
A Dama de Branco
I
No topo de um dos planaltos, era possível ver a escuridão da noite e os feixes da luz lunar refletidos na água do mar. O movimento das ondas trazia consigo a lembrança dos meus problemas mais íntimos: desde a péssima sorte nas relações até a amargura de uma vida limitada de ajudante de pescador. Por isso, talvez, minha mente pedia por algo obscuro, nascido do ódio, da raiva e da angústia que eu guardava comigo desde pequeno. Um sentimento arrebatador, capaz de retirar minha esperança a ponto de me obrigar a esquecer de meu amor pela família: o desejo de ir embora, de morrer.
Apesar disso, minha calma aparente fazia com que ninguém percebesse, ou melhor, quem perceberia um jovem sem beleza, sem talentos e expectativas para o futuro? Enquanto o mar farfalhava em seus ruídos, eu o acompanhava em silêncio até que as lágrimas secassem em meu rosto.
"Mãezinha já deve ter terminando a janta", pensei.
Levantei-me e desci o morro, tomando cuidado com a trilha barrenta que se estendia pelo bosque rodeado de arbustos resididos por insetos, cujos zumbidos unidos à luminosidade da lua cristalina me permitiam o sentimento de que minha casa estaria à espera.
Continuei descendo e cheguei ao velho casebre de minha família. Por ora, não demorou muito para que minha mãe me chamasse enquanto segurava um vaso preenchido do sumo de frutas frescas para a sobremesa.
— Pedro, entre já, menino! — ela chamou. — Seu pai está chegando... — E deu de costas com um sorriso estampado em sua face morena.
— Estou indo! — respondi e empurrei a porta.
Ao entrar, deparei-me com a mesa coberta de peixes assados, pães e alguns vegetais frescos. Aliás, os alimentos mais disponíveis naquele monte de terra em que nascemos. Meus irmãos, mais rápidos do que qualquer animal selvagem, juntaram-se à mesa e encheram seus pratos da comida cheia de "sustança", como diria meu pai. E o que eu poderia dizer sobre tudo aquilo? Somente um dia. Somente a rotina cíclica de uma família simples.
II
Terminamos de comer e aguardamos a chegada de Marques, meu pai. O tempo passou, as nuvens escuras sobrepujaram a lua, e somente as lamparinas foram capazes de nos iluminar com a ajuda de velas abençoadas pelo Padre Cícero. Junto a isso, quanto mais esperávamos, mais a preocupação tomava forma. Quando olhei para a cozinha, era possível ver a expressão de desespero na face de minha mãe aumentada pelo vai e vem de seus chinelos de palha se arrastando contra o chão.
Aproximei-me e a segurei pelo ombro, tentando libertá-la de seus pesadelos despertos. Espantada, ela se virou, seus olhos estavam marejados e acompanhados pelo suor que escorria de sua testa e do tremor emitido por seus dedos.
— É a angústia, filho... Deus nos ajude — ela resfolegou, abraçando-me como se fosse o fim em um calor que eu conhecia desde pequeno: o calor da união.
— O que, mãezinha? — questionei, mas não recebi resposta.
Fechei os olhos e retribui o gesto tentando reconfortá-la. Naquele instante, ouvi passos se aproximando da casa. Algumas vozes masculinas dominadas por um tom lúgubre e grave chamavam pela minha mãe; pra que as nossas vidas perdessem o rumo...
— Maria, saia! Venha, por favor! — uma das vozes chamou.
Minha mãe, desprendendo-se de mim bruscamente, correu até a porta e a abriu. Minha espinha se arrepiou de cima a baixo quando vi João, um dos pescadores mais experientes da ilha, segurando alguém coberto por um lençol pintado do mais vermelho sangue, que pingava gotas encorpadas no solo.
— Quem está neste lençol? — perguntou, olhando mais de perto. — Não! — ela urrou, se ajoelhando enquanto segurava o próprio rosto. — Não, minha Nossa Senhora!
