Trinta e dois: conhecendo o inimigo
Ao final da primeira semana Paula estava ao mesmo tempo convencida que o grupo de Gaianos tinha algo de especial, pois aprendiam facilmente os primeiros golpes e reflexos necessários num confronto, e apreensiva porque não sabia quanto tempo precisariam treinar para realmente serem capazes de enfrentar um senhor da guerra. Eles treinavam na parte superior do refúgio, dentro do galpão, evitando serem vistos do lado de fora. Havia aparelhos de academia, espadas e uma arma descarregada.
A Pedra da Terra, quando colocada no mesmo recinto, parecia fornecer a eles um pouco mais de força e agilidade, só que nada além disso. Patrania tentava inutilmente estudar os hieróglifos nas fotos que acompanhavam o artefato, ciente de que precisava de Madican para aquilo.
Numa das tardes, ainda sem retorno para a esfera que havia mandado a Celso, Paula decidiu ir até São Marcos, acompanhada por Vinicius. Não havia ônibus em circulação na rodovia e poucos carros passaram por eles ignorando o pedido de carona, mas os dois prosseguiram mesmo assim. Quando já estavam na metade do caminho e o sol se punha, finalmente conseguiram transporte na boleia de um caminhão até a entrada da cidade.
São Marcos nunca estivera tão silenciosa, muitas casas totalmente escuras e as poucas com luzes acesas tinham portas e janelas trancadas. A maioria dos comércios estava visivelmente fechado há algum tempo e a entrada da academia que Paula costumava frequentar tinha uma faixa informando o encerramento das atividades.
– Ah meu Deus!
Paula segurou a mão de Vinicius e lágrimas rolaram por seu rosto quando avistou uma das praças em que gostava de fazer caminhada totalmente reduzida a cinzas e muitas casas ao redor do local parcialmente destruídas. Apertaram o passo até a casa de Celso e Mariana, onde tocaram a campainha e bateram na porta insistentemente, mas o local estava vazio.
– Para onde eles foram? Se não recebi resposta será que...?
Vinicius a olhava sem saber o que dizer.
– Paulinha? – uma senhora os observava através de uma fresta na porta da casa ao lado.
– Dona Maria! – Paula limpou as próprias lágrimas e tentou sorrir ao ver a vizinha que conhecia de vista – está tudo bem? Você sabe onde estão meu pai e a Mariana?
– Ixi menina! Olha, sei que a Mariana foi passar uns tempos na casa dos pais dela por causa do final da gravidez porque seu pai foi para a guerra...
– Meu pai o que? – ela se deixou cair sentada na mureta da entrada da casa.
– Venha, vem aqui dentro tomar um copo d'água, a gente pode tentar telefonar pra ela...
– Não, tá tudo bem... – ela se levantou em seguida – Eu sei onde é a casa, eu vou até lá.
– Tá certo, mas ó, não fica na rua assim sozinha viu! Tem depredadores e saqueadores por aí...
Paula mal a deixou se despedir e começou a correr pela rua, com Vinicius atrás dela. Voltou à praça destruída cambaleando, ofegante e se apoiou em algumas ruínas.
– Salesh! Pára por favor... Tem alguma coisa... – Vianei soava exausto.
– O que? – ela se virou angustiada e notou o Amuleto anil brilhando no pescoço do menino.
– Seu Amuleto tá brilhando! – ele apontou para a orelha dela.
– O seu também...
– Você também acha que essa corrida te deixou mais cansada do que deveria?
Paula confirmou com a cabeça:
– Será que algum dos outros guardiões já está enfrentando um senhor da guerra?
Vinicius sorriu:
– Sim! Pode ser isso! Nós devemos enviar nossa energia para ajudá-los!
– Mas não aqui, ao relento... Vem.
E eles caminharam por mais algumas ruas desertas, até que Paula tocou outra campainha. Alguém espiou pela janela e em seguida Mariana escancarou a porta com os olhos já lacrimejantes:
– Paula!
– Nós precisamos...
E não foi mais capaz de falar, ela e Vinicius entraram enfraquecidos e se sentaram-se no primeiro sofá que encontraram, sob olhares ressabiados dos demais moradores da casa.
Mariana pediu para ficar sozinha com os dois e sentou-se também:
– O que aconteceu?
– Precisamos de uns minutos... Está tudo bem. – Paula respondeu com a voz muito baixa, já de olhos fechados.
Vinicius colocou a cabeça no colo de Mariana e também ficou quieto.
Paula ouviu uma gargalhada, arregalou os olhos e se projetou para frente:
– O que?!
– Paula! – Mariana esticou o braço e segurou a mão da enteada – Está tudo bem! O que foi?
– Você falou comigo? Você riu? – ela ofegava.
– Não... Do que você está falando?
