CAPÍTULO XXVI
Osaka era o tipo de cidade que Melina com toda certeza visitaria quando tivesse tempo. Talvez nunca mais tivesse tempo para nada, mas guardaria o lugar em sua memória mesmo assim. A inundação de turistas era a melhor parte — o melhor jeito de passar desapercebida.
Quando, porém, o sol se pôs, a cidade já era um borrão de luz colorindo o horizonte. Não se demoraram nem um dia inteiro em terra firme e já estavam em alto mar.
Em um barco, é claro.
Quase todo o dinheiro que tinham fora direcionado àquilo. Era um risco enorme estar à apenas alguns metros acima da água salgada, mas não havia outro modo de fazer aquilo.
O capitão contratado rumava com a embarcação, com a conta cheia, sem questionar muita coisa, cantarolando algo em sua língua nativa. Os garotos estavam no convés, fazendo sabe-se lá o que. As garotas estavam na parte interna do veleiro, acostumando-se ao pouco espaço disponível.
Era aconchegante, apesar de tudo. Branco e marrom era uma combinação que agradava os olhos de Melina. Haviam quatro camas de casal espremidas nas extremidades e um projeto de sala, emendada com uma mini cozinha no centro do barco. Dois banheiros, também. Estavam bem.
Apesar disso, ainda se sentia enjaulada e agitada. Parecia um jogo cruel dos deuses coloca-la tão próxima do mar e, ainda assim, tão enclausurada. Sentiu mais empatia por peixes em aquários do que nunca.
Nadar sem propósito era uma das coisas que mais lhe fazia falta. Jamais se contentaria com qualquer coisa menor do que todo o oceano depois de deixar-se ser tocada por ele, depois de não ver nada além de azul por todos os lados, depois de ser preenchida pela sensação de infinito e pelo convite de desbravá-lo. Aquilo era liberdade. Nada jamais se compararia.
Todavia, sabia que não havia muita coisa que pudesse ser feita no momento quanto à questão, então, aproveitando o tempo livre que tinham até que estivesse à uma boa distância da costa, sentou-se com suas amigas no sofá e fez o que de melhor e mais fútil tinham para fazer: fofocar.
Demoraram para encontrar um alvo, ninguém de interessante era conhecido pelas três, portanto, tiveram que apelar a fofocarem sobre as próprias vidas. Quando entraram no tópico romance, Ana quis saber como Cecília e Abner haviam se conhecido, o que a levou a indagar, com surpresa.
— Por causa do Joe, ué. Ele nunca te contou como a gente se conheceu? Essa história é ótima!
— Não. Nunca nem tocou no assunto — respondeu Melina.
— É porque ele é humilde. — Maria deu de ombros. — Mas se ele não é um bom contador de história, eu sou.
"Era o meu primeiro ano na faculdade, eu estava na xerox tirando cópia de sabe Deus quantos livros. Sabe como a gente é no primeiro período do curso, não sabe? A gente jura que seremos os melhores estudantes e vamos ser super dedicados. Enfim, eu estava nessa fase e ele estava lá fazendo não lembro o que. Só sei que eu cheguei, pedi licença e comecei a explicar pro moço da xerox de quais páginas eu precisava. Aí o Joe simplesmente me perguntou se eu não queria levar o livro inteiro pra casa de uma vez, já que estava tirando cópia do livro inteiro.
Eu me virei pra xingar ele de tudo quanto é nome, porque, até onde eu lembro, ninguém tinha pedido pitaco dele. Mas quando vi que ele tinha quase o dobro da minha altura resolvi tentar ser educada. Nunca se sabe se está conversando com um doido adepto à agressão física.
Aí eu me esforcei pra ser educada e expliquei que aqueles livros ali não podiam sair da biblioteca e que foi preciso muita lábia, jogo de cintura e uma identidade retida pra convencer a bibliotecária a me deixar levar pra tirar cópia. Foi quando ele fez a pergunta mais elitista que eu já vi alguém fazer. Ele olhou pra mim, com toda a seriedade do mundo e perguntou 'por que você não compra, então? Esses daí vendem na livraria do campus'. Aí eu esqueci toda a educação e perguntei se ele sabia qual era o preço de um único livro de psicologia, se achava que eu estava dando o rabo na esquina pra ter dinheiro pra comprar aquilo tudo e um monte de outras coisas, porque naquele dia eu estava sem paciência, pra ser sincera. A minha dupla em um trabalho tinha feito uma merda gigantesca em forma de artigo. Tudo totalmente fora das normas da ABNT e eu tinha gastado duas horas ajeitando aquela bomba. Mas, enfim, voltando."
