Trinta e um: a Confraria
Paula e Vinicius saíram do portal, prontos para respirar o ar fresco que a fazenda possuía: "cheiro de Gaia", eles diziam.
Mas, ao contrário, o cheiro era de queimado, de fumaça, de pólvora. Mesmo não ouvindo nada, eles sentiam que a guerra estava no seu auge. Trocaram olhares aflitos e saíram lentamente da caverna. Jadano havia lhes dito que uma pessoa os esperaria, para estranhamento dos guardiões, afinal, os gaianos não sabem da existência das outras dimensões. De qualquer forma, mesmo que ninguém os aguardasse, eles deveriam encontrar o Senhor ou Senhora da Guerra de Gaia o mais rapidamente possível.
Assim que saíram da caverna uma jovem ruiva estava parada, vestida com camiseta e calças jeans surradas, evidentemente impaciente:
– Princesa Salesh?
– Sim... Você?
A moça relaxou os braços:
– Eu sou a Ester.
– Aqui nós somos Paula e Vinicius.
– Bem melhor... – ela balançou a cabeça – podemos ir caminhando? Nosso refúgio fica aqui mesmo na fazenda, mas é uma boa caminhada, ao menos uma hora.
– Ótimo! – durante o trajeto, Paula foi fazendo perguntas e Vinicius mais uma vez se encantava com a natureza do lugar.
– Esse cheiro... A guerra chegou ao sul?
– Sim... Infelizmente sim. É por isso que eu e algumas outras pessoas estamos escondidas nessa fazenda... Porque fugimos do serviço militar.
– Meu pai, ele vive em São Marcos, troquei mensagens com ele esses dias, ele não me disse nada...
– Talvez não quisesse te alarmar...
– Mas eu estive aqui há poucas semanas!
– É...
– Enviarei outra mensagem para ele hoje. Quem sabe quando tudo isso acabar eu possa visitá-lo...
– Se acabar.
– Ah, vai acabar.
– É verdade tudo isso de Dinastia da Guerra?
– Vocês não acreditam?
– Ainda não tivemos provas reais, mas é quase reconfortante saber que a maldade tem uma origem além do Homem.
– Mas se você não teve contato com nada relacionado às dimensões... À magia... Se aqui vocês não sabem sobre as dimensões... Como você se tornou guardiã?
Ester debochou:
– Guardiã? Olha princesa...
Vivi minha vida toda em Sant'Ana. As coisas eram difíceis por causa da guerra, mas eu não conhecia outra vida, para mim todo o país, todo o mundo vivia desse jeito. Aqui no Sul parece um outro planeta, vocês não fazem ideia de como é o Norte. Para mim era normal haver pouca comida, não ter água limpa todos os dias, ter as aulas interrompidas de tempos em tempos para nos esconder em abrigos subterrâneos até que o barulho das bombas cessasse, ver meus pais saírem cedo e voltarem tarde do trabalho na lavoura, inclusive nos finais de semana... Era nossa rotina. E sequer passava pela minha cabeça que os conflitos poderiam acabar.
Quando comecei a me interessar pelos telejornais e pensei em escolher uma faculdade foi quando percebi o que realmente estava acontecendo ao meu redor. A primeira coisa que pensei, é claro, foi em fugir para o Sul. E quando indaguei meus pais tive diversos tipos de respostas, a que aceitei como a melhor era que um dia a guerra chegaria ao Sul, o que realmente aconteceu como vocês podem ver, e que ao menos tínhamos família e amigos para ajudarmos e sermos ajudados no Norte.
Meus pais sempre insistiram para que eu e meus irmãos fizéssemos uma faculdade, porque poderíamos ser úteis se fossemos convocados ao exército e assim não ficaríamos na linha de frente e teríamos mais chances de sobreviver. Se não fossemos para a guerra, trabalharíamos na lavoura, o que não era a pior opção, aliás, era uma ótima opção.