Paula engoliu a seco:
– Meu brinco ainda está brilhando?
– Não...
– A batalha acabou.
Vinicius espreguiçou-se e abriu os olhos sorrindo:
– Quanto tempo?
– Alguns minutos apenas.
– Acho que não foi suficiente. – Seu sorriso se desfez.
– Tenho certeza que não.
Mariana permanecia aflita.
– Está tudo bem Mariana, só precisávamos de um lugar para descansar...
– O que vocês estão fazendo aqui?
– Treinando guardiões para Gaia... Te explico depois. Meu pai foi para a guerra?
– Se voluntariou, ele insistiu que precisava fazer algo, mas me prometeu que voltaria para o parto... – ela alisou a própria barriga e suspirou.
– Ele não levou esferas para me enviar?
– Acredito que não.
– Pode ser isso... Eu enviei uma para ele e não tive resposta.
– Ele tem me escrito uma vez por semana, vamos ver o que ele diz na próxima carta.
Ambas trocaram sorrisos forçados, tentando esconder a preocupação. Depois de conversarem por mais um tempo, se atualizando sobre a situação, Vinicius e Paula aceitaram dormir nos sofás da sala para que no dia seguinte um dos parentes de Mariana lhes desse uma carona de volta a Santa Barbara.
Paula demorou a dormir porque não parava de pensar em seu pai e na gargalhada que tinha ouvido.
E foi a primeira noite que teve um pesadelo com Ícaro, o senhor da guerra de Gaia.
Paula encontrou o grupo treinando intensamente logo cedo. Sorriu ao ver que a Pedra da Terra brilhava apoiada em cima de um dos fardos de feno enquanto Elaine e Beatriz conseguiam fazer acrobacias perfeitas, desviando dos golpes de Vinicius. Ao perceberem sua presença, os três pararam.
– Continuem, continuem...
– Nossa, você está com umas olheiras... – Ester a encarou, cismada.
– Eu sei... Tentei não dormir, sabe... Mas é impossível...
– Sonhou novamente com ele?
– Sim... Não é um sonho propriamente dito... É mais uma voz, uma sensação... E eu sei que não é Datemis, é diferente. Parece que ele me conta seus planos, é muito estranho, acordei com a imagem de um prédio na cabeça, e eu sei exatamente qual lugar é: o prédio do Senado.
– Do Senado?! Será que ele é um político? Seria bem irônico até... – Lygia ria.
– Espera aí, você falou que o nome dele é Ícaro? – Dimitri franziu a testa.
Paula concordou com a cabeça.
– O ministro da defesa... – ele correu o olhar pelos presentes – o nome dele é Ícaro Costa.
– Meu Deus! Nós temos que ir até lá!
– Ir até lá? Fazer o que? Falar com ele? Não conseguiríamos sequer chegar perto.
– Talvez se estivéssemos armadas, talvez se esperássemos ele sair do prédio com apenas alguns seguranças... – Lygia ficava séria de repente.
– E onde iriamos conseguir armas? – Paula não acreditava que estavam realmente planejando aquilo.
– É tempo de guerra e acredito que os contatos de Patrania possam nos ajudar.
– Pode ser...
– Nós vamos precisar de um carro também...
Vinicius observava, inquieto. As lutas que havia assistido voltavam à sua lembrança, mas ele jamais admitiria que estava com medo.
Já fazia três meses que estavam treinando em Gaia quando Paula finalmente recebeu uma esfera mensageira de Celso, para seu alívio. Ele estava de volta a sua casa, para o nascimento de suas irmãs.
Após muitas horas de viagem num furgão emprestado, os guardiões chegavam a São Brás, bem no meio do país.
– Nem parece que há guerra se olharmos somente esse lugar. – Paula observou intrigada os prédios do governo e as casas dos políticos, intactos.
– O Palácio Imperial em Antaris também não foi destruído durante nossas guerras... – Vinicius lembrou e ela se sentiu envergonhada.
– É, parece que os líderes raramente sabem o que realmente acontece com seus governados..
Naquela noite o grupo adormeceu dentro do carro e planejavam observar o movimento do prédio do Senado no dia seguinte, tentando localizar Ícaro.
Paula foi a última a acordar e quando desceu do furrgão e os demais lhe desejaram bom dia, ela apenas começou a caminhar em direção aos prédios governamentais.
– Salesh?! Onde você está indo? – Vinicius foi atrás dela, tentou segurá-la, mas recebeu um empurrão.
Lygia e Ester abandonaram o que estavam fazendo e correram atrás dela também, mas nem os esforços dos três ao mesmo tempo faziam a princesa parar. Ela caminhava ereta, sem desviar o olhar e sem dizer nada.
– Ela tá em transe ou algo assim.
– O que vamos fazer?
