Doze: as histórias são reais
Paula vestia a mesma camiseta preta há dois dias, respondia a todos com monossílabos e passava diversos minutos focada em cada objeto que pertencia a Lúcia e que estava exposto naquela sala.
Sentada no sofá, com a cabeça apoiada no ombro de Rodrigo, ela escutava o pai falar ao telefone como se fosse sobre qualquer paciente:
– Sim, foi um choque... Não, eu não sei como ela comprou uma arma... Sim, ela foi encontrada pela polícia num parque aqui perto. Obrigado. Então a papelada está pronta? Após a missa eu vou buscar.
Mas falava da morte de Lúcia.
Rodrigo não dizia nada sobre o assunto, permanecia o lado da amiga e de tempos em tempos oferecia-lhe comida ou água, que ela sempre recusava. Ele tinha ido para casa no final da tarde anterior, mas voltara novamente, bem cedo.
Paula guardava no bolso uma carta que não mostrara a ninguém. Uma carta confusa, cuja pior parte dizia: "... estou sendo covarde, eu sei. Causei mal a várias pessoas e me envergonho disso. Por favor, querida, nunca desista. Não faça como eu. Eu sei que será um choque, mas, eu devo lhe contar que não sou sua mãe biológica. Não vou te dizer mais do que isso, mas não se preocupe. As coisas irão se resolver e tudo ficará bem. Você sabe. Você voltará ao seu lugar e será muito feliz. Eu preciso me libertar...".
Bruna entrou na casa sem pedir licença e sem falar com ninguém. Abraçou a amiga, com os olhos vermelhos e tremendo:
– Acabei de saber. Me perdoa? Eu não... Nós não...
– Perdoar você por quê? – Paula respondeu entre soluços.
– Só me deixa dizer isso.
Uma semana depois, Paula saiu de casa pela primeira vez desde o enterro, andou a pé por algumas ruas e se sentou num dos bancos da praça vazia. Passou um longo tempo observando um passarinho cutucando alguns galhos secos. De vez em quando uma lágrima caia e ela a limpava imediatamente. Pelo canto do olho viu uma pessoa parada do outro lado da rua observando-a, sentiu um arrepio e correu para casa.
Anandí não soube como se aproximar da filha e era, mais uma vez, a última noite com os portais abertos.
Abriu o armário e vestiu mais uma de suas camisetas pretas. Escovou os dentes, ajeitou os cabelos, que agora eram radicalmente curtos, e pegou a mochila. Ignorou a presença do pai na cozinha e caminhou para a escola, onde fingiria prestar atenção nas matérias.
Após a aula, comeu um cachorro-quente e foi para a academia. Lá, como quase todos os dias, encontrou seus únicos dois amigos que não a tratavam de um jeito estranho: Rodrigo e Bruna. Já havia passado alguns meses, mas ela ainda sentia como se sua mãe tivesse estado com ela no dia anterior.
Ali ela passava horas golpeando sacos de areia e, ao menos duas vezes na semana, outros seres humanos. Ela imaginava o rosto do pai, feliz e sereno, como se não se importasse com a morte de sua mãe, e batia com ainda mais força. Às vezes também se imaginava gritando com a Lúcia, porque ela a tinha abandonado, e em momentos assim não conseguia mais golpear nada, nem ninguém. Nestes dias ela corria quilômetros na esteira.
Naquela tarde, atipicamente, Bruna a chamou para irem até sua casa.
Quando entravam no prédio, Paula reparou no pingente laranja no pescoço de Bruna:
– Engraçado... Minha mãe tinha um pingente parecido com o seu, mas de outra cor.
– É? Onde ela o comprou? Pode ser no mesmo lugar que eu...
– Sabe que eu nem sei. Ficava no meio das coisas esquisitas que ela tinha.
– Coisas... E ela dizia de onde eram? – Bruna abria a porta do apartamento.
–Sim! De um lugar com castelos e pessoas de cabelos coloridos... – gargalhou ao notar o absurdo que dizia – Enfim, vamos pedir algo para comer?
Paula sentou-se e observou a decoração simples da sala e da cozinha, parando encantada no lustre colorido.
Bruna encostou a porta, respirou fundo e perguntou de uma vez:
– As histórias eram de... Antaris?
Paula tremeu e olhou assustada para a amiga:
– É... Como você conhece esse nome?
– Como você conhece?
– Como eu conheço o que?
– Pensei que a Lúcia nunca tivesse te falado disso.
– Como assim? – Paula levantou do sofá e olhou para a porta de entrada.
– Eu acho que ela te disse algumas verdades. Não precisa ficar com medo.
Paula engoliu a seco:
– Acho que eu vou pra casa.
– Não Paula! Me conta, o que você sabe?
Paula ficou parada por um tempo, ouvindo a própria respiração e pensando no quão ridículo era o que ela estava prestes a dizer:
– De uma tal de outra dimensão... De Antaris e Anandí e Madican. De uma Gruta onde acharam Amuletos e falava também das roupas e das luvas...
Bruna se aproximou mais:
– Tudo que ela te falou... Existe.
