:
– Ela é só uma menina.
– Você é quem tenta se convencer disso, mas ela não é uma menina faz tempo. Noah, não é vergonha nenhuma você admitir que está esperando até que ela perceba que vocês têm que ficar juntos.
– Acho que agora ela deve estar mais preocupada em como vai substituir Anandí.
Madrini balançou a cabeça:
– Confesso que não acho que ela esteja preparada.
– Anandí também não achava que estava...
– Você lembra aquela vez...
E o assunto voltou a ser a imperatriz.
Depois de mais uma noite mal dormida, Salesh saiu de seu quarto pelas passagens e desceu à sala dos empregados. Encontrou Nita sentada, encarando um copo de alguma bebida, aparentemente há bastante tempo.
– Oi! – Salesh a interrompeu.
– Oi... – ela lamentou de volta.
– Nita, você tem uma tesoura?
A senhora virou o rosto vermelho, arregalando os olhos úmidos:
– Pra que, meu amor?
Salesh quase sorriu:
– Não vou... Eu só quero cortar o cabelo.
– Você mesma?
– Você pode me ajudar se quiser, mas quero bem curto.
– Mas seu cabelo é tão bonito!
Salesh a encarou, séria:
– As minhas duas mães merecem a mesma homenagem. Mesmo que poucas pessoas vejam meu cabelo real.
– Tá bom. – Nita suspirou.
Durante a refeição do meio do dia, mesmo com tantas pessoas à mesa, não houve quase conversa e ninguém comentou o corte de cabelo da princesa.
Salesh levantou-se antes de todos e voltou à sala das almofadas. Alguns minutos depois, estava chorando com o rosto enterrado nas mãos. Ainda não havia chorado de verdade. Sim, lágrimas haviam caído, mas não aquele choro barulhento, de saudade, de criança desamparada.
Quando sua respiração desacelerou e as lágrimas finalmente pararam de cair, ela secou o rosto na barra da blusa e só então percebeu Noah parado na porta, como sempre fazia.
– Que susto!
– Você costumava ter reflexos melhores. – Ele deu um pequeno sorriso.
– Ah, cala a boca! – ela também sorriu.
Ficaram quietos por um tempo até que ele se sentou ao lado dela. Salesh encostou a cabeça no ombro de Noah e fechou os olhos:
– Por quê? Ela era tão...
– Eu sei.
– O que eu vou fazer agora? O que eu tenho que fazer agora?
– Você não tem que fazer nada agora. Antaris esperará.
Ela suspirou mais uma vez e limpou outra lágrima, que teimava em cair.
– Gostei do seu cabelo. – Ele disse num sussurro – Lembro de quando te conheci.
– Obrigada.
– Você quer dar uma volta? Podemos ir ao Lago do Mel.
– Pode ser... – Ela respondeu, sem vontade.
Buscaram seus flutuadores e, logo que desceram no lago, Salesh estava com os olhos cheios de lágrimas novamente:
– Desculpa ter gritado com você aquele dia.
– Relaxa que eu já nem lembro mais disso.
– Tá... E o que vamos fazer pra me distrair de recomeçar a chorar? – ela sorriu.
– Hã... – ele pegou dois galhos de árvore – Em guarda!
– Que isso?
– Sua espada. Vamos!
Os dois brincaram por alguns minutos e depois se deitaram na grama, um ao lado do outro, observando os sóis se porem.
– Queria fazer algo bem idiota hoje, talvez ficar bêbada. – Ela sugeriu.
– Podemos ir a uma taberna.
– Não... Ir à cidade não me agrada.
– Por quê? Não quer encontrar seu namorado?
– Primeiro, não quero ir à cidade porque muitas pessoas vão me abordar. Segundo, o Rudin não é mais meu namorado.
– Por quê?
– Mas hoje só temos assuntos tristes, é?
– Não, tudo bem, não precisa falar.
– Ele sumiu, tá bom?
– Como sumiu?
– Ele não vinha mais ao palácio, eu fui atrás dele algumas vezes, ele dava desculpas. Depois só o pai dele ficava na barraca e também dava respostas vagas. Enfim, nunca mais nos vimos. Fim!
– Hum...