Meus irmãos, assustados, acordaram e se juntaram a ela em um lamento familiar. Já eu, aterrorizado por saber que meu pai estaria debaixo daqueles trapos, fiquei paralisado, vendo a vida tão vazia se tornar o caos; onde a esperança era pouca e cuja humildade dominava o destino pelas beiradas da impotência.
III
A história de que meu pai foi encontrado morto em uma caverna próxima ao grande pico, com o corpo repleto de cortes e as vísceras saindo por seu estômago, espalhou-se como um enxame de abelhas por todas as ilhas. Porém, nem eu e nem minha mãe acreditávamos em uma morte tão estranha, sem sequer uma avaliação de Padre Cícero, o líder das vilas, para nos confortar de verdade. Uma omissão, eu pressentia. Afinal, como meu pai foi parar naquela caverna? E, se foi, o que havia acontecido? Ninguém se aproximava de lá por causa do número de serpentes...
Em segredo, como um teimoso nato, esgueirei-me pelas barracas da minha vila dois dias depois do enterro, procurando alguma informação cabível para provar minha loucura interna ou apenas para contrariar o pensamento de que a morte dele precisava ser justificada. Foi quando vi alguns dos velhos pescadores e criadores de animais juntos a João, conversando em tom baixo. "Eles estão escondendo algo", conclui com minha impulsividade infantil e cheguei perto pelos arbustos de galhos retorcidos e folhagem densa, atentando-me com os passos e as sombras de outros moradores que circundavam o centro da feira. Respirei fundo e estiquei o pescoço, procurando ouvir as palavras do velho João do Peixe Morto, como era chamado pelas pessoas da ilha.
— Sim, sim, Moacir! Eu vi com estes olhos — ele dizia, passando as palmas em seu rosto. — O corpo estava lá todo estropiado. Foi horrível. Mas o pior não era isso. O pior era os terços que cercavam o sujeito com as imagens da Santíssima Aparecida.
O silêncio passou por eles, até que o cortaram.
— E o Padre Cícero não falou nada, oxi? — perguntou um homem grisalho.
— Falou... E peço que não batam com a língua nos dentes, heim? — Ele olhou de soslaio de um lado para o outro, averiguando se alguém curioso estava passando. Vendo que havia segurança, prosseguiu: — Ele acha que Marques foi usado para um ritual de bruxaria.
Assim que João terminou de falar, o arfar dos cinco homens ecoou em uníssono enquanto o sinal da cruz era repetido por todos. Por pouco não escutaram meu gemido de espanto. Mas logo saí em disparada, correndo entre o mato ao passo que as lágrimas salpicavam minha boca, as bochechas e as vestes surradas. Bruxaria? Não pode estar acontecendo isso.
Para ver com meus próprios olhos, decidi ir aonde tudo começou em nome de uma explicação para Maria, minha mãezinha destruída após sepultar seu marido nos campos de flores da ilha de Fernando de Noronha. Afinal, há coisas que jamais poderemos aceitar.
IV
A caverna estava escura em pleno dia, úmida pela água que pingava das frestas rochosas. Ao fundo, o lago negro refrescava os pequenos musgos das pedras arredondadas. À frente, um rastro de sangue seco se arrastava em uma linha contínua, terminando em uma poça sanguinolenta ainda molhada pelos pingos d'água das pedras pontiagudas do topo.
Agachei-me. Meu coração apertou. Lágrimas desceram pelo desfiladeiro de minha face. Quantas vezes meu pai me ensinou a pescar, cozinhar, sobreviver, lutar contra animais raivosos e suportar a vida brusca de uma juventude em um local onde os sonhos não se tornavam realidade? Agora, lá estavam os restos mortais dele, que não deveria morrer tão cedo a não ser que Deus desejasse sua partida.
Triste e desolado, andei pela caverna e observei a poça.
Após alguns segundos, procurando uma lembrança perdida ou algum rastro dos terços e pedaços de santo citados por João, vi que nada tinha restado. Certamente, quase que absolutamente, Padre Cícero retirara os instrumentos da heresia. Ou era essa a única conclusão que eu tinha em mente? "Como sou um asno!". Porém, uma coisa era certa: eu teria que aceitar a morte dele. E só isso. Nada de ilusões.
