Trinta e três: vitórias e derrotas
Paula fora transferida para o hospital de São Marcos, graças aos contatos do pai. Permanecia deitada, sem reagir à presença de ninguém e de vez em quando gritava:
– Não! Sim! Vá embora! Eu me mato se for preciso!
Uma das enfermeiras até sugeriu chamar um padre, mas Celso sabia que este não era o caso.
Patrania e Vinicius se revezavam levando e trazendo notícias do hospital e do refúgio, pois os Gaianos poderiam ser descobertos e enviados para a guerra caso fossem ao hospital. Tudo o que poderiam fazer era continuar treinando.
– Teremos que derrotar Ícaro nós mesmos, não podemos esperar mais... – Lygia sugeriu após uma semana sem mudanças.
– Eu sei... Aquela história de bomba... – Ester encarava a Pedra da Terra, diminuindo seu brilho quando encerraram os treinos daquele dia.
– Mas e se... – Vinicius nunca havia imaginado lutar sem Salesh.
– E se não?
Na manhã seguinte partiram mais uma vez para São Brás. Observaram o prédio durante todo o dia, Ícaro adentrou, mas não saiu. Cada um entrou separadamente, infiltrado em pequenos grupos, e se esconderam nos banheiros do local. Já era o final da tarde quando subiram ao escritório de Ícaro. Vinicius respirou fundo e disse enquanto abria a porta:
– Pelo menos este prédio não tem dez soldados da escuridão ou corredores encantados...
– Todo dia acordamos e caminhamos sem parar até o sol se pôr de novo. Para que afinal? – Dimitri, sentado no galho de uma árvore, jogava frutas para os outros guardiões.
– Aquela torre está ficando cada dia mais perto – Lygia apertava os olhos para enxergar a imagem num dia tão claro.
– Lygia, você disse a mesma coisa sobre a montanha, a estátua e a grande árvore.
– Pelo menos estamos indo para algum lugar.
– Será? Depois que abrimos a porta e caímos do precipício naquele rio, não paramos mais de andar. Isso só pode ser ilusão. Estávamos numa cidade, num prédio! E essa ilusão vai continuar a nos distrair até que Ícaro faça o que pretende. Ou então iremos nos consumir até a morte. – Elaine também olhava na direção da torre.
– Credo! Tenho uma teoria melhor. – Ester dava a primeira mordida na fruta enquanto se sentava no chão – Quando viemos da primeira vez a este prédio, Ícaro achava que receberia Datemis. Mas, quando viemos da segunda vez, ele nem desconfiava que alguém viesse, então, não se preocupou em esconder esta passagem secreta. Um portal para o lugar onde ele vive de verdade...
– Praeterea? – Beatriz sugeriu
– Pode ser.
– Mas não é época de abertura dos portais.
– E daí? Ele pode ser capaz de manter um portal aberto... Ele é um senhor da guerra!
– Mas isso significaria o que na prática? Que se continuarmos a andar chegaremos a algum lugar?
– Espero que sim... O que mais podemos fazer?
Ester observava novamente a Pedra da Terra:
– Infelizmente acho que nada.
E continuaram caminhando por mais um dia de sol, até que finalmente alcançaram a torre, uma construção alta feita de pedras, circundada por uma escadaria que eles subiram sem sequer cogitar outra possibilidade. No topo do local, sem proteções, havia um patamar, onde Ícaro esperava sorrindo.
Quando Rodrigo, seu velho amigo, soube por intermédio de um conhecido em comum que Paula estava em casa, doente, quis visitá-la. Mariana cogitou impedir a visita, mas já estava tão desesperançada que não viu motivo para não permitir. Ela avisou ao rapaz que Paula não estava bem, mas nada o preparou para o que viu quando entrou no quarto. Sua amiga de tantos anos estava deitada imóvel na cama com as pernas e braços em posições aparentemente incômodas, vestindo um pijama puído, tinha a boca semiaberta e o olhar distante. Ela só dava sinais de estar viva porque respirava e piscava a intervalos normais.
Rodrigo se sentou numa cadeira ao lado da cama e observou as estranhas luvas em suas mãos. Respirou fundo, segurando-se para não chorar:
– Eu sempre penso em você.
Paula resmungou em resposta:
– Está para acabar... Esta luta.
– Eu sei... É a doença da sua mãe, não é? É hereditária. Era isso que você nunca me contou. Você estava numa clínica, não estava? Você usa estas luvas para esconder as marcas das agulhas, não é?
Ela quase sorriu com as conclusões dele. Até que faziam sentido.
– Não.
– Está bem. – Ele não acreditou.
– Ela não vai tomar conta de mim. – A voz de Paula era baixíssima.
– Quem?
– Ela não vai! – começou a gritar e se debater – Não! Eles vão conseguir!
