Sete: a seleção
Anandí e Madican viajaram para a cidade de Sarati, pois acreditavam que entre as tropas encontrariam os mais fortes guerreiros. A notícia se espalhou e a todo o momento voluntários se apresentavam querendo salvar Antaris e nem sabiam de quê.
Era a primeira vez que ela viajava de dirigível e assim que subiu a escadaria para dentro da enorme estrutura correu como uma criança em direção a uma das janelas e passou quase o tempo todo em pé, olhando a vista. Exceto quando levantaram voo e pousaram e ela se sentou e agarrou o braço de Madican achando que iria passar mal.
– Madican! É tudo tão lindo! – A princesa observava encantada as construções, rios e montanhas passando lentamente por baixo deles.
– É, não é? Eu lembro que... – e se calou.
– Lembrou da Lúcia?
– Não tem como não lembrar... – ele suspirou – Foi com ela minha única viagem de dirigível até hoje. Como é possível que ela tenha mudado tanto?
– Às vezes eu penso que ela sempre foi assim... Um pouco perturbada. E nós que não percebíamos...
Algum tempo depois ela sorriu e falou divertida:
– Mas você poderia trazer a Raíza para passear qualquer dia. Criar umas lembranças melhores.
– Poderia... – Madican sorriu também – Ela me parece uma moça que gosta de aventuras.
– É mesmo é? Conte-me tudo!
– Não há nada de tão diferente para contar. – Ele passou a mão pelos cabelos, encabulado – Ela possui cabelos verdes, é bastante falante, não teve a menor vergonha de me chamar para fazermos um picnic nos jardins do palacete da Duquesa, nem de me beijar...
– Te beijar? – Anandí deu um pequeno grito que chamou a atenção dos outros passageiros e depois continuou a falar mais baixo – Mas assim, na primeira vez que se viram?
Madican balançou a cabeça concordando.
– Já gostei dela! – a princesa ria.
– Eu também. É difícil admitir que alguém que meu pai sugeriu seja a pessoa certa pra mim, mas talvez seja.
– Talvez seja...
Numa tarde, ainda em Sarati, Anandí decidiu ir até a praia. Ela nunca tinha visto o mar de perto e o achou bem menos assustador do que haviam lhe contado. O barulho das ondas a seduzia. O lugar estava vazio, pois o frio estava forte aquele dia, mas ela não se importava. Subiu numa das pedras, sentou-se e ficou observando ora água lá embaixo, ora o brilho das construções no lado oposto. Então fechou os olhos e decidiu meditar.
Mas uma voz de criança a interrompeu:
– Princesa?
Ela abriu os olhos e sorriu para um menino:
– Sim?
Era um platinado, vestindo o uniforme dos cadetes, estava descalço e usava cabelos compridos.
– Ouvi dizer que estão à procura de guerreiros poderosos para uma missão muito importante.
– É, estamos sim. – franziu a testa.
– Vim me oferecer.
Ela inclinou a cabeça, comovida:
– Você não acha que é muito jovem para ser guerreiro?
– Não. Seja qual for o perigo, eu aguento.
– Ah é? E o que seus pais acham disso?
– Eles me conhecem. Sabem como sou corajoso e poderoso.
– Sei...
– Anandí! – Madican gritava da ponte.
– Eu tenho que ir, a gente se encontra novamente, talvez daqui uns seiscentos dias?
– Está bem – o menino parou com as duas mãos pra trás das costas e a encarou seriamente – treinarei bastante.
Naquele mesmo dia, decidiram retornar à Cidade Imperial. Não haviam encontrado guerreiros sensíveis o bastante para despertar o poder de nenhum dos Amuletos.
Na saída da fortaleza sede das tropas, Madican e Anandí encontraram um jovem, mais ou menos da mesma idade deles, recém-chegado a Sarati. Ele tinha o cabelo castanho, despenteado, calças arrastando no chão, levava uma mochila surrada e os papéis da inscrição para as tropas.