— Você não deveria estar aqui — ouvi uma voz rouca atrás de mim e me desequilibrei, quase caindo de cara com a poça de sangue. Ao me virar, lá estava ele, o Padre, segurando em sua mão uma pequena bolsa preenchida do que pareciam ser terços.
— Desculpa, Padre. Eu só queria...
— Não se preocupe — ele interrompeu, colocando sua mão enrugada sobre meus ombros em um aperto de repreensão. — Deus compreende tua dor. Por isso, tudo está perdoado em nome de Jesus Cristo, nosso salvador. Agora vá para casa e deixe-me ungir este local em memória de seu pai.
— Eu entendo. Mas... Mas eu queria entender como ele se foi — tentei perguntar, no entanto, o olhar fixo dele para mim foi o suficiente para que eu compreendesse o grande não a um jovem que, supostamente, não deveria entender nada do mundo dos adultos.
Como um cachorro sem dono, coloquei meu rabo entre as pernas, a tristeza em meu bolso e fui embora para casa compartilhar o luto com minha mãe.
V
Doravante, o dia resumiu-se em orações e cânticos católicos ao redor de velas para que Deus iluminasse o caminho de Marques. A noite caiu sobre a ilha, e eu — depois de me revirar tantas vezes — cai de cabeça no mundo dos sonhos, onde pensava que estaria livre da ideia tola de que havia mais do que fora contado, sob a suposição de uma mente de somente dezessete anos.
No sonho, eu andava com meu pai entre o campo de flores, observando os pássaros transpassarem os céus e os peixes saltando por entre a superfície dos lagos. Lá estava ele, cuidando de mim, contando como sua vida foi difícil nos últimos anos, principalmente quando minha mãe perdeu seu quinto filho, faltando somente dois meses para o nascimento — algo que nos perseguia desde sempre.
De repente, ele parou e deu de costas.
— Está me ouvindo? — ele perguntou.
— Sim... O que quer de mim?
Assim como minha mãe fizera antes que soubéssemos da tragédia, ele me abraçou. Senti as lágrimas quentes molharem meu ombro e retribui, fechando os olhos. Porém, quando os abri, o tempo já não estava belo e radiante. Nem mesmo meu pai me abraçava.
Agora, eu estava apertando uma árvore próxima á caverna do pico. Fiquei confuso e virei o pescoço de um lado para o outro, chamando por ele. Mas os únicos companheiros ali eram chamados de vento, chuva e tempestade.
Tão rápida quanto pude correr, a chuva se lançou como uma saraiva de arpões de pesca, forçando-me a entrar na caverna e ver o rastro de sangue, a poça, as pedras molhadas e os musgos. Desta vez, algo a mais estava no local, algo que jamais esperei ver: os terços santificados de madeira de lei e as estatuetas da Santíssima Mãe, quebrados, como se pés os tivessem destruído em um convite obscuro à verdade.
Pé a pé, tomei cuidado ao pegar um terço marrom da poça. Assim que toquei o líquido, o sangue diluído se enveredou em milhares de veias pelo chão, tornando a caverna um órgão de pura rocha que começava a pulsar como um coração, contraindo e relaxando. Paralisei-me e procurei uma rota de fuga. Tentei me levantar, mas meus pés estavam pesados e minhas mãos atrofiadas, à medida que o terço permanecia em meus dedos inchados.
No átimo em que olhei à frente, uma segunda poça surgiu: negra, borbulhando como uma sopa a ponto de emergir alguém que eu nunca esperei ver. Uma cabeça, um pescoço, um tronco e membros. A criatura se ergueu embebida da gosma negra e pútrida. Os olhos do ser finalmente se abriram, lançando o alvo azul de suas íris em minh'alma, costurando-me para que eu esquecesse meu objetivo.
Mostrando para mim quem eu era: um nada!