Enquanto ela tomava ar, Melina refletiu sobre a total incapacidade da semideusa de ser objetiva, mas estava aproveitando o entretenimento proporcionado, por isso, não interrompeu.
— Não sei nem o que eu estava falando quando ele interrompeu e falou 'tudo bem, eu compro pra você'. Juro pra vocês que devo ter ficado calada por uns quinze segundos, mas aí eu caí na gargalhada. Ri de tanto ódio porque achei que ele estava tirando sarro da minha cara. Só que aí ele continuou 'é sério, eu vou lá contigo e compro esse trambolho de livros aí'. Eu olhei pro moço da copiadora, que deu de ombros, porque também estava sem entender nada, assistindo a briga. Só aí que eu percebi que tinha uma fila considerável atrás da gente, esperando pra ser atendida. Então eu perguntei se ele estava falando sério. Aí ele respondeu, na maior cara de pau, "você pode continuar aqui me xingando e reclamando do quanto é pobre ou pode aproveitar a oportunidade", acredita nisso?
"Só sei que eu fui, porque, como diz o poeta, 'nasci pobre, mas não nasci otária'. Admito que só fui acreditar mesmo que ele estava falando sério quando ele passou tudo no débito. Eu nem lembro quanto que deu, só sei que eu fiquei lá parada, vendo a mulher ensacolar tudo, de queixo no chão, e ele só disse 'tchau' e foi embora.
Isso era antes do almoço. De tarde eu vi o Joe entrando no ambulatório de psiquiatria e perguntei pra um amigo meu que fazia estágio lá — hoje eu nem falo mais com ele porque eu descobri que ele falava pra outras pessoas que eu era macumbeira em tom de desdém — se ele sabia quem era aquele garoto, se ele era de algum curso da área da saúde ou era um paciente, porque, sei lá, né. Ele me disse que era um veterano de medicina, que a família dele era riquíssima e um monte de outras fofocas. Quando eu contei o que tinha acontecido ele pirou. Disse que ele com certeza queria me pegar, que devia ser um desses milionários que tem fetiche em pobre e que era nossa chance de andar de BMW.
Eu disse que ele estava ficando maluco e criando expectativas demais. Mas ele insistiu nisso e disse que tinha ouvido de não sei quem que alguns caras da turma do Joe iriam pra um bar que tinha ali perto mais tarde e que a gente deveria ir atrás. Eu nem tinha dinheiro pra isso, mas ele conseguiu me arrastar.
Na verdade, eu só queria agradecer mesmo, não achem que eu sou interesseira. Só que eu estava um pouco constrangida porque tinha gritado com ele e ele foi super legal comigo. Mas, enfim, encontrei com ele nesse tal bar e ele foi super simpático. Agradeci e, conversa vai, conversa vem, ele disse que ia ter uma social na casa dele na sexta e que eu deveria ir. Disse que queria me apresentar um amigo e eu achei que era caô. E, assim, como já disse, não sou interesseira, mas se um cara bonito e rico dá em cima de você, você vai na onda. Como eu achei que ele estava dando em cima de mim, apareci na casa dele sexta-feira e acabou que ele realmente tinha um amigo pra me apresentar.
Foi aí que eu percebi que tinha acertado o ninho e por pouco não errei o passarinho. Abner era bem mais gostoso, mais engraçado e falava vinte palavrões por segundo. Eu caí fácil, fácil na dele. Um mês depois a gente já estava namorando e falando que se amava."
Melina tinha muitas perguntas, porém Anastasia seguiu com o assunto, olhando para Maria Cecília como uma romântica incorrigível carente de mais detalhes sobre o amor.
— Como você percebeu tão rápido que ele era o amor da sua vida?
