Dois: o resgate do Amuleto
Lúcia era sempre a primeira a levantar. Mesmo após tanto tempo ainda sentia–se um pouco nua com as roupas Antarianas: tudo tão cheio de transparências e deixando partes do corpo serem reveladas. Mas procurava não focar no que era estranho e sim no que era tão belo: morava num palácio, tinha amigos e, principalmente, não havia violência.
Arrumava-se com pressa e se metia escada acima para acordar Anandí: dava duas batidas na porta e já ia entrando. Conversavam um pouco e desciam juntas para a refeição da manhã. Passavam horas com Nita e os criados e depois do meio do dia Anandí ia para o educandário enquanto Lúcia cuidava do jardim, onde alguns trechos aos poucos iam ficando mais vistosos, ou passeava no povoado, especialmente na enfermaria. Lá, ela adorava ajudar com os bebês recém-nascidos e cada vez que pegava uma menina no colo dizia a mesma coisa:
– Um dia vou ter uma família para cuidar e vou ter uma filha... – e consigo mesma pensava "e ela se chamará Paula".
Alguns moradores e criados do palácio a chamavam pelas costas de "Luci, a amiga estranha da princesa", mas nunca questionaram sua presença. Achavam que era algum parente distante, ou a filha de algum conselheiro.
Nos dias de folga Madican vinha para o palácio e os três não se desgrudavam. Sempre enfiados na biblioteca ou no porão ou procurando a lendária Gruta da Luz.
Anandí desejava secretamente que quando encontrassem a Gruta obtivesse uma ajuda sobrenatural para administrar Antaris. Lúcia queria descobrir se deveria voltar para Gaia ou ficar naquele lugar que ela considerava um paraíso. Já Madican esperava que Lúcia decidisse por ficar mesmo em Antaris e assim ele poderia se aproximar mais.
Quando se encontravam ele fazia o máximo para estar com ela, que era bastante tímida, e quando surpreendia Madican a observando tão intensamente, ficava vermelha e iniciava alguma conversa boba para acabar com o silêncio.
Então aconteceu o primeiro Festival após a chegada de Lúcia. Era uma festa simples, pois a situação empobrecida de Antaris não permitia grandes ostentações. Algumas mesas foram postas no jardim e diversos nobres vieram de suas cidades. O coral da Cidade Imperial cantava e todos valsavam ao som de harpas. A comida não era farta, mas suficiente e disposta em bandejas de madeira Antariana com Flores da Paz ornando tudo. Já os trajes, esses sim, eram necessariamente maravilhosos.
Anandí usava um vestido laranja, com a cintura transparente e uma pequena cauda que a incomodou a noite toda. No contorno do decote, pequenas pérolas brilhavam mais do que em qualquer vestido naquela noite e combinavam com sua luva. Nita havia caprichado desta vez.
Lúcia teve vontade de chorar quando colocou um vestido longo, esverdeado, com mangas cavadas e saia transparente do joelho para baixo. Conforme andava, seu vestido se mexia tão devagar que ela parecia estar flutuando. As luvas eram as mais delicadas que ela já havia vestido, com arabescos verdes pintados num fundo lilás.
Madican usava um traje vermelho composto de calças perfeitamente retas, camisa sem mangas e luvas opacas. Era o que mais se destacava na festa por combinar o traje com os cabelos. Quando viu Lúcia, não sabia o que dizer, ela definitivamente era a jovem mais bonita que ele já havia visto. Passou a noite toda pensando em tirá-la para dançar, mas não teve coragem, mesmo Anandí insistindo que não tinha como Lúcia recusar. Então o filho de um dos criados a convidou e ela aceitou.
Madican sentou num dos cantos do salão e lá ficou o restante da noite. Ao final da festa, quando havia apenas uns poucos convidados, Lúcia passou por Madican sorrindo e entrou no palácio. O rapaz foi atrás dela, que já estava tirando a peruca e as sapatilhas, indo em direção ao seu quarto. Ele andou mais rápido e a tocou no braço. Quando ela se virou ele engoliu a seco e não sabia o que dizer. Ela se aproximou em silêncio e colocou as mãos dele em sua cintura. Mesmo sem música e sem glamour, eles dançaram um pouco no meio do corredor. Ao se afastarem, ela ficou na ponta dos pés e lhe deu um beijo suave no canto da boca. Então correu para seu quarto, com o rosto em chamas.
E nos próximos encontros eles seguiram assim, entre olhares, toques e sorrisos.
