iv. acene
APESAR DA CAMA EXTREMAMENTE CONFORTÁVEL, durmo por apenas algumas horas, poucas e cheias de pesadelos. Outra parte da noite passo revendo as colheitas, tentando memorizar os rostos, nomes e distritos de cada um, tentando avaliar seus perfis. Até revejo alguns jogos passados a fim de descobrir alguma coisa de útil. Tenho tempo para isso porque o trem diminui a velocidade para que possamos chegar à Capital mais ou menos junto aos demais tributos. Apesar de tentar com afinco, não encontro nada que possa usar em minha vantagem, o que me deixa tensa e inquieta.
Maelana aparece à minha porta de manhã, vestida com uma roupa tão amarela que mal consigo olhar para ela por mais do que alguns segundos. Por que as pessoas da Capital não podem usar cores normais? Sua felicidade exorbitante é como um tapa na minha cara.
Visto um macacão vermelho e meu cordão de concha e a sigo pelo corredor de volta ao vagão restaurante, onde, desta vez, todos estão sentados em volta da mesa coberta de guloseimas, conversando. Me sento na cadeira oposta à Finnick, novamente ao lado de Aris, e me sirvo de duas fatias de abacaxi com canela, um bolinho branco com cobertura cor-de-rosa e uma xícara de chocolate quente. Minha mãe costuma fazer chocolate quente de vez em quando, não com muita frequência porque o chocolate é um pouco caro no meu distrito e há outras coisas que preferimos comprar, mas mesmo aquilo não chega aos pés desta substância doce e consistente que estou provando agora, feita com os melhores ingredientes.
Aris está agitado, fazendo perguntas sobre os Jogos a todo momento, tomando o cuidado de nunca revelar nada relacionado a sua estratégia...ou talvez seja apenas eu imaginando coisas e ele nem sequer tem uma ainda, o que é mais provável. Finnick e Ciana se revezam para responder. A informação é útil para nós dois e não há nada que nos prejudique enquanto adversários, por isso presto atenção a tudo que é dito enquanto como e até faço algumas perguntas, mesmo que sejam apenas dicas superficiais. A orientação real só vai começar quando ficarmos a sós com nossos mentores, mas até lá qualquer informação é bem vinda.
Durante a conversa, Finnick destaca a importância de criar uma boa impressão já no início, coisa que eu e Aris somos incapazes de discordar. Os patrocinadores — as pessoas ricas da Capital — frequentemente significam a diferença entre a vida e a morte na arena, e eles gostam de patrocinar os tributos mais atraentes e carismáticos. O próprio Finnick é uma prova viva disso.
— Vocês vão ter estilistas novas esse ano — conta Ciana, se servindo de um copo de suco de laranja. — Irmãs gêmeas. Maize e Daizee. Não sei nada sobre elas exceto os nomes, mas já vou avisar para que não esperem muita coisa além de uma fantasia de peixe. Vão ter que ser excepcionais nas entrevistas se quiserem mesmo serem lembrados — ela dá um olhar sugestivo à Maelana, que balança a mão como se dissesse sem problemas, deixe isso comigo.
Isso me faz morder a parte interna da bochecha. Ela diz a verdade. Todos os anos nossos tributos são vestidos como algum tipo de animal marinho para o desfile, já que as roupas tem que refletir a principal atividade do distrito. Para nós é a pesca e isso geralmente não nos faz ganhar muito destaque. Perto dos tributos do distrito 1, cuja principal atividade é produzir artigos de luxo para a Capital, somos facilmente esquecíveis. Eles estão sempre vestindo alguma coisa rica e brilhante que os faz os favoritos quase todos os anos. Ainda assim, há outros distritos ainda piores do que nós nesse quesito; o 12, por exemplo, já exibiu seus tributos nus e cobertos de fuligem preta. A única pessoa que conseguiu roubar a cena e parecer atraente mesmo vestindo uma fantasia ridícula está sentada à minha frente, e com certeza não vou conseguir o mesmo feito.
As janelas escurecem por um longo momento, cortando a conversa, a única luz vindo dos lustres no teto conforme entramos no túnel. O trem começa a diminuir a velocidade preparando-se para parar na estação. Me levanto devagar antes mesmo que o túnel termine e espero em frente a janela.
Passo da escuridão completa a uma explosão de cores em questão de segundos, e não consigo desviar o olhar. A Capital, que só vi pela televisão através dos anos, estende-se diante de nós como uma paisagem pintada em aquarela. As cores, um arco-íris que jamais vi, brilham intensamente. Verde, amarelo, rosa. Os prédios se esticam para além do que posso ver, cintilantes ao sol sob o qual as pessoas caminham despreocupadamente em suas roupas chamativas. Há carros passando. Há muito para ver. Devo estar de boca aberta, mas não me importo; talvez eu morra em alguns dias de qualquer forma.
As pessoas se amassam aos montes na estação, tentando ter um vislumbre de nós. Aqui, homens, mulheres e crianças parecem compartilhar o mesmo entusiasmo pelo massacre anual ao qual chamamos "Jogos Vorazes", e eles estão ávidos para nos conhecer, para ver nossos rostos antes mesmo da Cerimônia de Abertura. Quando o trem começa a parar, sinto uma respiração nas minhas costas e quase dou um pulo quando Finnick sussurra ao meu ouvido:
— Acene.