Conversaram por algum tempo e depois entraram juntos na fortaleza indo até a sala que Anandí havia reservado para as entrevistas. O rapaz se chamava Liam e realizou sem questionar os testes de agilidade e força que haviam elaborado. Ele estava encantado por estar na presença da princesa de Antaris e não queria decepcioná-la.
Madican e Anandí trocaram olhares esperançosos. Ela então repetiu o discurso que já havia feito a tantos outros e outras:
– Você vai ter que prometer que não vai dizer a ninguém o que vai acontecer agora.
O rapaz concordou com a cabeça, seriamente.
Então eles vendaram seu rosto e pediram que esticasse as mãos.
Madican foi colocando cada um dos Amuletos na mão de Liam e, como com os soldados anteriores, nada acontecia. Até que um dos Amuletos irradiou um brilho diferente, como havia acontecido com Salesh alguns anos atrás. A princesa não conseguiu conter um pequeno grito.
– Está tudo bem? – Liam perguntou assustado.
– Sim, está tudo bem sim. – Ela respondeu, extasiada.
Guardaram os Amuletos e tiraram a venda do rapaz. Quando ele viu as lágrimas, arregalou os olhos e não sabia o que dizer.
– Está tudo bem, está tudo bem. – Madican bateu em seu ombro, enquanto Anandí se afastava tentando se acalmar – Nós gostaríamos de convidá-lo para vir morar no palácio e participar da formação de uma nova tropa.
Liam sorriu surpreso.
A vontade de Anandí era pedir que Liam tentasse usar imediatamente o Amuleto laranja, mesmo que ele não tivesse brilhado, mas se conteve. Ainda não tinham certeza se poderiam confiar no rapaz e Lótus sequer estava lá para demonstrar se ele merecia receber um Amuleto. Decidiram que somente após selecionar todos os guardiões, e mesmo assim após algum tempo juntos, contariam a verdade sobre a real missão.
De volta à Cidade Imperial, Liam foi acomodado num dos quartos do segundo andar, ganhou um flutuador e túnicas novas. Passou por longas entrevistas com Jadano e Patrania que investigaram inclusive seu passado. Quando souberam sobre tudo que já havia estudado, Liam foi encarregado de desenvolver métodos e regras para os futuros guardiões.
A casa de treinos, recém-construída, foi aberta para que ele pudesse iniciar os trabalhos. Tratava-se de um local amplo, de um único cômodo, com uma área para lutas, alguns armários com instrumentos de guerra e aparelhos para execução de exercícios. O telhado e boa parte das paredes eram transparentes para aproveitar a luz dos sóis.
Liam ainda não sabia os detalhes da missão ou da magia que estaria envolvida em sua vida dali para adiante, mas estava imensamente feliz de ter uma chance de ser alguém melhor. E não deixaria essa oportunidade escapar.
Nos dias que se seguiam Anandí, Madican e Liam passaram a visitar diversas cidades pesquisando por pessoas que pudessem se tornar guardiões.
Às vezes aconteciam situações estranhas, como quando uma família de comerciantes se apresentou oferecendo seus préstimos. Alguns Amuletos brilharam nas mãos de uma das mulheres, mas ela estava grávida e acharam por bem não a recrutar. Após o nascimento do menino Anandí voltou à vivenda da família, mas o Amuleto não brilhou. Curiosa que estava, discretamente colocou um dos Amuletos na mão do bebê quando ninguém estava olhando, mas ao contrário do que esperava a cor da pedra desapareceu por alguns instantes. Anandí estremeceu e guardou o fato para si.
Em outra ocasião, vários dos Amuletos brilharam na mão de um senhor bastante idoso e, apesar da alegria dos vizinhos e parentes, ele também não foi recrutado em virtude da idade avançada, mas foi convidado a fazer parte do Conselho Imperial.