— Ah, foi fácil — Ceci começou a responder. — Ele estava lá em casa quando a gente ouviu o cachorro do vizinho chorando muito. Ele perguntou o que era aquilo e eu respondi que o vizinho era um covarde que maltratava o bichinho. Aí o Abner pulou o muro que dividia nossas casas, bateu no vizinho e roubou o cachorro. Agora dividimos a guarda do Toddy.
Um coro de gargalhadas sinceras foi entoado. Todavia, durou pouquíssimos segundos, pois logo Cecília estava dando batidinhas na perna de Melina e pedindo:
— E você? Conta de você e do Joe.
— Vamos passar as próximas setenta e duas horas aqui se ela for contar — brincou Anastasia. — Nunca vi um casal enrolar tanto para ficar junto.
— Não foi minha culpa! — Melina defendeu-se. — Ele quem me enrolou. No segundo em que ele bateu no meu portão eu já pensei "aí está uma boca que eu preciso beijar".
Riram outra vez. Contudo, Melina não poderia deixar escapar a oportunidade de saciar sua dúvida.
— Só tem uma coisa que eu não entendi — ela começou a perguntar —: como vocês ficaram sabendo o que o outro era?
O semblante de Cecília ficou um tanto mais sério, mas sua voz era terna quando iniciou a explicação:
— Quando eu nasci o bairro inteiro já sabia que meu pai era esquisito. Nossa casa era lotada de plantas e cheirava esquisito por causa de todas as invenções de moda. Eu cresci sendo chamada de macumbeira, bruxa, diziam que eu tinha pacto, que jogava praga nas pessoas. — Uma pontada de dor pode ser percebida debaixo da camada de nostalgia. Como alguém que conta uma experiência ruim, enxergando-a de longe, como uma lição.
"Eu entrei no personagem do jovem místico e deixei falar o que quisessem de mim. A maioria desacreditava e achava que eu e meu pai erámos malucos, outros tiravam sarro ou tinham medo, mas o importante é que ninguém sabia a verdade. Às vezes, o melhor esconderijo é sob a vista de todos.
Quando o Abner começou a frequentar minha casa ele não fez nada disso. Ele simplesmente agiu com toda a naturalidade do mundo. Eu me sentia livre pra falar o que quisesse com ele. Digo, eu tinha saído com outras pessoas que nunca me levavam a sério, mas ele me respeitava tanto. E não fazia isso só pra ser simpático. Eu percebi que ele realmente acreditava. Então eu acabei abrindo o jogo com ele. Foi aí que ele me contou sobre o Joe e todo o resto."
•
A madrugada veio e se foi. Melina a assistiu passar, em claro, ansiosa. Deveriam chegar às coordenadas em pouquíssimo tempo e logo, logo, estaria dentro d'água.
Quando cansou de rolar em sua cama, levantou-se para ir à proa, onde seu namorado estava cumprindo seu turno como vigia da vez. Mal deixou seus pés tocarem o chão para não acordar ninguém e, em menos de um minuto, já estava do lado de fora.
O dia começava a descortinar e o céu estava roxo e sem nuvens. Seria um dia ensolarado, mas ela não o veria.
Dante também não havia dormido. Estava ao lado de Joe, encostados na balaustrada, conversando. Seria ele quem desceria com ela da primeira vez. Não tinham uma boa ideia do que os esperava lá embaixo e ele havia sido irredutível quanto a não deixar Anastasia ir primeiro. Ele foi o primeiro a olhar para trás, notando a presença dela. Acenou um cumprimento com a cabeça e foi em direção à cabine do capitão. Entendeu, sem nenhuma palavra, que seria melhor deixar o casal sozinho para conversarem uma última vez antes da expedição. Dante não precisava ficar de papo com Melina. Estariam a sós por horas e horas em pouco tempo. Deu-lhes espaço.
Ela foi até a amurada. Beijou-o rapidamente, encostando o braço direito no esquerdo dele, observando seu lar. Não tinham tempo para conversa fiada. Tudo parecia extremamente emergencial nos últimos tempos. Foi logo ao assunto.
— Em uma escala de um a dez, o quanto diria que eu te conheço?
Ele franziu o cenho. Pequenas bolsas se acumulavam embaixo dos olhos. Aquela não era a primeira noite da semana que passava sem dormir.
— Eu deveria ter medo dessa pergunta?
