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Capítulo V

O caçador de recompensas aproveitou o sol até que a sua última réstia de luz deixasse de iluminar a vinha e, quando isso aconteceu, parou a meio do caminho, prendeu o cavalo ao tronco de uma árvore meio morta e deitou-se ali. Em poucos minutos adormeceu, enrolado na grossa manta de lã que costumava trazer sobre a sela do cavalo e que não só a tornava mais confortável, como lhe possibilitava uma noite quentinha caso tivesse de dormir ao relento.

Tomou a precaução de guardar a bolsa das moedas dentro da camisa meio desabotoada, para que ninguém a visse, mas não estava preocupado, porque não passava pela cabeça de ninguém andar nas vinhas à noite.

Mesmo com toda a certeza que Giánnis julgava ter, a sua precaução acabou por ter razão, pois, ao acordar, a primeira coisa que viu foi um par de olhos verdes que o fixavam sem parar, tapando a luz do Sol que só naquele momento começava a nascer.

Atrapalhado e sem saber o que fazer ou dizer, o nortenho levantou-se o mais rapidamente que pôde, enquanto a criança à sua frente continuava a olhar para ele, sorrindo inocentemente

O rapazinho deu um passo em frente e sussurrou, tão baixo que o outro mal pôde ouvir, apontando para um ponto negro no céu:

-Tens um corvo a observar-te desde a madrugada.

O caçador de recompensas pôs a mão sobre a testa, tentando não olhar para o Sol e ver o sítio para onde o miúdo apontava. Realmente planava por ali algo escuro com a forma de um pássaro com as asas abertas.

Rodou a cara, desviando os olhos da ave e focando-os no miúdo, que continuava a olhar para o pássaro.

Era loiro, de olhos castanhos esverdeados e feições finas, corpo pequeno, devido à sua parca idade, e magro, mas não em demasia. O rapaz voltou o olhar novamente para o adulto e perguntou:

-Para onde vais?

Baixando-se para apanhar a manta deixada no chão da estrada de terra batida, Giánnis ignorou a pergunta do outro. Quanto menos falasse de si a um completo estranho, melhor. Sobretudo mais perto da floresta havia que ter cuidado. Ao fim de alguns segundos de um silêncio estranho, o rapaz recomeçou a falar:

-Vais para Synken?

-Não, não vou - disse, irritado, o caçador de recompensas, deixando a manta mal dobrada cair sobre a sela.

-Então para onde vais? - questionou outra vez a criança, com os braços atrás das costas e balançando sobre os pés.

Giánnis suspirou e, virando-se para Mesrur, montou-o rapidamente e, olhando de novo para o rapazinho no chão, perguntou-lhe:

-Para onde vais tu?

-Para Synken, por isso é que te estava a perguntar, para ver se me davas boleia.

O mais velho suspirou, enfadado, sem qualquer vontade de levar a criança, mas sabia que a sua consciência não o ia deixar dormir se a abandonasse ali. Percebendo que podia ajudar se, pelo menos, o deixasse na aldeia, o caçador de recompensas concordou, olhando-o de cima:

-Está bem. Consegues subir sozinho ou precisas de ajuda?

Sem responder, o rapaz começou a tentar subir sozinho para Mesrur, o que o irritou, levando o cavalo a dar uma patada e a andar para o lado uns poucos metros.

-Acho que precisas de ajuda - concluiu o outro, estendendo-lhe a mão. O mais novo aceitou e conseguiu montar o cavalo, sentando-se à frente do companheiro de viagem.

-Já agora, sou o Dínamo. - apresentou-se ele quando percebeu que ainda não tinha referido o seu nome.

Giánnis bufou outra vez. Não gostava de crianças, e se elas não se calassem, era ainda pior. Pensava seriamente em abandonar o miúdo ali mesmo quando ele, entusiasmado por andar a cavalo pela primeira vez, bateu com os calcanhares no dorso do animal, como Giánnis fazia para ele começar a trotar. Mesrur começou, obedientemente, a trotar , fazendo com que os seus cavaleiros, que ainda não estavam preparados, se desequilibrassem.

O caçador de recompensas apertou as pernas contra o cavalo, usando-as para se voltar a equilibrar e para se manter direito, tal como lhe tinham ensinado quando aprendera a montar, mas Dínamo saltava ao ritmo do trote do cavalo enquanto se tentava agarrar ao pescoço de Mesrur para não cair.

O mais velho passou os braços por cima dos ombros do pequeno e agarrou as rédeas, obrigando o seu habitual companheiro a parar repentinamente.

-Voltas a fazer uma coisa dessas... -ameaçou o caçador de recompensas, furioso - E não imaginas o que te faço, ouviste?

A cara assustada do rapaz não o demoveu e, zangado, obrigou Mesrur a andar mais depressa do que seria bom com o peso de duas pessoas em cima.

Eram seis da manhã quando começaram o caminho. O caçador de recompensas fazia questão de sair àquela hora, senão mais cedo, para aproveitar e fazer a viagem ainda com o vento fresco da manhã. A partir de cerca das dez começava a aquecer e às onze já estava impossível.

Por várias vezes o mais novo tentou meter conversa, mas não obteve sucesso. As únicas respostas que conseguiu foram monossílabos, sons indefinidos e algumas frases curtas. Giánnis, pouco tempo depois, já estava mais calmo e com melhor humor, e divertiu-se vendo as tentativas frustradas do rapaz.