Numa manhã Anandí estava sentada no meio do quarto, com mapas espalhados por todo o chão. Finalmente havia podido pintar as paredes e a partir de então aquele era seu lugar preferido no palácio. Madican bateu a porta, ouviu "entra" e já foi falando:
– Platinada... a Lúcia te contou?
– Ãh? – ela anotava um número em cada folha.
– O que você tá fazendo?
– São os mapas dos túneis subterrâneos, pelo menos os da Cidade Imperial... Pelo menos os já mapeados.
– Nunca tinha visto – sentou-se ao lado dela.
– Acho que é uma pista para a Gruta. Olha aqui: essas são as ruínas da estação; nenhum destes mapas fala se tem um túnel deste lado, só que, lembra quando fomos lá? Não havia umas barragens de madeira cobrindo um túnel bem aqui?
– Acho que sim, não lembro... Talvez ainda não o tenham explorado.
– Qual é! Olha aqui, todos os túneis inexplorados têm uma indicação e aqui não tem nada.
– E qual a sua teoria para este túnel não estar no mapa?
– Jadano não deixou e ele sabe que este túnel leva pra um lado antigo.
– E de onde você tirou a ideia de que ele sabe onde fica a Gruta? E para que ele iria esconder?
– Outro dia eu ouvi ele falar para a Patrania que é hora de resgatar o "Amuleto" e se preparar porque a Dinastia da Guerra está chegando.
– Engraçado, parece que ouço meu pai falar disso faz tanto tempo... Mas talvez seja por isso mesmo que estão recrutando novas tropas e mandando para a cidade de Sarati.
– Talvez.
– E será que esse tal Amuleto tá na Gruta?
– Se está na Gruta eu não sei, mas que tem algo com esse túnel, tem.
– Podemos dar um pulo lá hoje...
Só então Anandí viu uma fita prateada em torno do pescoço do amigo:
– Madican!
– O que? – ele a olhou espantado.
– Você fez a promessa com quem?
Ele sorriu, relaxando:
– Foi para isso que vim aqui, para te contar que me prometi com a Lúcia.
A princesa sorriu chocada e o abraçou:
– Jura? Que legal! Quando foi isso?
– Eu a convidei para um passeio de dirigível e propus a promessa.
– Que maravilhoso! Mas é permitido se prometer com ela, mesmo... Sabe, ela não sendo daqui?
– Não sei, não pensei muito sobre isso... Mas tem uma coisa que me deixou inquieto.
– Diga.
– Ela falou o seguinte "aceito fazer a promessa, se você aceitar que após nosso casamento, você me dará uma filha que se chamará Paula". Eu falei que tudo bem, mas não entendi nada...
– Ah sei lá... A gente não sabe nada do passado dela em Gaia, vai ver é o nome da mãe dela...
– Pode ser... Vou tentar descobrir.
– O Jadano também não viu a fita né? Será que ele não vai ficar bravo e voltar com aquela história de que ela já se envolveu demais?
– Pra mim, ela já é uma Antariana.
– Pra mim também e quando eu for coroada, essa será minha primeira decisão oficial: que ela terá todos os direitos de um cidadão daqui. E se precisar até uso a Pedra dos Desejos, que vou herdar, e a faço Antariana.
– Perfeito! – ele sorriu
– E o que o seu pai falou? Você contou pra ele que ela não é daqui?
– Não contei e nem vou contar que ela não é Antariana... Imagino que o Jadano vá contar mais cedo ou mais tarde... Mas enfim, pra ele tá tudo ótimo. Não me casarei com a princesa, mas me casarei com a dama de companhia dela e pra ele também é um ótimo laço político.
– Ai pelos Deuses! – ela riu.
Depois ficou séria:
– Vocês sabem que vocês não podem... Nós não sabemos como é o organismo dela...
– Eu sei. Ela não tomou os medicamentos e mesmo eu tendo tomado não é garantido que ela não vá engravidar. Mas não estamos pensando nisso...
– Ainda. – ela riu.
– Ainda... – ele desviou o olhar.
Algumas horas depois, os três jovens chegavam às ruínas da velha estação, a bordo de seus flutuadores. Jadano sequer havia perguntado para onde eles iam. Ele já não se importava tanto em monitorá-los, pois acreditava que tinham idade suficiente para saber dos perigos de Antaris.
Uns diziam que aqueles túneis antigos levavam água em tempos de escassez, durante as batalhas com os Dragões; outros diziam que era uma via de transporte; outros que eram passagens secretas por onde as pessoas fugiam de algum perigo. Em alguns períodos passados arqueólogos foram contratados e só conseguiram mapear uma parte dos túneis. O fato é que os livros dos educadores sequer citavam o local.