Minha boca, ingenuamente, perguntou sua identidade. Imediatamente, o ser gritou como um bugio, a gosma de seu corpo secou como barro e se quebrou como um vaso, revelando a imagem de uma mulher loira e nua, de pele reluzente sob a expressão neutra de quem não tinha nada contra mim. Em resposta, ela apontou para a saída da caverna. Não titubeei e corri em disparada, passando pelas árvores até tropeçar em uma pedra arredondada, sentindo a pancada da minha cabeça contra o chão.
Suspirei fundo, tão fundo quanto meus pulmões foram capazes de suportar.
Acordei completamente encharcado do meu próprio suor, com minha mãe segurando meus ombros, preocupada e aflita.
— Pedro, Pedro, você tá bem? — ela perguntou.
Sacudi a cabeça e disse que sim, que só tinha tido um pesadelo. Alguns minutos se passaram, e ela fez para mim uma dose encorpada de chá de camomila com especiarias. Gole a gole, eu sentia a loucura me dominar, ainda relembrando o rosto daquilo que estava em meu sonho.
VI
Meses se passaram e nunca mais ousei visitar a caverna. Continuei o trabalho de meu pai para que a minha família tivesse o que comer, garantindo o mínimo de dignidade para seres humanos de um ambiente tão rústico.
Tudo parecia calmo.
As verdades se estabilizavam, dominadas pela realidade nata...
Quando pensávamos que assim permaneceria, João, o pescador, foi encontrado morto da mesma maneira que meu pai: dentro da caverna, salpicado de terços e estilhaços de imagens católicas. Meu coração apertou e a imagem da mulher alva voltou a me torturar em sonhos infindáveis. Tentei rezar e clamar ajuda a Jesus, mas quanto mais tentava, mais algo em meu peito me impelia a procurar respostas. "Quanto mais terei que aguentar? Não, não mesmo", pensei ao olhar o céu noturno e saí pelo caminho que levava à caverna.
Na estrada de terra, encontrei cinco dos mais habilidosos cuidadores de animais da região, segurando tochas de fogo e cutelos afiados como dentes de piranha. Quando me viram, o mais velho de todos, Claudio, virou-se e cumprimentou-me com um aperto de mão vigoroso.
— Que bom que apareceu — ele disse. — Iremos acabar com essa caverna. Esses rituais malditos têm que acabar!
— Não se esqueça de que o Padre Cícero vai benzer esta merda! — outro cuidador disse.
— Entendo. Mas como pretendem destruir uma caverna desse tamanho? Com cutelos? — Olhei para as mãos de Claudio, que gargalhou.
— Com isto aqui, oh. — Ele apontou para o lado, mostrando três barris marcados com o nome pólvora.
— Essa é da boa... — comentei, juntando-me ao grupo para receber instruções.
Ao fim, o plano era simplório: pegar barris e colocá-los em três pontos estratégicos da caverna, levando seus fios até o lado exterior onde seriam acesos para, enfim, BUM, explodir. Além disso, caso algo aparecesse, deveríamos atacar com os cutelos e as facas longas. Um plano selvagem para um assassino desconhecido, apesar de a minha intuição levar-me a acreditar que uma bruxa estaria lá. Mas, pensando bem, para quê?
Claudio, com a pele morena e braços fortes, foi o primeiro a entrar junto de Josival. Os outros vinham logo em seguida comigo, segurando os barris com o devido cuidado para que não nos explodíssemos. Como ordenado, levei um barril para o fundo da caverna, próximo às paredes desniveladas da lagoa. Já os outros posicionaram os seus de modo a formar um triângulo com o que eu ajeitei. Enquanto fazíamos isso, Padre Cícero, que chegou calado, andou abençoando o local, recitando o tradicional Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo, salpicando o ambiente com água benta direta de um recipiente prateado, adornado de detalhes barrocos. Posteriormente, aguardando o sinal dele, eu e os demais nos juntamos em oração, lembrando-se da vida de benfeitorias de meu pai e de João; uma nostalgia de dois líderes dignos de respeito.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo... — disse o padre.