Mariana e Celso entraram apressadamente no quarto e a seguraram. Rodrigo se levantou e ficou num canto, assustado:
– Eu não fiz nada, não sei o que eu disse que...
– Eu sei, eu sei. – Mariana imobilizava Paula para que Celso lhe aplicasse uma injeção – É apenas mais uma crise.
Rodrigo observou os dois lutarem para que Paula não se batesse muito e alguns minutos depois ela parecia mais calma.
– Nos chame se precisar de algo, estamos no quarto ao lado. – Celso avisou ao ouvir o choro das bebês e sair com Mariana.
O rapaz concordou com a cabeça e permaneceu muitos minutos calado, apenas observado a amiga.
– Eu vou embora agora tá?– inclinou e deu-lhe um beijo na cabeça – Vou fazer dezoito anos e com certeza serei convocado para a guerra, então não sei quando poderei te ver novamente, mas saiba que vou rezar... E eu queria que você rezasse por mim também, tá?
Assim que Rodrigo saiu do quarto, Paula virou o rosto e viu na mesa de cabeceira o brinco vermelho recomeçando a brilhar. Sorriu e esticou uma mecha do próprio cabelo para visualizar melhor os fios brancos.
Estavam todos muito cansados pela briga. Lygia sangrava mais uma vez e gritava de dor e alívio quando a Pedra da Terra lhe regenerava. O mesmo acontecia a Dimitri e Elaine.
Eles continuavam golpeando o Senhor da Guerra e não havia tempo para entender o que havia acontecido com Beatriz, que tinha sido arremessada de cima da torre. Vinícius permanecia na retaguarda, ajoelhado ofegante ao lado de Ester, que berrava, depois de ter um braço amputado, pois aparentemente o Amuleto não era capaz de ajudá-la.
Ícaro sangrava no ombro devido ao tiro disparado por Beatriz com a pistola que também caiu com ela, mas não parecia ter enfraquecido.
Lygia sentia a Pedra da Terra brilhando tão forte em seu bolso que queimava sua perna através do tecido da calça, mas não poderia dar atenção a isso no momento. Nem ao desespero de Ester.
Então Ícaro abriu os dois braços gargalhando e todos se sentiram imóveis. As armas caíram no chão, fazendo barulho e os gritos de Ester cessaram. O silêncio tomou conta do ambiente e não era possível ouvir nada além da risada do Senhor da Guerra.
Os guardiões estavam paralisados e conseguiam apenas mexer os olhos. Se observaram sabendo que aquele era o fim da luta e tiveram pavor do que poderia acontecer.
Ícaro pegou uma das espadas do chão e levantou-se já sem sorrir. Aproximou-se lentamente de Dimitri, que estava parado com os braços erguidos. O homem penetrou a espada em sua barriga e depois a retirou, suas retinas se dilataram e lágrimas desceram por seu rosto. Elaine, que estava de frente para os dois fechou os olhos. Poucos segundos depois o ferimento se fechou.
– Interessante... – Ícaro virou de costas e encarou Elaine que já tinha aberto os olhos novamente. – Mas não se curam com um membro amputado... E se eu os esquartejar?
Ela arregalou os olhos e ele gargalhou. Num único movimento Ícaro girou com a espada em chamas e cortou o corpo de Dimitri ao meio.
Lágrimas desceram pelo rosto de todos os guardiões. Aquilo era bem pior do que haviam imaginado.
Depois Ícaro se aproximou de Ester e Vinicius. A moça já havia perdido os sentidos. O senhor da guerra ergueu a espada e urrou quando a baixou com velocidade degolando Ester.
Ao sentir o sangue espirrar em seu corpo Vinicius fechou os olhos, aguardando seu golpe fatal. Eles estavam sendo derrotados e ele esperava que Salesh ainda pudesse salvar Gaia.
Lygia conseguiu emitir um som em sua garganta e quando Ícaro se virou surpreso, ela desejou ser a próxima. Nada mais importava.
Foi quando Vinicius sentiu aquela energia, a mesma que sentiu quando estava com Paula em São Marcos. Só que desta vez ele não sentia que estava enviando energia, mas sim recebendo. Lembrou-se de quando viu Noah produzindo uma luz entre as mãos e soube que era capaz de fazer o mesmo.
Suas mãos estavam próximas e começaram a brilhar, ao mesmo tempo em que seu corpo era libertado da magia que o deixara paralisado. Quando a luz se formou, suas mãos também pareciam ser feitas do mesmo brilho, era como se seu corpo se misturasse àquela energia. Rapidamente ele conseguiu se mexer por completo, então, ao invés de arremessar a luz, Vinícius correu gritando e se lançou em cima de Ícaro, que apenas começava a se virar em sua direção.
O menino sentiu um impacto muito forte e foi arremessado para trás caindo dolorosamente de costas no chão.