A estação, como era chamada a entrada dos túneis, consistia em três torres, duas mais altas e retangulares e uma central, mais baixa e arredondada. Elas brilhavam em furta-cor e eram edificadas com o mesmo material de todas as outras construções em Antaris, o que dificultava mais ainda sua datação.
Ao passarem pela porta simples, da torre do meio, chegaram a um pequeno salão vazio e passaram alguns momentos observando as paredes forradas de símbolos e palavras em diversas línguas conhecidas e desconhecidas, sendo algumas indecifráveis. Seguiram pelas escadas que levavam para o subterrâneo, onde os túneis, de um diâmetro imenso, se iniciavam. As paredes dos túneis, revestidas de um material prateado, possuíam longos sulcos em algumas partes, como se algo tivesse sido raspado. O chão era de terra batida e em alguns locais havia grama.
Lúcia não conhecia o local por dentro e se lembrou dos túneis de metrôs, dos brinquedos dos parques de diversões e, principalmente, dos abrigos para os refugiados da guerra.
Adentraram vários túneis e bifurcações, mas não encontraram o final de nenhum deles. Depois de alguns dias e várias visitas saíram por um dos túneis e chegaram numa floresta. Concluíram que haviam atravessado por baixo da Cidade Imperial e estavam bem longe do palácio.
– Vamos por aqui! – Anandí voltou a subir em seu flutuador e entrou numa trilha entre as árvores, que eram apenas um pouco mais altas que eles, com caules brancos e copas verdes claras.
– Vocês não acabaram de me contar sobre o Amuleto. – Lúcia a seguiu – Me falaram da Gruta, mas não explicaram direito o resto.
– É o seguinte – Madican acelerou e ficou ao lado de Lúcia – a Gruta da Luz se ilumina quando os sóis chegam ao meio do dia, sabe por quê? Nós achamos que é por causa do Amuleto. É uma pedra preciosa, a mais preciosa, a mais rara e ela reflete os sóis. É uma pedra grande, feita da energia de nove cavaleiros do Deus Genuí.
– O Deus da Paz.
– Isso. Os nove cavaleiros, que eram os melhores das tropas imperiais, sacrificaram suas vidas para que esta superconcentração de energia surgisse.
– E fizeram isso para que?
– Para que Genuí tivesse força e sabedoria suficiente para vencer Jasper, quando Antaris ainda era um mundo de trevas.
– Hum... E deu certo?
– Deu. E as pessoas acham que o Amuleto foi destruído na luta.
Os três pararam de flutuar quando chegaram a uma clareira e avistaram algumas montanhas no horizonte.
– Que horas são?
Madican desceu de seu flutuador e espetou um galho na terra:
– Umas onze horas. Acho que devemos observar daqui porque temos uma visão boa desta área. Se hoje não avistarmos a Gruta, amanhã testamos outras partes.
As garotas concordaram e também desceram de seus flutuadores. Cada uma se sentou encostada em uma das árvores e Madican deitou com a cabeça no colo de Lúcia.
– Não contei não é? – Anandí falava sem tirar os olhos da imensidão – O Jadano sabe que estamos procurando a Gruta, sempre soube. E eu acho que ele nunca achou que conseguiríamos, achou que eu só saberia o local quando fosse coroada.
– Sabe o que eu acho? – Madican se concentrava numa formiga caminhando sozinha – Que ele também não sabe onde fica. Porque se ele quer tanto o Amuleto, por que não vem buscar? Isso é, se nossa teoria estiver correta.
– E sabe o que eu acho? – Lúcia sorriu olhando para o céu, um pouco emocionada – eu sei tanto sobre vocês e esse mundo e vocês não sabem nada sobre Gaia. Seria tão legal se nós pudéssemos ir juntos para lá qualquer dia.
Anandí a encarou:
– Que bom que você falou isso. A gente sempre quis que você superasse suas lembranças, que pudesse falar e quem sabe até mostrar sua vida para nós. Você acha que a guerra acabou?
– Não sei. Você acha que o Jadano ia me deixar voltar pra cá depois?
– Jadano é coração mole. – Madican piscou para Lúcia – A gente convence ele.
Lúcia passou muitos minutos contando sobre Gaia e a cidade de Santa Barbara, onde morava. Aos poucos os sóis atingiram o pico no céu e, um pouco tímido no início, certo ponto entre as montanhas se iluminou até que ofuscou os olhos dos três.
– Pelos Deuses! – Madican levantou num pulo.
– Existe! Existe! – Os três correram para seus flutuadores e daí em direção à luz, montanha acima, por uma trilha.