— Amém — completamos, vendo o menear de sua cabeça para que saíssemos da caverna levando os fios de pólvora.
Fomos à saída...
Precisávamos acender os fios...
Porém...
Tão rápido quanto o raciocínio, os fios se tornaram pó, as tochas de fogo se apagaram e as bordas da caverna explodiram, derrubando grandes pedreiras sobre a saída. Os gritos de medo tiveram início e o Padre Cícero iniciou a oração de São Bento em latim:
— Crux Sacra Sit Mihi Lux. Non Draco Sit Mihi Dux. Vade Retro Sátana. Nunquam Suade Mihi Vana. Sunt Mala Quae Libas. Ipse Venena Bibas!
Por algum motivo eu não me assustei. Tentei tranquilizá-los apontando para uma fresta de onde a luz do luar penetrava para iluminar pelo menos a região próxima ao lago da caverna. Ao meu lado, Claudio os repreendeu com voz de trovão:
— Fiquem quietos, merda! Nem parecem homens de verdade! Usaremos a luz da lua para nos guiar. Abram o caminho! — Os outros, sem mais palavras, começaram a retirar os pedregulhos da saída.
Gradualmente, ouvimos um ruído grosseiro vir da lagoa no fundo da caverna, em um som estranho e melódico a ponto de sermos incapazes de pensar no que faria tal barulho.
— Calem a merda de boca! — alertou Claudio, aproximando-se da região.
Apesar da pouca luz, era possível ver o relance da água em um vai e vem brutal, ressonando o ruído de sua profundeza.
— Cuidado! — alertou um dos cuidadores.
Claudio tentou virar o corpo para repreender seu colega, mas um clarão intenso como o sol rompeu atrás dele, nos obrigando a cobrir os olhos com as mãos.
Após alguns segundos, a luz desapareceu, mas com a ida dela, ver a cabeça de Claudio rolando em direção aos nossos pés se tornou possível enquanto seu corpo cobria o chão em pedaços de órgãos e vísceras como um tapete criado pelo próprio diabo. Todos urraram de horror, incluindo eu. Já Padre Cícero abaixou a cabeça e ergueu seu crucifixo; inspirou e vociferou:
— Seja lá o que for, venha!
Ao invocar, a luz do luar penetrou mais intensamente pelas fendas, deixando a caverna visível. As águas do lago avermelharam-se e de lá, pouco a pouco, o corpo de uma jovem branca, quase translúcida, e loira, levantou-se: a mulher alva de meus sonhos; viva e real, abrindo os olhos seguidos de um sorriso maligno. Sua língua lambia os lábios. Seu corpo mal se movia ao sair da água como um ídolo divino surgindo diante de reles mortais.
— Vocês se meteram onde não deviam... — ela disse com sua voz macia e metálica.
O padre então apontou o crucifixo a ela, entoando a oração de São Bento em voz alta.
Ao olhar para o lado, vi que os cuidadores estavam de olhos fechados, juntando as mãos para cochichar o Pai Nosso. E eu, por minha vez, só soube me aproximar cada vez mais na direção da donzela, que me convidava pelos olhos ao seu encontro. Quiçá, eu só quisesse entender o motivo pelo qual ela matou meu pai. Mas havia algo a mais. Uma vontade própria do meu corpo para aquele encontro obscuro.
Quem eu era? O que eu estava fazendo?
— Pedro, não vá! Fique onde está! — Padre Cícero alertou, mas meu corpo se moveu sozinho, e, a cada passo, mais perto eu estava da dama reluzente, prestes a me dar o mesmo fim que dera a Marques, João e Claudio.
Minha vida se passou por meus olhos como um relâmpago. E pude ver de relance o reflexo de almas brancas detrás da dama. Ela estendeu seus braços para mim, seus cabelos flutuaram no ar e seus olhos encheram-se de luz.
— Eu sempre estive à sua espera — ela disse. — O desgraçado que sofreu pelo pai durante todos esses meses. Agora, você terá o mesmo fim! — E iniciou a melodia de seus lábios rosados em uma música fúnebre, capaz de atordoar os ouvidos de quem pudesse ouvi-la.