– E você? E aquela moça?
– Aquela moça, ficou pra história. Não sou assim tão romântico pra ter algo sério com alguém.
– Não precisa ser romântico pra namorar sério! – ela riu.
Os dois voltaram a ficar em silêncio e então ela se levantou num salto:
– Já sei o que eu quero fazer.
– O que? – ele a olhou debochando.
– Vem! – ela tirou as sapatilhas, correu e pulou no lago.
Noah sentou-se e esperou que ela emergisse:
– A água não está gelada?
– Um pouco. E daí? Enfrenta senhoras da guerra, mas não uma aguinha?
Ele se levantou rindo e mergulhou também.
Quando emergiu a seu lado ela bagunçou ainda mais seus cabelos.
Os dois se mexiam para não afundar e não falavam nada. Salesh olhou nos olhos de Noah e por alguns segundos e teve vontade de beijá-lo mais uma vez, mas não o fez. Sabia que era apenas um jeito de não pensar em todas as perdas de sua vida e ela não deveria usá-lo para isso.
Ele logo saiu do lago e sentou-se a margem.
– Molenga! – ela gritou para ele e deu algumas braçadas.
Depois de vários minutos Salesh saiu do lago, tremendo. Os dois voltaram a seus flutuadores e ela lhe apertou o braço, sem encará-lo:
– Obrigada por esta tarde.
– Eu também estava precisando.
A refeição da noite foi menos silenciosa, mesmo o assunto sendo as tantas lembranças de Anandí.
No dia seguinte Noah partia para Sarati antes dos sóis nascerem e colocou um bilhete para Salesh por baixo de sua porta: "Até a volta".
O palácio não parecia em nada com o que já havia sido um dia. Tudo era quieto e gelado.
Aos poucos cada guardião parou de treinar e os Amuletos foram guardados na torre, sem nenhum protesto de Salesh. As visitas dos governantes das cidades Antarianas cessaram. O Conselho se reunia regularmente e Salesh até participava das reuniões, porém calada, pois na prática uma princesa ou uma imperatriz pouco decidia sozinha.
Além de Nita, havia apenas mais dois empregados e cinco guardas no palácio. Vez ou outra Madrini ou Madican apareciam, faziam refeições com Salesh e logo partiam.
Não havia nada para defender ou combater e todos tinham suas vidas, menos ela. Em Antaris a garota não sabia fazer outra coisa que não fosse ser uma guardiã e até Lótus parecia quieto demais.
Sua maior distração era trocar esferas com seu pai, quem diria.
Numa tarde Salesh finalmente encontrou coragem de entrar no quarto de Anandí e mexer em suas coisas. Junto com Nita elas separaram vestidos, livros, joias e pequenas lembranças. Salesh foi colocando numa caixa tudo o que ela acreditava ser importante para ser guardado e o restante seria dado a outras pessoas. Ela estava encaixotando alguns livros, sentada no chão, quando uma foto caiu de um deles. Era uma imagem um pouco amassada, mas na qual Salesh reconheceu instantaneamente os jovens da imagem: Lúcia, Celso, Madican e Anandí. Tentou limpar as lágrimas, mas não pode, elas teimavam em descer pelo seu rosto. Ela guardaria a foto em seu quarto e pensou em colocá-la no melhor porta retrato que pudesse encontrar.
– Vocês são mesmo muito iguais...
Salesh olhou para cima e encontrou Nita, também emocionada, olhando por trás dela.
– Como vamos conseguir viver sem ela? Ela unia a todos... Foi só ela... E não há mais ninguém no palácio!
Nita sentou a seu lado e tentou sorrir:
– Não é só sua mãe que unia a todos, infelizmente a guerra também unia. Agora, se você quer unir a todos novamente, vocês devem encontrar um novo objetivo em comum... Nem que seja apenas ser uma família.
Salesh encolheu os ombros:
– Não posso pedir que eles fiquem aqui apenas por mim... Eu preciso descobrir o que eu quero fazer, o que eu quero ser... E não acho que eu queira ser uma imperatriz...
– Vocês nunca querem... – Nita deu um leve sorriso.
Algumas semanas depois, os portais se abriram.
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