Meus dois irmãos conseguiram terminar os estudos... Eu comecei a estudar engenharia, mas abandonei no segundo ano... Quando recebi a notícia de que meu irmão Natan tinha morrido. Ele era o mais inteligente de nós três, tinha estudado física, tinha tudo para estar seguro num dos departamentos de inteligência, mas... Nem sei se contaram a verdade na carta que minha mãe recebeu; eles disseram que uma bomba atingiu o prédio que ele trabalhava... Depois disso eu passei alguns anos sem sair muito de casa, apenas cuidando dos filhos dos vizinhos enquanto eles iam trabalhar, sem muito rumo na vida, exceto ir às reuniões da Confraria uma vez por semana... Eu já explico esta parte. Meus pais e meu outro irmão, o Arnaldo, estavam tristes é claro, mas retomaram suas vidas. Uma morte na família é coisa normal lá no Norte.
O Arnaldo é enfermeiro. Ele quase não terminou a faculdade porque parte da universidade foi destruída num bombardeio, mas alguns meses depois ele conseguiu voltar a estudar. Eles revezavam as salas de aula com outro curso. Nós dois fomos convocados para a guerra há um mês, junto com todo mundo entre dezoito anos e trinta anos...
Ele foi, é claro.
E eu fugi, é claro.
Foi bem complicado chegar aqui ao Sul. Eu achava que poderia apenas pegar um trem, mas a realidade é bem diferente. Havia barreiras nas divisas e só cheguei até aqui graças a Confraria...
Agora, sobre a Confraria... Na época da faculdade eu frequentava as aulas seis noites por semana, quando não havia ameaça de bombas. Numa das noites de sábado a Lygia, uma moça que eu conhecia de vista, me convidou pra ir numa reunião no domingo, para conversar sobre as situações que vivíamos, para desabafar, ela disse na época. E eu fui. Não porque eu estivesse curiosa ou porque precisasse conversar, mas sim porque eu gostava dela. As primeiras reuniões foram normais até. Um casal conduzia as discussões a respeito da guerra, do passado, do futuro... E relembrando agora eu entendo que aos poucos eles foram introduzindo ideias mais abstratas em nós, sobre existência de outros mundos, sobre o que poderíamos fazer para encerrar a guerra e coisas assim. Então, mesmo quando eu desisti da faculdade, continuei frequentando as reuniões.
Uma noite, eles trouxeram uma coisa... Parecia uma pedra preciosa, era do tamanho da palma de uma mão e perfeitamente entalhada num formato de cinco lados, tinha uma cor de âmbar e eles contaram que era uma herança de família e que eles acreditavam ter poderes mágicos. Ninguém levou isso muito a sério, mas, quando alguns de nós a seguramos, ela brilhou de um jeito diferente. Comigo e com a Lygia ela também brilhou e nós sentimos um arrepio sabe? Uma onda de calor... Depois desse dia algumas pessoas até pararam de frequentar as reuniões, mas aquilo despertou nossa curiosidade e aos poucos eles foram nos contando sobre as dimensões, sobre a Dinastia da Guerra... E queriam que todos viéssemos para o Sul, para nos juntarmos com outras pessoas que eles já tinham conhecido, para que ficássemos mais protegidos, para que ficássemos mais próximos da passagem... Mas nós não queríamos vir, não queríamos abandonar nossas famílias que com certeza não entenderiam essa nossa nova crença. Nós também nos questionamos várias vezes se tudo isso é real...
Mas aí... Todas as pessoas de dezoito até trinta anos foram convocadas para a guerra. Eu e a Lygia não pensamos duas vezes, fugimos para o Sul. Trouxemos poucas coisas e deixamos nossos celulares lá, para que ninguém pudesse nos rastrear. A última coisa que ouvi dos meus pais é que eu era uma covarde... E talvez eu seja... Mas eu espero mesmo que vocês me provem que não sou maluca, nem covarde... Mas seja lá o que for, eu espero que aconteça logo, porque mais cedo ou mais tarde o exército nos achará.
E eu sei que algo muito incrível vai acontecer porque eu fiquei impressionada quando vi o portal se abrir a primeira vez e é claro que não tive coragem de atravessá-lo. E fiquei ainda mais impressionada quando vi vocês dois saírem dele hoje...
Olhem... Estamos nos aproximando do refúgio... Estão vendo aquele galpão de madeira que parece abandonado? É nossa sede, por dentro está em melhor estado, eu prometo. Vamos, vamos...
E... Eu não sei o que vamos realmente fazer, o que a vinda de vocês significa ou vai acrescentar, se somos capazes de acabar com a guerra, se podemos ser chamados de alguma coisa parecida com guardiões...