Meus pés pesaram como no sonho, minhas mãos se esticaram e uma poça de sangue surgiu em meus pés, brotando do solo. Em pouco tempo, terços de madeira emergiram da terra com imagens de barro quebradas.
Eu estava quase cego, minhas mãos tremiam, mas nenhuma atitude provinha de minha carcaça. Era como se eu desejasse aquilo desde o começo. Assim, quando pensei que tudo teria um fim, ouvi a voz de Padre Cícero dizer à donzela:
— Em nome de Jesus, diga-me para que veio!
A mulher, mudando a expressão de seu rosto para o puro ódio, saiu da água, ficando de pé no chão e olhando fixamente para o padre, como se ele tivesse falado a maior heresia do mundo. No entanto, Cícero não tremia mais. Agora, ele somente a encarava de longe.
— RESPONDA VOCÊ! QUEM SOU EU?! — ela ralhou, tornou-se luz e materializou-se perante Cícero, o segurando pelo pescoço com as duas mãos em um impulso ligeiro, levantando-o como uma oferenda.
Com dificuldade, ele respondeu:
— ALAMOA, A DAMA DE BRANCO!
O estrondo de um trovão ecoou junto ao urro da donzela, que lançou o corpo do idoso na direção dos cuidadores os quais o seguraram entre gemidos de pavor, temendo o pior: as nossas mortes.
— Vocês viram demais, ouviram demais, se intrometeram em assuntos que não lhes convém! — ela ralhou, erguendo suas mãos para o alto. — Por isso eu matarei todos. Aliás, não foi por isso que me procurou, Cícero Cardeal? — ela perguntou ao padre.
Ele não respondeu.
A luz do luar ficou dourada e se focou no corpo da dama. Sua pele queimou como brasas em carvão e apodreceu, revelando sua carcaça esquelética repleta de fogo negro, cujos olhos refletiam o inferno.
Naquele instante, refleti sobre o que ela poderia ser. Um espírito, uma alma ou mesmo um monstro da natureza. Já ouvimos tantas lendas daquelas terras. Mas nunca uma dama de beleza ímpar, capaz de encantar qualquer homem e matá-lo com suas mãos. Talvez esse tivesse sido o erro de meu pai: acreditar na beleza de uma desconhecida.
Eu não sei o que fazer. E estava bem em permanecer daquele jeito, paralisado. Mas um terceiro fato obrigou-me a arregalar os olhos e berrar como se tudo tivesse perdido o sentido. Um, dois, três: um clarão. Cinco cabeças esmagadas no chão e ossos espalhados por toda a caverna agora vermelha, pintada do sangue de Cícero e dos outros. Não pude ver o que aconteceu.
E ela, em sua forma de caveira, aproximou-se de mim.
— Este é o momento que vocês, humanos, não possuem a capacidade de escolha!
— O que te leva a fazer isso? — indaguei, tremendo.
Ela surgiu na minha frente e segurou meu rosto.
— Você se lembra de quanto tempo ficou olhando as estrelas desejando a morte? Você se lembra do vazio de sua alma clamar por um fim?
Minha pele se aqueceu e minha mente se revirou, lembrando-me de que, no dia em que meu pai morreu, após ser mais uma vez rejeitado pela minha amada, desejei um fim sublime em uma vontade egoísta para com a minha família.
Sem responder, ela continuou...
— Você foi um dos que me evocaram naquele dia, Pedro. E, apesar de ser inútil, conseguiu fazer com que seu pai se libertasse deste mundo por ter desejos pela forma profana de meu corpo. Este é o meu papel: levar as almas desconcertadas e insignificantes para mármore do fogo do inferno. Agora, venha comigo e eu lhe mostrarei a verdade. A verdade que os humanos se negam a ver!