Ela pensou a respeito.
— Não, não deveria.
— Então minha resposta é: dez.
Ela sorriu e assentiu, satisfeita.
— Como você mesmo confirmou, eu te conheço muito bem. Então eu estou certa em supor que você não encontrou a Ceci por acaso naquela xerox, não estou?
Joe concedeu-se o direito ao silêncio por longos segundos.
— Sim — respondeu, enfim.
— Sabia o que ela era desde o início, não é?
Não havia acusação em seu tom de voz. Perceber isso fez com que Joe cedesse a resposta com mais velocidade desta vez, em forma de aceno de cabeça, e se sentisse em um lugar seguro para contar:
— Eu sabia que precisaria de alguém como ela em algum dia. Então eu procurei — narrou com frieza, como se explicasse que faltava um ingrediente à sua receita, então foi ao mercado buscar.
— Ela não vai gostar de saber disso — pensou em voz alta.
Ele concordou, gesticulando uma negação com a cabeça. — Acha que eu deveria contar?
— Eu não sei. De verdade. — Pensou no que seria mais adequado. — Se sente mal por isso?
Refletiu por um quarto de minuto. — Eu tinha tudo planejado. Já tinha investigado a vida dela toda pra ter certeza de que ela realmente era quem eu suspeitava que era. Estava na xerox esperando por ela, garanti que o amigo interesseiro dela soubesse onde eu estaria naquela noite. Eu queria fazê-la gostar de mim e mantê-la por perto pra quando fosse necessário.
"Eu só não contava que, quando ela chegou no bar, eu já estaria meio alterado e incrivelmente amigável. E ela era muito legal. De verdade. Você tem que sair com ela depois que tudo isso acabar. Ela é ainda mais sensacional sem toda essa pressão psicológica de ter gente querendo te matar. Eu lembro que, depois de sei lá quantos litrões, a gente estava conversando sobre filmes e eu pensei 'puta merda, o Abner iria adorar essa garota', porque eu nunca tinha conhecido ninguém além dele que gostasse tanto de slashers dos anos 80 até conhecer a Maria.
Quando eu dei por mim, eu e ela estávamos brigando porque ela tinha comido meu doce de leite todo e eu tinha ganhado uma irmã. Eu ainda iria querer a amizade dela, mesmo se ela não tivesse nada pra me oferecer."
— Acho que é justo o bastante — foi a conclusão à que ela chegou.
— Me perdoa — ele pediu.
— Pelo que?
— Por não contar certas coisas, como essa, pra você.
Ela negou com a cabeça, como se não fosse algo com o que ele deveria se preocupar. Em outra época chatear-se-ia pela privação de informações. No entanto, pensou em Josias e em Abner. Mentir para proteger não lhe parecia a coisa mais ética do mundo, mas nem de longe era a coisa mais vil a se fazer.
— Alguns segredos possuem um bom motivo para serem segredos.
Ele recebeu essas palavras como se fossem um abraço de conforto. Soube que era compreendido.
Não tiveram muito tempo para processar tudo o que havia sido dito, porém, pois logo após Dante ressurgiu na cena, com o anúncio que os mantivera acordados em expectativa. Haviam chegado ao destino. Era hora de descer.
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Essa é a imagem do veleiro que peguei como referência. Coloquei aqui pra vocês se situaram melhor no espaço, porque, se vocês forem iguais a mim, é quase impossível imaginar como cabe tanta coisa dentro de um barquinho, então fotos são necessárias.
E essa é uma música que eu ouvi enquanto escrevia o capítulo e acho que diz muito sobre a relação da Mel e do Joe. É sobre duas pessoas que se completam mesmo no lado mais sombrio de cada uma.
"Você é um bandido como eu.
E os segredos do nosso passado conspiraram bastante pra foder com tudo. E os homens velhos que eu enganei juraram que eu era a pessoa certa. E as mulheres almoçando contam histórias de quanto você passou pela cidade, mas isso foi antes de eu te pegar pra mim. Agora você está pendurado nos meus lábios como os Jardins da Babilônia, com suas botas debaixo da minha cama. O "pra sempre" é o golpe mais doce.
Você é um cowboy como eu
E eu nunca vou amar novamente."
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