O grupo decidiu visitar Nialon e Alamandá que estavam em paz já há algum tempo. Quando se aproximaram, Anandí se lembrou de Gaia e de toda a devastação que havia presenciado. Nialon não estava tão destruída, mas havia um cheiro forte e muita sujeira pelas ruas. Numa das paradas, enquanto ela comprava alguns tecidos para os uniformes que pretendia fazer para os guardiões, Liam a puxou pelo braço, sem a menor cerimônia o que até a assustou, pois ele sempre mantinha uma distância exageradamente respeitosa:
– Olha! – e apontou para os fundos da loja onde dois rapazes lutavam.
Um deles, de cabelos azuis, tinha movimentos muito rápidos que chamavam atenção. Anandí perguntou à dona da loja quem eram os rapazes e recebeu a resposta orgulhosa de que Áster, o de cabelos azuis, era seu marido e professor de lutas. Anandí aguardou o final da aula e quando entrou na sala imediatamente o rapaz a reconheceu:
– Princesa Anandí! A que devo a honra? Por favor, sente-se, vou providenciar o que quiserem!
– Não se preocupe – ela sorriu – Eu gostaria apenas de fazer alguns testes com você e...
– Para a nova tropa? – ele a interrompeu admirado – Mas é claro! Estou ao seu dispor!
Liam e Madican também entraram no local e pediram a esposa de Áster para que não fossem interrompidos. Depois dos testes físicos Anandí colocou cuidadosamente os Amuletos na palma da mão de Áster e dois deles brilharam. Ela passou os braços em torno do pescoço de Liam, que mal reagiu:
– Obrigada!
Ao retirar a venda do rapaz, Anandí pediu que ele chamasse a esposa e lhes convidou a se mudarem com os filhos para a Cidade Imperial. Eles imediatamente aceitaram e passaram a morar numa vivenda nas proximidades do palácio.
Dois dias após a chegada de Áster ele e Liam estavam sentados nos degraus da entrada da casa de treinos no intervalo de alguns exercícios:
– Então, o que significa esse recrutamento? – Áster estava intrigado, mas não queria parecer mal-agradecido pelo cargo.
– Acredite, eu também não sei. Mas imagino que...
E a conversa foi interrompida por gritos. Ao observarem melhor um dos guardas empurrava uma pessoa em direção ao pequeno cárcere que ficava nos jardins do palácio. Ambos curiosos se aproximaram:
– O que tá acontecendo?
– Nada demais – o guarda respondeu firme enquanto o homem se debatia – apenas um invasor corriqueiro.
– Eu não sou invasor! Estava meditando! Os jardins estavam calmos e perfeitos para a concentração!
– Sei, sei... – e o guarda se afastou.
– A Anandí testa tantas pessoas... O que você acha dela testar pessoas que estão no cárcere? – Áster sugeriu
– Talvez... Podemos conversar com ela.
Nita estava nos jardins do fundo do palácio arrumando algumas mesas para o Festival das Flores quando avistou um menino que se aproximava, descalço, porém bem vestido.
– Eu gostaria de falar com a princesa.
– Oi meu amor, como foi que você entrou aqui?
– Pulei o muro.
– Mas é muito alto! – ela sorriu desconfiada – Você marcou uma audiência?
– Não.
E não houve tempo para mais perguntas. Ele correu para dentro do palácio e Nita foi logo atrás, gritando pelos guardas.
O menino trombou com Anandí logo no primeiro corredor, antes que alguém o alcançasse.
– Você?! – ela o olhou espantada – Você não é o Platinado que conheci em Sarati?
– Eu sabia que a senhora lembraria.
Um guarda e Nita se aproximaram, mas Anandí sacudiu a cabeça:
– Tudo bem, podem deixá-lo.
O menino sorriu vitorioso. Ela apontou para a sala ao lado e ele a seguiu.
– Seus pais sabem que você está aqui?
– Mais ou menos...
– Você veio mais cedo do que o combinado não foi?
– A senhora me disse seiscentos dias, mas meus pais se mudaram para a Cidade Imperial... Eles têm uma hospedaria agora, sabe. E eu venho me dedicando desde aquele dia em Sarati.
– Qual seu nome?
– Zaynoah, mas eu prefiro que me chamem de Noah.
– Pois bem Noah, se daqui a outros trezentos dias você estiver assim tão animado...