Baixei minha cabeça, chorando copiosamente enquanto pensava em meu pai. Pensando no quanto de amor ele e minha mãezinha me deram: os únicos tesouros que eu poderia ter muito além de qualquer admiração alheia. Desejei do fundo do coração que ela não estivesse ali, mas sabia que não desapareceria até que realizasse o meu desejo íntimo de ir embora.
— Alamoa, o que há do outro lado? — perguntei, resfolegando.
Ela me olhou pelos buracos do crânio e respondeu:
— O inferno! — E apertou meu rosto como se eu fosse explodir.
Em um reflexo, me abaixei e segurei o crucifixo do terço que pegara da poça, mirando e cravando-o no olho dela no tempo em que minhas mãos queimavam, deixando os ossos à mostra pelo fogo negro exalado da caveira. Ela gritou como um urso e se afastou. Levantou as mãos e reuniu almas que surgiram do chão em um coro de lamentação numa esfera esbranquiçada, translúcida e densa.
— Pedro, você é corajoso. Conhece seu Deus Onipotente, mas desconhece as entranhas da tua terra e de tudo o que a rodeia. Hoje, apenas para que se lembre no momento da morte, eu lhe digo o que eu sou... — Ela ergueu o corpo, voando com o fogo que tomava conta de seu esqueleto.
Posicionei-me com o terço sob a coragem borbulhante, apesar de saber que eu morreria e encontraria meu pai do outro lado.
Ela vociferou pela última vez antes de me matar:
— A alma que tudo vê. Um dos anjos que caíram do céu! — E duas asas negras se abriram como leques na escuridão.
Um demônio.
Um clarão se estendeu e eu soube que era o fim. Coloquei as mãos em meus olhos, ao passo que a luz dominava o ambiente. Senti minhas pernas bambearem, meu coração ser destruído; meus ossos, quebrados, minha mente, diluída. Na realidade, creio que sempre foi desse jeito. Estava morto e não sabia, afinal, viver sem motivação não é nada, senão, a morte do espírito. Abri os olhos pela última vez e a vi como um vulto negro e iluminado ao mesmo tempo, vindo em minha direção. Já não havia vida, ela levaria somente a alma de um jovem inútil.
— Dama de Branco, fique onde está! — uma voz desconhecida disse.
Meu corpo se regenerou como em uma fantasia, e Alamoa parou seu movimento. O chão tremeu, lançando pedregulhos para todos os lados e as paredes da caverna se trincaram.
A dama então se encheu de fúria e olhou para cima.
— Você não pode interferir em minhas escolhas! — ela gritou.
Cai na poça, vertendo lágrimas e agradecendo pela minha vida, pela minha capacidade de respirar mais uma vez. Foi assim que senti braços me segurarem em um abraço, e, quando levantei a cabeça, meu pai estava lá por algum milagre inexplicável.
— Pai! — chamei, chorando.
Não demorou mais tempo e vi que Padre Cícero, João, Claudio e os outros estavam ao meu redor sem sequelas, enquanto Alamoa permanecia olhando para o alto.
— Venha e me enfrente de uma vez por todas! — ela ordenou.
— Que seja feita a tua vontade! — a voz respondeu, e a caverna, retorcendo-se, tornou-se um salão branco e espelhado.
Um buraco se abriu no ar e de lá surgiu uma serpente de fogo, abrindo sua boca na direção da dama. As criaturas se encontraram em uma batalha voraz, que fez com que eu e os outros ficássemos calados, aguardando o fim de tal loucura.
A serpente se enrolou ao corpo de Alamoa, queimou intensamente e deslizou em espiral, lançando a maior parte das chamas da caveira no chão, revelando novamente o esqueleto da donzela. Ela agarrou-se à cobra, segurou-a pela boca e a arrancou de seu corpo, lançando-a para o alto. No entanto, tão rápido foi e a serpente se tornou um homem negro de olhos e cabelos vermelhos, trajado de uma armadura feita de madeira escurecida e reforçada pelo que parecia ser ferro. Ele desceu ao chão, somente a poucos metros da dama, e a encarou, demonstrando ira em sua expressão guerreira.
— Seu tempo neste lugar chegou ao fim — ele disse.