Observou Ícaro também cair de costas.
– Alguém! – gritou sem muita força.
Lygia cravou uma espada no pescoço do senhor da guerra.
Durante alguns minutos ela ficou apenas ouvindo sua própria respiração e observando o corpo do inimigo, imóvel.
– Vinicius! – Lygia chamou por fim, com a voz falhando.
– Estou vivo.
– Elaine!
– Aqui... – a moça respondeu sem se mover, ainda em pé, de frente para o corpo de Dimitri.
Lygia agachou na beirada do patamar e gritou:
– Beatriz!
Mas não houve resposta. Só então ela se debruçou por cima do corpo de Ester, soluçando.
Vinicius rolou sobre si mesmo e aos poucos se sentou. Ao olhar para cima teve a impressão de que o céu estava mudando.
– Nós estamos voltando...
Sua cabeça estava girando e ele vomitou no que já era o carpete da sala do Senado.
– Como vamos sair daqui? – Elaine olhava os quatro corpos espalhados pela sala. – Seremos presos.
– Eu posso alterar a mente das pessoas... Pode chamar ajuda... – Vinicius limpava a boca e permanecia de costas para os demais. Naquele momento desejou ser capaz de mudar suas próprias lembranças.
Elaine se abaixou, pegou a arma que estava com Beatriz e começou a gritar dentro da sala, atirando todas as balas restantes no corpo de Ícaro. Vinicius e Lygia tremiam a cada disparo. Quando terminou, Elaine sentou-se exausta no chão, chorando alto.
O sumiço do ministro não saiu na imprensa, alguns dias depois estranhamente outra pessoa foi nomeada e foi como se Ícaro nunca tivesse existido.
Os corpos de Ester, Dimitri e Beatriz foram sepultados no cemitério da cidade de São Brás naquele mesmo dia.
Elaine dirigiu o furgão de volta para Santa Barbara, com Lygia e Vinicius em silêncio durante a maior parte do trajeto.
Paula abriu os olhos e sorriu ao ver Celso e Mariana cada um com um bebê no colo, ao lado de sua cama. Sorriu até por ver Patrania com eles. Sentou-se serenamente e colocou a mão no rosto suado.
– Acabou.
Celso passou a mão nos cabelos brancos da filha:
–O que aconteceu? Foi Datemis que te deixou assim?
– Acontece quando eu uso meus poderes com intensidade... Da outra vez meus cabelos voltaram a ficar pretos depois de alguns dias e imagino que acontecerá o mesmo desta vez.
– Isso vai acontecer outras vezes? Você ser... Possuída?
– Não sei pai. Achei que eu tinha tudo sob controle, mas obviamente não tenho...
– Mas o que importa é que acabou. Acabou de dar na televisão que os generais marcaram um encontro para fazer um tratado de paz.
– Que maravilha! Vou enviar esferas aos guardiões de Antaris para contar... E os ruivos? E Vianei?
– Eles foram a São Brás novamente... – Patrania suspirou sem ânimo.
– E derrotaram Ícaro, não é?
– Sim...
– Mas?
– Ester, Dimitri e Beatriz não sobreviveram.
Paula colocou a mão na própria boca e demorou alguns segundos para assimilar a notícia. Então lágrimas desceram por seu rosto e ela abraçou Celso, soluçando.
Lygia viajou a Sant'Ana, mas sabia que teria que retornar para perto das passagens, pois agora era uma Guardiã de Gaia. Quase no final daquele ano ela voltou a São Marcos e passou a morar no refúgio, onde Elaine já estava. Juntamente com Patrania elas precisavam encontrar novos ruivos, para recompor o grupo, estavam cientes de que ignorar a existência das outras dimensões poderia ser novamente fatal no futuro. As duas gaianas trabalhavam durante a semana e treinavam aos sábados e domingos.
Aos poucos, elas voltaram a sorrir.
Paula e Vinicius também treinavam e se voluntariaram em diferentes atividades ajudando na reconstrução de São Marcos e de outras cidades ao redor. O cabelo de Paula voltou ao normal depois de alguns dias e não ficou branco novamente, nem das outras vezes que os Amuletos brilharam.
Celso permaneceu com a clínica fechada por alguns meses enquanto trabalhava nos hospitais da região.
Numa tarde, quando estava distraída paparicando Denise e Renata, Paula recebeu uma esfera mensageira de Noah.
"Oi... Recebi sua esfera e lamento por seus amigos, mas estou muito feliz por vocês terem vencido mais um senhor da guerra. A batalha final aqui em Aurica também está próxima... Ore por nós. Eu te amo Salesh".
– É uma despedida não é? – ela encarou Mariana, com os olhos marejados.
– Talvez... – a madrasta a olhou com pena.
E ela não recebeu mais nenhuma notícia até que os portais se abriram.
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