Viro-me para ver que ele está perto demais, e atesto que, ao contrário de mim, não se incomoda nem um pouco com isso. Apesar de tudo, volto a olhar pela janela e sigo seu conselho, prendendo a respiração sem nem perceber. Aris está olhando pela janela ao lado, e Finnick está acenando perto de mim. Me apoiando, penso. O apoio de Finnick Odair em frente a essas pessoas pode ser muito valioso, e tenho certeza de que ele sabe disso.
O caminho até o Centro de Treinamento, onde vamos ficar até os jogos começarem, é curto e chega ao fim antes mesmo que eu perceba, mesmo que Maelana tenha passado o trajeto todo tagarelando sem parar. Juro, entrar na arena não parece mais tão horrível quando comparado a ideia de passar os próximos dias com essa mulher.
Nós todos entramos no elevador que nos leva sem demora até o 4° andar — o nosso andar por algum tempo. Maelana está falando sobre a cerimônia de abertura de hoje a noite, mas felizmente ninguém está encorajando o assunto e, quando as portas se abrem para revelar uma sala enorme, todos se apressam em sair do elevador.
A sala possui uma elegante mesa de jantar azul-marinho bem no centro, e alguns sofás e poltronas estão colocados mais à distância, perto da tela plana gigante que cobre uma parede. Entre os dois espaços, há um corredor que leva para nossos quartos.
O meu quarto sozinho já é quase do tamanho da minha casa inteira no distrito quatro e, se eu havia pensado que as acomodações do trem eram luxuosas demais para acreditar... não são nada comparadas a essas aqui. Há centenas de botões por todos os lados e não posso nem sequer começar a imaginar suas funções. A cama é enorme, grande o suficiente para pelo menos três pessoas se deitarem tranquilamente, e olhando para ela só consigo pensar nas vezes em que eu e Kiara pulávamos no colchão dos nossos pais, fazendo guerra de travesseiros e competindo sobre quem pulava mais alto...
Mesmo que eu fosse a mais velha, ela sempre conseguia me convencer a fazer coisas bobas. Não havia ninguém que ela não conseguisse dobrar à sua vontade quando queria. Mesmo o tio Bead...
Afasto o pensamento. Me sinto tentada a começar a pressionar cada botão que vejo...mas então me jogo na cama, e confirmo que é ainda mais confortável do que parece. Muito diferente da cama dos meus pais.
O colchão está se movendo sob meu peso quando ouço a porta do quarto se abrir. É claro que não tem uma tranca. Me sento tão ereta quanto uma barra de ferro, mas, de alguma forma, tenho certeza de que ele sabe que estive pulando sobre a cama feito uma criança.
Não estou realmente surpresa por ver Finnick já que é o meu mentor e, tecnicamente, responsável por mim em quase todas as minhas atividades aqui, mas digo a mim mesma que é por isso que me sinto repentinamente nervosa.
— Se divertindo? — ele pergunta, o que faz meu rosto se aquecer. Ótimo, agora ele nunca vai me levar a sério.
— Minha irmã teria adorado essa cama — digo, sem ter certeza do porquê. Em minha posição sentada, tenho que erguer o rosto consideravelmente para olhar para ele, o que só me faz sentir ainda mais como uma criança.
— Difícil não gostar da cama — diz ele, sem tirar os olhos dos meus. — Muito... confortável.
Não sei o que responder. Ele também já esteve no meu lugar, e há a forte possibilidade de que tenha dormido nessa mesma cama, mas...O modo como Finnick disse...bem, ele parece ter um dom para fazer qualquer coisa parecer um flerte. Mas até onde sei, ele flerta com qualquer coisa que respira, então não acho que tenho o direito de me sentir especial.
Mentor, penso. Ele é o meu mentor e só isso.
Me levanto sem saber direito o por quê — talvez só para não me sentir tão pequena olhando para cima —, e me afasto da cama. Finnick me observa e, depois de um segundo, diz:
— Tire as suas roupas.
Ok. Agora acho que estou enlouquecendo.
— O quê? — não acho que ouvi direito, mas ele me dá um sorriso felino quando me ouve perguntar, e de repente tenho certeza de que ouvi perfeitamente bem.
— Eu disse para tirar as suas roupas, Starke — repete ele, calmamente. Nem mesmo notei que havia parado em frente à porta aberta do banheiro, mas Finnick estica um braço e ouço-a se fechar abruptamente às minhas costas, sentindo a madeira gelada contra a pele. Ele sorri. — ...para a sua estilista, é claro.
É claro.
Eu me sinto uma idiota.
Então Finnick aproxima o rosto do meu, tão perto que consigo ver sua pupila dilatar. Será que ele vai...? A garota histérica dentro de mim está surtando um pouco, mas não me movo. Ele ergue o braço acima da minha cabeça e retira um roupão do suporte na porta do banheiro.
— Final do corredor, Starke — diz ele, com o sorriso de uma criança roubando doces.
Ele me entrega o roupão e sai do quarto devagar, absolutamente ciente do que acabou de fazer.
Só então me lembro de que posso estar há apenas alguns dias de minha morte, e que Finnick Odair, o menino da flor, continua sendo o único capaz de me fazer esquecer esse medo.
—
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Estamos chegando nas partes boas, hihi
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