A reentrância na montanha não era muito grande, mas assim que passaram por ela, avistaram um salão curto e tão alto, que não conseguiam distinguir seu fim. Do topo, um fio de água cristalina caia num pequeno lago no centro do local. Nas paredes, de pedra, as mesmas inscrições antigas que havia na estação estavam pintadas com tinta preta. E bem ali, em cima de uma rocha, havia um apoio de madeira e nele uma grande pedra preciosa, transparente, com muitas pontas irregulares.
– Pega o Amuleto Madican! – Anandí olhava amedrontada e curiosa.
– Eu não! Pega você!
– Ah, deixa que eu pego!
Lúcia se aproximava, decidida, disfarçando o receio de levar algum tipo de choque. Ela queria que o poder do Amuleto a transformasse numa Antariana, com direito a cabelo colorido e tudo, assim não teria mais dúvidas sobre qual era o seu lugar.
Anandí observava imóvel. Esperava que o poder do Amuleto fizesse de Lúcia uma Antariana, uma enviada, alguém muito especial que deveria ser coroada imperatriz em seu lugar.
E Madican por sua vez desejava que o Amuleto fizesse de Lúcia uma Antariana, assim nada os impediria de ficarem juntos.
Assim que Lúcia encostou o primeiro dedo na pedra preciosa um vendaval entrou e saiu da Gruta. Ela deu um pequeno grito, puxou o braço e olhou os outros dois, que estavam com os olhos arregalados também. Antes que dissesse algo, um animal passou voando rapidamente, foi planando e pousou nos braços de Lúcia:
– Lótus? Mas o que você está fazendo aqui? Você pode voar?
Madican sorriu e se aproximou, acariciando o animal:
– Ele é o protetor.
– Ãh?
– Estas inscrições antigas, algumas eu consigo ler, e elas citam um animal, que já estava em extinção na época, designado para carregar um pequeno pedaço do Amuleto e guiar os guerreiros.
– E por que você acha que é ele? – Anandí olhou desconfiada para seu animal de estimação, que ela também não sabia ser capaz de voar.
– Parece tão óbvio agora – Madican apontou a coleira e, em meio aos pelos, um pequeno ponto brilhante se destacava.
– Você poderia ter nos trazido aqui antes então, hein? Seu danadinho! – Lúcia sorriu e Lótus ronronou.
– E o que mais você consegue traduzir? Acho melhor lermos as mensagens antes de pegarmos o Amuleto. – Anandí sugeriu.
– Melhor. – Madican ia caminhando pela Gruta e explicando – Aqui conta a história de Jasper, aqui sobre a existência da tal de Dinastia da Guerra, mas nada muito concreto... Aqui sobre o ritual de purificação das mãos dos bebês para receberem sua primeira luva... Nada de novo.
Lótus pulou do colo de Lúcia e correu para trás da rocha que continha o Amuleto. Madican o seguiu e, de uma fenda, tirou um pequeno livro empoeirado:
– Isso sim é interessante – começou a folhear – Cada cavalheiro deixou poderes especiais no Amuleto. Há um ritual descrito aqui, ensinado a extrair mais oito pequenos pedaços do Amuleto, igual a esse na coleira do Lótus. Esses Amuletos devem ser entregues a guerreiros de confiança. As cores serão nove: preto, branco, vermelho, laranja, amarelo, azul, verde, anil e violeta.
– Talvez pudéssemos fazer um exército de elite, treinar cavaleiros especiais para nos proteger dessa tal Dinastia da Guerra. – Anandí também observava interessada o livro.
– Talvez Jadano esteja planejando exatamente isso.
– Eu acho que nós devemos lutar também – Lúcia pensava na guerra de Gaia – se isso trará a paz, eu ajudo.
– Violência só gera violência – Madican filosofou – Temos que nos preparar para nos defendermos.
– Eu também não quero saber de lutar não. – Anandí finalmente tirou o Amuleto de seu lugar sem a menor cerimônia – Não é tão pesado como imaginei.
Subiram nos flutuadores sem olhar para trás. Não viram que o fio de água parara de cair.
Ao anoitecer, Jadano esperava pelo trio sentado no hall de entrada do palácio.
– Eu sei que você vai ficar bravo e a Patrania nem se fale! – Anandí foi entrando e tirando o Amuleto de sua mochila – mas olha! Por favor, não chama o Conselho!
– Não, não chamarei. – o homem não demonstrava raiva, nem alegria – Tudo aconteceu como deveria. Nada se adia nada se atrasa.
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