Paula começou a tremer, pensou em correr e ir embora, mas em seguida pôs a mão na própria cabeça e sentou novamente.
– E você veio para me levar para sempre. Era disso que ela tinha medo. Ela não suportaria e foi por isso que ela se matou... E foi por isso que você me pediu desculpas aquela vez! – a voz de Paula foi aumentando – Ela se matou por culpa sua!
Seu coração batia acelerado, Paula não conseguia decidir entre ir embora e nunca mais falar com Bruna, contar tudo a seu pai e chamar a polícia ou esperar e ver até onde toda aquela história a levaria.
– Não! Eu... Eu sei que devia ter sido mais cautelosa, que sua mãe tinha uma doença... – Bruna gesticulava, tentando se justificar - Mas nós não queremos te levar a força... Nós só queremos que você conheça Antaris. Anandí nunca vai te obrigar a nada. Ela só quer te ver e saber que você está bem. E depois, depois você escolhe. Afinal, você é metade Antariana, metade Gaiana.
– Então isso também é verdade, minha mãe não é minha mãe? – Paula chacoalhava a cabeça cada vez que dizia coisas que achava impossíveis.
Bruna sacudiu a cabeça em negativa e Paula finalmente começou a chorar. Enterrou a cabeça nas próprias mãos e deixou-se desabar em lágrimas. Bruna também tinha os olhos marejados e se sentou numa cadeira, permanecendo em silêncio, esperando a próxima reação da amiga.
Quando se acalmou Paula exigiu que Bruna lhe contasse tudo o que sabia. Conforme a moça ia contando rapidamente sua história, Paula interrompia para fazer perguntas e não podia crer que tudo era tão parecido com o que Lúcia sempre lhe contava. Mas tudo ainda parecia ser uma grande mentira.
Após alguns minutos de reflexão, Paula disse, ainda desconfiada:
– Eu quero uma prova. Quero saber que algo é verdadeiro, que não é tudo sei lá... Que você não é uma maluca que vai me matar.
– Eu posso provar, mas você tem que ficar calma.
– Deixa a porta destrancada.
Madrini sorriu e, enquanto girava a chave, explicou:
– Te falei que este é o Amuleto laranja, cujo poder é da onça.
– Ã hã.
– Então, se eu me transformar numa onça, você acredita?
Paula deixou escapar um riso irônico:
– Acho que sim.
– Só preciso de um pouco de concentração, porque aprendi faz pouco tempo.
Bruna parou no meio da sala, com os olhos fechados. Paula não podia acreditar no que via: o Amuleto irradiava uma luz forte, o contorno do corpo de sua amiga foi se modificando vagarosamente e as roupas desaparecendo, sem sons. A cor de sua pele foi mudando e sua forma se curvando. Paula abriu a boca sem saber o que dizer e teve novamente o impulso de correr, mas a curiosidade era muito maior. Já não se importava se tudo era ilusão e estava louca, nem se Bruna iria sequestrá-la. Paula não tinha mais nada a perder.
Havia então uma verdadeira onça pintada no lugar em que Bruna estivera segundos antes, apenas a corrente e o Amuleto permaneciam os mesmos, como uma coleira. Paula rodeou o animal cogitando a possibilidade de ser uma ilusão. Quando deu um passo para se aproximar, a onça fez um barulho baixo, como o início de um rugido.
– Nossa...
O corpo então rapidamente passou pelo processo contrário e Bruna retornou à aparência original, ofegante:
– Só há dois problemas com isso. – Ela se apoiou no sofá – Primeiro o desgaste físico, não conseguimos ficar assim mais que alguns segundos. E outro é que perdemos a noção de algumas coisas, incorporamos o instinto animal, sabe...
– Sei... Achei mesmo você meio arisca... – Paula estava hipnotizada por aquele momento mágico.
– Você acredita agora?
– Talvez... – ela admitiu ainda olhando atordoada para Bruna.
– Então... Em algumas semanas os portais se abrirão... E nós pensamos que... Você poderia conhecer Antaris. O que você acha?
– Eu... Vou pensar... Mas agora eu queria ir pra casa mesmo.
– Tá... E outro dia, não precisa ser hoje, nós precisamos pegar os Amuletos que a Lúcia guardou. – Ela conseguiu não dizer "roubou".
– Tudo bem.
– Você sabe que o Amuleto vermelho é seu, não sabe?
– Meu?! – Paula novamente chacoalhou a cabeça.
Nita bateu à porta do quarto de Noah, no meio da noite.
– Noah?
– Já ouvi! – pulou da cama para o toalete. Vestiu sua túnica azul e prendeu parte dos cabelos. Não vestiu as sapatilhas, pois nunca as vestia, a menos que Anandí solicitasse para alguma comemoração solene.
Esta era a noite de que tanto a imperatriz falava desde que se conheceram. Haviam encontrado a tal princesa desaparecida que Madrini dizia ser idêntica a Anandí, só que com os cabelos pretos, o que, aliás, ele estava curiosíssimo para ver. Iria buscar Madrini e Salesh nas passagens enquanto Anandí pacientemente esperaria.
Como já esperava há tanto tempo.
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