– Não! Eu quero e vou ser guardião! Já passou metade do tempo e os portais se abrirão em breve! A grande missão tem algo a ver com isso, não tem?
– Como você sabe sobre os portais? – ela estranhou.
– Sabendo... Ouvindo...
– Contou isso para alguém?
– Apenas para minha tataravó, Alma.
Anandí sorriu aliviada:
– Alma faz parte do Conselho não faz?
– Sim!
– Tá bom... Fica aqui.
Anandí se levantou para buscar os Amuletos em seu quarto e quando retornava quase todos começaram a brilhar enquanto ela ainda descia as escadas. Franziu a testa, colocou-os no bolso e continuou voltado para a sala das almofadas onde Noah estava. Os Amuletos brilhavam cada vez mais, tanto que já era possível vê-los através do tecido, ela então desistiu de entrar no local e voltou ao quarto para guardar os Amuletos novamente. O menino faria muitas perguntas e já estava claro que ele tinha o poder necessário para usar os Amuletos.
– Desculpe a demora. – Ela retornou sem uma boa desculpa para sua ausência, mas Noah não estava preocupado com isso.
– A seu dispor!
– Você pode treinar com os guardiões, mas ainda não tem idade para ser um. Quando puder, eu te aviso. E não comente nada sobre os portais com ninguém, nem com os guardiões. Eles ainda não sabem o propósito de tudo isso.
– E por que eles acham que estão aqui? Como acreditam que farão algo?
– Eles confiam em mim.
– Então eu também confiarei.
Ela sorriu:
– Quantos períodos você tem?
– Nove.
– Realmente acho melhor antes de tudo falarmos com seus pais. Você precisa de um calçado?
– Não. Ando descalço para aprender a suportar a dor.
Anandí olhou-o admirada e não sabia o que responder. Então o levou para conhecer Liam e Áster que acharam divertido ter um aprendiz.
Durante algum tempo não encontraram mais ninguém que despertasse brilho nos Amuletos, então Anandí finalmente concordou com a sugestão de Áster e Liam e, sem muita convicção, compareceu ao cárcere para testar o invasor.
– Eu gostaria de fazer um teste com você...
– Kamal, meu nome é Kamal. – O rapaz, sentado na única cadeira disponível numa das salas do cárcere, olhava para Anandí.
– Pois bem, Kamal, eu gostaria de fazer um teste e, se você passar nele, há alguns testes físicos para serem feitos e você poderá ser recrutado para uma tropa especial.
– E se eu não aceitar? – Ele levantou uma das sobrancelhas.
– Bom aí você continua aqui até o final do período, que eu vi ser a sua pena. Você arrumou muitas brigas por aí antes de invadir nossos jardins...
Kamal balançou a cabeça, pensativo e olhou de Anandí para Madican diversas vezes. A princesa estava a ponto de gritar para que ele parasse de olhá-los daquele modo tão desafiador, quando ele finalmente respondeu:
– Ok.
– Vou ter que vendá-lo por uns minutos.
O rapaz riu:
– Se é assim que você prefere...
Anandí ignorou o comentário e, após vendá-lo, retirou os Amuletos de sua mochila, aproximando–os da mão de Kamal. E qual não foi a surpresa quando um dos Amuletos brilhou.
– Ótimo! – ela soltou a venda
– Já?
– Temos os testes físicos para fazer, mas, você aceitaria fazer parte da tropa?
– Talvez... Conte–me mais.
Anandí revirou os olhos:
– Trata-se de um grupo de elite que fará alguns trabalhos especiais para o império. É necessário disciplina, força e ética. – Ela disse a última palavra bem devagar, fazendo Kamal sorrir:
– Eu não pensaria diferente.
– Estaremos de olho em você e se não se comportar, voltará para cá.
– Justo.
Patrania obviamente protestou, mas, mais uma vez foi derrotada. Kamal era um pouco preguiçoso para se levantar cedo e treinar, mas, com insistência dos outros dois e até de Noah, ele entrou nos eixos.
E os portais se abriram mais uma vez...
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