— Mais uma vez você me encontrou. Contudo... — Ela fechou as asas. — O garoto é meu!
— Engana-te. Não há chamado para quem não enxerga a realidade. Veja! — ele apontou para mim.
A dama virou seu rosto lentamente, deixando-a cada vez mais estarrecida, embora eu não soubesse a razão do horror em seus olhos.
— Como ele desistiu?! Não há vontade para seres imundos como os humanos!
— Há vontade para todos aqueles cujos deuses os protegem — ele disse e uniu os braços, tornando-os vermelhos.
Uma cova se abriu sob os pés da donzela e se encheu de sangue, terços e imagens santificadas, sugando-a para o seu próprio fim. Alamoa gemeu e foi enrolada por braços de chamas azuis, clamando por vingança em uma tentativa de sair do buraco. Contudo, quanto mais ela tentava, mais afundava. Enquanto o homem chamado Serpente de Fogo falava comigo em pensamento.
Um segredo da alma.
"Ouça-me, menino. A vida é um tesouro capaz de entristecer e alegrar. Eu, sabendo de sua pureza, vim ao seu encontro e trouxe-lhe de volta aqueles que se foram, pois é o meu dever proteger a natureza e os humanos. Mas entenda, Pedro, que seus pensamentos lhe trouxeram ela, a Dama de Branco, o demônio capaz de manipular e seduzir os homens para a morte. Por isso, prometa-me que nunca mais desejará a morte, e que deixará sua vida ser tão intensa quanto desejou nestes últimos instantes."
Envergonhado, eu respondi:
"Sim, eu prometo. Mas antes de ir, fale o seu nome."
O silêncio tomou o ambiente e a minha mente. A cova de Alamoa se fechou e foi possível ver seus ossos serem quebrados como vidro, sendo selados para um local desconhecido a mim. O homem negro virou seus olhos, andou alguns passos e segurou minha mão. Meu pai e os outros se afastaram, deixando com que eu tomasse meu caminho. Pela mente, o homem respondeu:
"Neste pedaço de terra chamado Brasil e em todas as terras criadas por Deus, existem seres etéreos de milhares de anos atrás, de trevas e de luz, da natureza e das sombras. Alguns bons, outros ruins. Para ti, eu deixarei meu nome, de como serei conhecido. Eu sou a Serpente de Fogo, Botatário. Mas você me conhecerá por Boitatá, o guardião da natureza. Assim será e jamais se esqueça: enquanto tiver pureza em seu coração, sua vida terá sentido. Já para aqueles que desejam a morte e o desejo carnal desta ilha, a Dama de Branco sempre retornará."
Com isso, ele largou minha mão, sorriu e voltou a tomar a forma de uma serpente, desaparecendo como fumaça.
O ambiente voltou a ser a velha caverna e a saída apareceu como em um passo de mágica.
Sem fôlego, Padre Cícero permaneceu inerte. Já meu pai e os demais, na vez deles, preferiram manter o segredo sobre tudo o que acontecera para que não fossemos taxados de loucos. Por isso, meu pai voltou para casa comigo, encontrou minha mãe e foi recebido com a surpresa de uma mulher que desconhecia o sobrenatural, mas que confiava em Deus e em milagres, principalmente nos que nascem do amor criado por laços que jamais se quebram.
VII
Com a família unida, partimos de barco para outras terras em busca de novos horizontes. Minha vida se renovou e os sonhos renasceram, mostrando ao protetor da natureza, agora, meu guardião, que a vida tinha mais sentido. Na minha essência, a direção, o amor e a consideração por mim mesmo eram necessárias. Já para ti, que lê este relato, eu sempre direi: invoque somente aquilo que deseja, ou derramará o sangue que não lhe pertence...
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O Menino do Metrô:
https://www.amazon.com.br/MENINO-DO-METR%C3%94-D-Potens-ebook/dp/B06ZXQYQFT/ref=sr_1_1?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1492271435&sr=1-1&keywords=o+menino+do+metr%C3%B4
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