– Vamos com ela! – Ester concluiu.
Os demais concordaram e seguiram Paula.
Lygia voltou correndo ao carro, pegou duas pistolas no porta-malas, escondeu por dentro do casaco, agarrou a Pedra da Terra e alcançou o grupo. Alguns minutos depois eles se aproximaram do perímetro que era guardado por alguns seguranças, dois deles interceptaram o grupo, mas Paula os encarou e eles se afastaram, como dois cachorros obedientes. Assim, afastando todos que se aproximavam, eles entraram pela porta lateral de um dos prédios e em seguida no elevador.
– Devemos atirar nela? Sei lá... Na perna? – Elaine sugeriu
– Não! – Ester gritou – Não será melhor tirarmos o Amuleto dela?
– E se isso for o que impede Datemis de dominá-la? – Vinicius observava a pedra vermelha cintilando.
– Mas... Ela já não está dominada?
– A gente tem que fazer alguma coisa! – Lygia tremia.
As portas do elevador se abriram e Paula continuou a caminhar por um dos corredores. Diversas pessoas circulavam, mas ninguém dava atenção ao pequeno grupo de jovens. Paula finalmente girou uma das maçanetas e entrou num dos amplos escritórios. Os demais ficaram parados na entrada, na dúvida do que fazer.
O local era decorado com cores vibrantes e havia uma mesa de mármore com uma poltrona logo atrás, virada para a janela. Uma voz grossa veio desta direção:
– Datemis, eu não sabia que você estava em Gaia. Aliás, não temos notícias suas desde...
A cadeira foi girando lentamente e um homem de paletó, gravata e cabelos bem penteados, arregalou os olhos:
– Quem é você?
– Olá Ícaro. – A voz de Salesh estava rouca e mais fria do que nunca.
O homem acabou sorrindo e ofereceu uma cadeira, de frente com a sua. Ambos ignoravam a presença dos demais. Paula sentou-se e bocejou:
– Tive alguns contratempos em Antaris, fui absorvida.
Ícaro gargalhou:
– E isso é possível?
– Parece que sim, ela é híbrida.
– Híbrida, hein! –o homem se levantou e aproximou-se, para observar Paula. Colocou o rosto bem próximo ao dela e analisou interessado seu olhar.
– Mas ainda consigo te auxiliar. Mais cedo ou mais tarde me libertarei deste corpo.
– E estas outras crianças? – Ícaro não desviava os olhos do corpo de Paula.
– Inofensivos.
Ester encheu os pulmões, pronta para gritar algum desaforo, mas Vinicius apertou seu braço e moveu a cabeça em negativa.
– Ótimo. – Ícaro encostou-se a mesa e cruzou os braços.
– Mas vamos ao que interessa no momento: os planos para a bomba nuclear e onde vamos estar durante o ataque... Imagino que...
A conversa foi bruscamente interrompida pelo grito agudo que Paula soltou. Levantou-se pondo as duas mãos na própria cabeça e fechou os olhos apertando-os fortemente:
– Não! Ahhhh! – e se agachou no chão.
Ester e Lygia ajoelharam-se alarmadas e seguraram o corpo de Paula que trepidava como numa convulsão, enquanto Ícaro observava curioso.
Vinicius reparou na arma na cintura de Lygia e pensou em atirar no homem, mas permaneceu atônito com a cena, sem conseguir tomar uma decisão.
Ícaro apertou um botão do telefone e apenas disse:
– Chame os seguranças e uma ambulância. – Depois saiu pela porta abotoando o casaco – Datemis, me procure quando tiver superado esse contratempo.
Dimitri correu na direção do homem, mas com apenas um braço Ícaro o empurrou em direção a uma mesa de vidro num dos cantos e esta se espatifou com o impacto.
– Aí Meu Deus! – Lygia correu ao encontro do amigo que gemia e se arrastava para longe dos cacos de vidro. Seu braço tinha dois grandes cortes, que já vertiam sangue.
– Lygia! Me ajuda... – gritou.
– O socorro está chegando! – ela olhava aflita para os demais.
Elaine correu para fora da sala, tentando buscar alguém mais rapidamente.
Paula parava de se debater, mas permanecia de olhos fechados e gemendo baixo. Lygia então se assustou ao sentir algo quente em sua perna:
– Puta que pariu! – ela retirou a Pedra da Terra do bolso e logo em seguida a soltou no chão – Está muito quente! Não consigo segurar!
Dimitri gritou fortemente e esticou o braço tremendo. Todos ficaram boquiabertos quando os ferimentos lentamente eram curados sem nenhuma intervenção visível.
Vinicius foi o primeiro a conseguir reagir:
– É isso que o Amuleto de vocês faz?! – sorriu – Então acho que realmente temos chance de derrotar o Senhor da Guerra.
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