♤ DEZESSETE ♤
A noite é silenciosa, porém ao fundo se ouve uma canção de sirenes. Ela não ouve, pois a dor entorpece todos os sentidos, ela não vê, porque seus olhos estão fechados para o mundo.
Quando criança eu caí e ralei os joelhos, ao fitar demais as estradas cinzentas, havia algo nelas que me encantavam e ninguém entendia, então eu corria sobre elas sentindo todos os meus músculos arderem e somente parava ao cair no chão. Não me permitia chorar, era como alegar a minha fragilidade, a fraqueza feminina que tanto acusavam, então apenas fui para casa e cuidei dos meus próprios ferimentos e foi assim que engoli tudo que sentia, que passei a guardar as minhas fraquezas, caindo que cuidando de mim mesma. No entanto, hoje, olhando para Cefeida e vendo seu desespero, seus olhos vidrados e tempestuosos, não posso deixar de trazer tudo à tona novamente. Quando estamos sozinhos no mundo não tem porque sentir medo, é até mais fácil, não há alguém por quem você sempre irá lutar, é até mais cômodo, no fim é só suportar a solidão, a angústia de ser sempre sozinho e esperar os últimos dias sem ninguém para ascender uma vela e te levar um buquê de rosas. Eu não tenho muito tempo para pensar, como estou de costas para a porta, só sinto a dor tênue, pungente, dilacerante, algo que invade meu corpo, enquanto eu vejo lágrimas nos olhos de minha irmã. Eu poderia ter sido abatida facilmente, porém quando sentimos dores, agimos de maneira desconexa com o realmente esperavam que fizéssemos, eu possuía armas carregadas e prontas para serem descartadas, eram só soldados, esses desesperados para cumprir com a ordem de seu rei. Mas eu me sentia em uma cena que não era minha, passei a disparar projéteis em meio a dor e aos gritos, era uma sensação boa e dolorosa ao mesmo tempo, não sentia novos objetos invadirem meu corpo, mas eu via os cadáveres dos soldados no chão e sentia a seiva escarlate que escorria do meu, tão quente e profundo... Passei, nos minutos que permaneci acordada, a ouvir uma doce melodia, algo tão belo que anestesiava tudo, todas as minhas dores, dúvidas e angústias, penso que é o som dos anjos, suas vozes em sincronia, me convidando a ficar com eles. Eu não sei se acredito ou não, são histórias que foram queimadas para que não tivéssemos uma crença, uma ideologia cristã, pois antes, até isso, foi motivo para guerras, no qual o intuito a ser pregado era a paz. Mas ainda assim, não havia algo tão sobrenatural, que me fizesse acreditar mais que isso. Por fim, ouvi meu corpo colidir com o piso, eu não sentia mais nada, apenas o frio tão presente em meu corpo, eu ouvi ao longe, em outro lugar a voz de minha irmã, que consegui salvar por estar atrás de mim e não há nada mais gratificante do que isso.
— Jade, por favor, não me deixe.— eu não tinha forças para mais nada, no entanto ainda recordava da promessa que fizera mais cedo.
— Abbey, n... não deixa... a Abbey.— enquanto meus lábios tornavam-se incapazes de dizer as palavras que desejava, minha mente mirava a face da minha irmã, a última recordação que teria. Eu desejava tocar sua face e sentir a conexão que temos desde a infância, sempre fomos melhores amigas, além de boas irmãs.
— Jade! Não pode ir embora agora, não faz como a mamãe. Eu não quero ficar sozinha, fica comigo, com o papai, você vai casar com quem amou a vida toda, mesmo que não fosse seu desejo casar agora, mas...— lágrimas caem dos meus olhos enquanto Cefeida põe minhas mãos em sua face, para que eu sinta a vida que há nela. Seu desespero torna-se o meu, ela soluça de maneira que seria possível ouvir do outro lado do palácio.
— Shiii, amo você, para todo o sempre. Você consegue sair daqui, sei que sim.— senti a boca seca ao me esforçar para terminar a frase sem gaguejos, sinto minhas pálpebras pesarem, como quando brincamos o dia todo e é chegado o fim da tarde.
Passo algum tempo inconsciente, pedida em algo que não sei definir, não tem cor ou forma, é um lugar onde não há nada que possa descrever.
Não sei por que quanto tempo permaneço estável, no entanto ainda sinto meu corpo ser sacolejado, gritos por todos os lados e vozes conhecidas.
"Cefeida, alguém tire ela daqui e rápido. Ângelo me ajuda, preciso pôr ela na maca." Eu não enxergo as cenas, apenas as ouço, tão longe quando posso imaginar, como um sussurro, um eco. Sei que a voz pertence a Derek, pois consigo discernir o toque de sua mão na minha. Vai ficar bem, meu amor. "Não vão tirar você de mim, ouça bem, é minha promessa."
"Mas que droga, quem fez isso com ela! Eu não deveria ter deixado ela ir sozinha. Ela vai ficar bem, me diz! Ela vai ficar bem?" Sinto um alívio ao ouvir a voz da Abbey junto ao meu rei, pelo menos agora sei que posso partir em paz, seguir o som da melancolia.
"Abram o caminho, preciso saber onde fica o ambulatório mais próximo. Preciso de sua ajuda, Abbey, para salvá-la, me leve a enfermaria mais próxima". Derek, sua voz é algo doce em meus ouvidos, queria tanto pedir o seu perdão novamente...
Lembro-me que meses atrás eu decidi que não merecia mais a vida, eu senti o pesar em ver a minha mãe partir e o imaginei que ninguém importaria com isso. Imaginei que, naquele momento a solidão era a minha amiga e por isso eu não precisava temer a morte, eu não a temia. Agora, depois de tudo resolvido, ela aceitou meu primeiro convite e como não dera certo na primeira talvez, na segunda ela tenha êxito. Eu temo, temo deixar minha irmã aos quinze, meu pai que ficará em seu posto novamente sozinho, sabendo que por duas vezes foi abandonado, o Derek com quem me casaria, as novas amizades que fiz, a vida que pode não ser mais futura. Talvez, em quinze dias, eu não complete mais dezoito, não descubra como é chegar aos vinte e bem, decerto meu casamento não faça bodas de porcelana, porque não haverá casamento. Eu não terei filhos ou falarei de mamãe aos filhos de minha irmã, não a verei entrar na câmara junto as outras promessas e a confortarei sobre a vida futura. Apesar de tudo isso, há algo que ainda me conforta em toda a desventura de deixar todos aqueles que amo, possa ser, que do outro lado, eu encontre minha mãe, eu a abrace, assim podemos recomeçar e ser felizes em um mundo só nosso.
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