Tantas vezes experimentou sem cumprir o seu objetivo que, passadas quase duas horas de viagem, o miúdo desistiu de conversar.

Quando o seu companheiro de viagem se apercebeu disso, riu-se para si próprio e decidiu fazer a vontade à criança sentada à sua frente:

-Então, porque é que vais para Synken? - perguntou num tom casual, sem sequer olhar para ele.

O rosto de Dínamo iluminou-se com a perspetiva de ter finalmente alguém que lhe respondesse decentemente e não se conteve, respondendo rapidamente:

-Vão pagar-me, finalmente - vendo o olhar interrogatório do outro, apressou-se a explicar - Fui contratado por alguns aldeões de Synken e de outras aldeias para, basicamente, ficar à porta da floresta de Skípto.

-E o que é que fazes exatamente?

-Sento-me numa pedra à frente da entrada da floresta e vejo se algum corvo sai de lá. Se aparecer algum, corro atrás dele para saber para onde vai.

-E fazes isso todos os dias? Sozinho?

-Não, há uma menina que também é orfã e que faz a mesma coisa à noite. E os filhos dos aldeões substituem-nos se tivermos de ir atrás de um corvo. Mas sim, é todos os dias.

O caçador de recompensas percebeu, finalmente, como é que o rapaz tinha chegado até ele. Ficou impressionado com o seu otimismo, pois com uns 10 anos não tinha pais e passava o dia a olhar para o céu e, mesmo assim, tinha um ar tão saudável e, de alguma forma para ele desconhecida, feliz.

-E como é que eles te pagam? Em dinheiro?

-Não. Em comida. Se fizermos bem o nosso trabalho, eles vão todos os dias levar-nos comida, e se eu conseguir descobrir para onde é que vai um corvo, até dão uma manta ou roupa mais quente.

O homem atrás dele ficou ainda mais espantado. Como é que era possível que o miúdo conseguisse ser, ou pelo menos parecer, tão contente quando tinha uma vida que até para um adulto seria ingrata? Desconfiava que, para piorar, os camponeses nem o tratassem muito bem ou cumprissem o que diziam inteiramente, mas não teve coragem de o questionar.

O silêncio apoderou-se durante uns segundos do ambiente. O caçador de recompensas lembrou-se repentinamente da estranha família em casa de quem estivera no dia anterior e estava prestes a perguntar ao rapaz se sabia alguma coisa sobre eles quando o miúdo antecipou-se, interrogando com o já habitual sorriso nos lábios:

-E tu, o que é que fazes?

-Eu? - disse ele, confuso, continuando segundos depois, ao perceber o que o outro perguntava. - Sou caçador de recompensas. Procuro coisas, mato ou aprisiono monstros, entre outras coisas. Faço o que me pedem, se me derem dinheiro.

-E porque é que vens para estas bandas? - questionou o rapaz, curioso. Pensou um bocado e a sua cara mudou rapidamente de curiosidade para preocupação. - Vais matar a Dama dos Corvos?

O olhar espantado do mais velho respondeu por si só à pergunta. Dínamo, conhecedor da maioria das lendas sobre a feiticeira, aconselhou:

-Então devias matar esse corvo, ela consegue ver pelos olhos dos corvos, sabias?

O outro pensou um bocadinho, levando em conta os prós e os contras.

-Talvez tenhas razão. Segura aqui por mim. - pediu o caçador de recompensas, passando as rédeas para as mãos do mais novo. - Mantém firme, não puxes muito, mas não as deixes soltas. Tens de manter uma certa tensão para o cavalo não se mexer..

Olhou para as mãos do miúdo que seguravam o mais firmemente que lhe era possível o animal.

-Parece-me bem - avaliou o homem.

Virando o tronco, abriu um alforge preso à garupa de Mesrur e de dentro dele tirou uma besta de tamanho médio e uma bolsinha de couro, de onde tirou uma flecha, com que carregou a arma. Em seguida, olhou para o céu, mirando o corvo que planava, e disparou. A flecha atingiria o animal, se este não se tivesse desviado enquanto a flecha subia..

-Merda! - praguejou Giánnis baixinho, colocando novamente uma flecha na besta e olhando outra vez para o céu.

Observou-o durante algum tempo, tentando perceber para que lado é que o corvo seria levado pelo vento que o fazia planar. Disparou e viu a flecha atravessar o ar, rapidamente. Desta vez, acertou numa das asas do animal lá em cima e este, impossibilitado de voar ou de planar, começou a cair a pique. Os dois companheiros de viagem, sentados na sela, viram o animal debater-se, tentar bater as asas e embater no chão.

O caçador de recompensas saltou do cavalo, sem sequer se lembrar de que o deixava às mãos de uma crianças, e aproximou-se do cadáver da ave que jazia, morta, no chão, a uns metros de onde ele estava.

Apanhou-o do chão, retirando a flecha do corpo. Rodou-o nas suas mãos, olhando com desprezo o animal e sentindo o sangue quente nas suas mãos. Atirou o corpo do pássaro morto para o meio das vinhas. Tirou um pano branco do bolso e limpou nele as suas mãos, vendo-o passar de um branco puro para um vermelho encarniçado.

Voltou para trás e montou o cavalo, sentando-se novamente atrás do miúdo que ficara a segurar as rédeas melhor do que imaginara.

Tirando-lhas das mãos, continuou o caminho. Rapidamente Dínamo restaurou a conversa, um pouco sobre tudo e um pouco sobre nada.

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