Capítulo Único
Ah, Hefesto! Até de ti abri mão pela promessa e pelo meu amor aos humanos. Precisava ser sozinha, virgem e sensata. Porém, saibas que foi meu melhor companheiro, meu amigo e que parte da prosperidade da humanidade também se deve a ti. Mas morrestes mesmo? Não vejo como os homens inventariam tantas coisas sem o teu auxílio. Meu coração insiste em dizer que estás vivo. Vivo e sofrendo sozinho, assim como eu.
Tenho sofrido dos piores males durante todos esses milênios. Ser engolida por meu pai e nascer de sua cabeça não se compara aos horrores que vivo nesse tempo. Eu amava os humanos, eles eram seres semelhantes a nós e eu achava que cumprir a promessa era o melhor a se fazer. Mas agora vejo que não foi a melhor atitude. Meu amor por eles foi diminuindo pouco a pouco...
Tudo começou quando meu templo foi destruído, minhas sacerdotisas desapareceram e meus seguidores precisaram manter meu culto em segredo. Quem acreditava em mim era chamado de pagão ou outro nome pejorativo e perseguido. A paz e a compreensão que vivíamos antes sumiu, dando lugar a um mundo de ódio e intolerância.
Não sei o que houve com meus irmãos... Meus poderosos irmãos. O Olimpo foi destruído, meu pai Zeus morreu e nem mesmo a cidade que leva meu nome é a mesma que antes. Porém, o que me consola é que ainda vejo resquícios de meus semelhantes. Poseidon está vivo e lutando: diversas vezes o mar ficou em fúria e engoliu cidades inteiras, é o que os humanos chamam de tsunamis. Ares, por sua vez, está mais forte do que nunca, as grandes guerras mundiais comprovam isso. Afrodite durou por algum tempo – mais até do que eu esperava. Mas agora já não vejo evidência de que a deusa do amor e da beleza tenha sobrevivido. Os dois conceitos se alteraram tanto nos últimos séculos que Afrodite não deve ter aguentado.
Já você, Hefesto, minha sensatez diz que ainda vive. De que outra forma os humanos teriam criado tantas coisas? Eu e você sempre trabalhamos muito bem juntos. Éramos uma dupla imbatível. Talvez continuamos sendo: dou o conhecimento e a ideia aos humanos e com a sua ajuda eles transformam em algo palpável. Foi assim que surgiram as maiores invenções. Foi assim que a humanidade mudou tanto nos últimos séculos, com grandes indústrias e máquinas, eletricidade, equipamentos eletrônicos, telefone, internet... Você ajudou a moldá-los.
Porém, ainda me lembro da época das trevas...
Depois de tantos séculos, eu aprendera algo novo. Além de todos os meus atributos já conhecidos, descobri a magia. Sim! Através de palavras e elementos químicos sou capaz de fazer diversos feitiços. Consigo mudar completamente a vida dos humanos. É algo esplêndido! E como tal precisava repassar esse conhecimento aos seres humanos.
Foi o que fiz. Mas não em boa hora.
Deve ter sido meu maior erro em todos esses milênios. Surgir depois de tanto tempo e repassar a minha sabedoria aos humanos não foi inteligente. Voltei com minhas sacerdotisas, passei tudo que sabia a elas e transcrevi cada elemento e cada palavra em livros, para que não esquecessem. Estava feliz, radiante... Depois de tanto tempo sozinha me relacionava com outros seres mais uma vez. Porém, não durou muito. As moças saíram e se espalharam por aldeias e reinos, transmitindo meu conhecimento a mais e mais mulheres. Logo tudo mudou... Passamos a ser chamadas por um novo nome: bruxas. A partir daí a população nos caçou.
Éramos malvistas. Éramos queimadas vivas porque tínhamos poder e conhecimento. Muitas mulheres foram mortas sem nem mesmo serem minhas sacerdotisas. Foram confundidas como tais e sofreram por isso. Foram dizimadas. Poucas sobreviveram. Como imortal, eu vivi. Não posso morrer, não enquanto há a promessa. Não enquanto preciso cumprir meu papel.
Mas queria ter morrido. Morrido e sumido como o restante do mundo que conheci. Mais uma vez precisava viver sozinha e escondida. Até mesmo sem tu, Hefesto. Acreditava que estivesse morto. Não havia sinal de sua presença durante esse período. Só mais tarde que fui lhe notar. Você nunca morreu. E não vai... Quero sua presença comigo.
Eu era a soberana das artes... a sábia e virgem guerreira... E agora o que sou? Ganhei diversas batalhas fazendo o uso de estratégias, auxiliei civilizações a crescerem e se organizarem. E o que me restou? Sou apenas o símbolo do que chamam de Antiguidade Clássica. Reconhecem minha importância, mas dizem que é algo do passado.
Abri mão de tudo pela promessa que me coube. Abri mão de companhia, de amizade e de você, Hefesto. Precisei me manter intocada e racional. Não pudemos desfrutar de nossa paixão! Tudo pelos humanos! Todos os sacrifícios que realizei foi sempre por eles e pela promessa... A promessa de com minha sagacidade e engenhosidade manter a humanidade em constante evolução.
E foi o que fiz. A escrita surgiu, a lâmpada surgiu, as telecomunicações surgiram... Possibilitei o desenvolvimento das artes, das línguas, das culturas... A humanidade evoluiu cada vez mais. Porém, há algo que preciso confessar. Sou a deusa das estratégias, das guerras e da justiça. Não posso deixar esquecerem... Para tudo há um preço. E vou cobrar o meu.
Tive muito tempo sozinha para planejar. Talvez, se me valorizassem as coisas não estivessem nesse ponto. Mas é a minha vingança. É a minha justiça. Há séculos os acontecimentos estão encaminhando para onde desejo. Quero a minha liberdade, quero o fim da promessa...
Os humanos estão caindo no meu plano. As guerras são mais frequentes e mais potentes. O conhecimento também se tornou um vilão. Dei o poder deles para que os próprios homens se destruam. A sabedoria e a ciência farão isso. As bombas nucleares acabarão com a humanidade. E com a extinção da humanidade acaba minha promessa. Serei, enfim, livre. Restará apenas eu, minha liberdade, e você Hefesto. Você me livrará da solidão.
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