Mas, temos que tentar alguma coisa não é? Não dá pra ficar de braços cruzados.
Sejam bem-vindos à Confraria de Jadano e Patrania.
– Confraria de quem?! – Paula interrompeu a caminhada e encarou Ester com um grito.
– Eles queriam que se chamasse "Confraria da Concórdia", mas sejamos francos, isso é muito utópico. Nós, os membros, acabamos apelidando as reuniões com o nome dos fundadores...
– Fundadores?! – Vinicius franziu a testa.
– Você achou que nós não estávamos fazendo nada? – a voz de Patrania fez Paula se virar para a entrada do galpão.
A mulher vestia roupas como as de Ester e tinha os cabelos roxos cortados bem curtos, o que quase não chamava atenção. Parecia apenas uma senhora Gaiana de cabelos excêntricos.
– Você e o Jadano são o tal casal? – Paula continuava parada, tentando entender quando tudo aquilo tinha acontecido e porque os guardiões não estavam cientes da situação.
– Venham para dentro e eu responderei as perguntas... – Patrania indicou a porta.
Os três entraram no galpão que estava iluminado com uma luz fraca e continha grãos e feno empilhados num canto. Patrania afastou um dos fardos e abriu um alçapão, por onde desceram através de uma escada. No subterrâneo, num grande salão bem iluminado, havia diversos sofás, camas e armários, que não combinavam entre si, sobre um piso de madeira, lindamente polido. Algumas pessoas se ocupavam preparando comida na pequena cozinha que ocupava um dos cantos do local.
– Aquela porta ali é o banheiro, infelizmente a água é fria, mas foi o que conseguimos... – Ester sentou-se numa das poltronas e apontou para que os demais se sentassem.
Paula continuava num misto de curiosidade e irritação quando se sentou na beirada de uma das camas:
– Então Patrania, você pode me explicar o que é tudo isso? Por que os guardiões não sabem de nada? Quando tudo começou?
– Madican e o Conselho sabem.
– É claro que sabem. – Paula bufou.
– Por que deveríamos te contar? Colocar mais preocupações em sua cabeça? Quando você começou a entender as responsabilidades de ser uma imperatriz, você fugiu, não é?
– Isso é muito injusto...
– Bom, a vida não é justa. Se fosse, não estaríamos em guerra.
– Eu voltei, eu quase morri! Eu estou retomando meu posto...
– Não é um posto, não é temporário. É o que você será, para sempre!
– E se eu não quiser que seja para sempre? Eu posso abdicar, não posso?
– Você faria isso com os Antarianos?
Paula bufou novamente...
– Não... Que seja! Isso não é o que temos que discutir agora.
Patrania finalmente se sentou e recomeçou:
– Em resumo, nós precisávamos que alguém em Gaia soubesse da existência das dimensões, precisávamos de pessoas para lutar quando a Dinastia atacasse... Eu me ofereci. Jadano veio comigo numa das aberturas dos portais, mas depois eu fiquei sozinha. O Amuleto, a Pedra da Terra, se parece um pouco com nosso Amuleto original Antariano, mas é um só, não pode ser multiplicado. Nós o compramos de alguns arqueólogos corruptos no Egito depois de termos feito longas pesquisas com a ajuda de Anandí... E vou te dizer que nunca mais pretendo usar um de seus aviões... Eu sequer gosto de dirigíveis!
– Minha mãe sabia?!
– A ideia inicial foi dela... Enfim, muitas das pessoas que encontramos aqui e que possuem a força interna da magia acabaram desistindo, ou indo para a guerra, ou morrendo, ou estando doentes, ou sendo jovens demais, ou idosas demais, então...
Ester se levantou e guiou Paula até o grupo de quatro pessoas que os observava com curiosidade:
– Esses são Dimitri, Elaine, Beatriz e Lygia. – Ela sorriu para a última moça.
Paula observou o grupo e sorriu inclinando a cabeça:
– Por que vocês são todos ruivos?
– É uma ótima pergunta... – Patrania deu de ombros – Percebemos que a pedra só irradiava energia com pessoas ruivas, mas não sabemos por quê.
– Interessante... Bom, por onde começamos?
– Com o treinamento. Seja físico, seja mágico, porque nós não somos guerreiros.
– Mas terão que ser.
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