CAPÍTULO XXV
As paisagens pareciam sempre as mesmas para todos os outros, menos para Melina. Gostava de plantas. Por isso observava com calma a mudança de vegetação entre um pedaço de terra e outro, pelo interior do país. Gostava de pensar que estavam escalando. Da base, no Sul, até meados da montanha colossal que era o Brasil, no Sudeste. Se pensasse assim, talvez fosse mais fácil esquecer o que reunira seis pessoas dentro de um SUV de sete lugares, adquirido às pressas e de maneira um tanto suspeita.
Na realidade, a viagem estava sendo tranquila.
Trocavam de motorista a cada punhado de horas e jogavam jogos estranhos. Aprendiam informações inúteis sobre os outros, como o fato de Abner detestar abacate e Dante e Anastasia terem disputado o coração do mesmo rapaz na adolescência (o romance não funcionou para nenhum dos dois).
O caminho mais seguro era também o mais longo. Atravessaram Minas Gerais, o que a fez ser pega pensando em quando os dias não eram fáceis, mas ela conseguia lidar com eles.
Sentia falta de seu pai.
Algo dentro dela gritava e pedia para que desviassem da rota e parassem em sua antiga casa, apenas para ver se as roupas de Nicolao ainda estavam no guarda roupas, como eles haviam deixado e se a poltrona velha ainda estava utilizável. Se estivesse, poderia mandá-la para o outro lado do oceano, para ele.
Não, não podia; lembrou a si mesma.
Havia muito o que ser feito antes de reconquistar o direito de buscar uma simples poltrona em outro continente apenas para afagar o coração de quem amava.
Pensou em ser rainha pela primeira vez em algum tempo — não em pôr uma coroa na cabeça enquanto segurava outra cabeça nas mãos, no que faria após.
Afastou a tenra neblina de pensamentos que começavam se formar em sua cabeça antes que estivesse afundada demais em névoa mítica e fabulosa para enxergar o que precisava ser feito de imediato.
Nada daquilo teria propósito de ser pensado se não parasse um coração.
Uma tarefa única: matar.
Voltou à realidade.
Chegou ao Rio possuída pela mesma obstinação petulante que a mantivera viva até ali.
•
— Tem certeza que quer fazer isso? — Abner perguntou enquanto o elevador subia.
Voltar ao apartamento era arriscado, Joe sabia. Poderia ter alguém ali esperando por eles. Ou Calisto sabia que ele não seria tão estúpido de voltar para própria casa. Ou talvez pensasse que ele pensaria justamente isso. Ou... de qualquer forma, precisava fazer aquilo. Mais por si mesmo do que por qualquer outra pessoa.
Deixou o restante de seus companheiros hospedados em um airbnb qualquer, aguardando o contato que os entregaria o necessário para sumir do país, e disse que necessitava de algumas coisas que havia deixada em sua velha moradia.
Não era mentira.
Itens abandonados, encaixotados em seu quarto se mostrariam úteis, finalmente. Mas não havia nada ali que não pudesse conseguir em outro lugar.
A verdade verdadeira era que precisava daquele clichê ridículo de retornar ao rio só para constatar que tanto as águas correntes quanto ele próprio já não eram a mesma coisa de antes. Tinha a súbita urgência de provar para si mesmo que já havia sobrevivido a batalhas mais sangrentas dentro de sua própria mente. Sobreviveria àquela também.
A porta da caixa de metal abriu, dando vista a sala de estar. — Tenho.
Estava uma completa bagunça. Sorriu.
— Eu meio que esqueci de chamar a moça pra dar uma geral — Abner se justificou.
— Não sei como conseguiu sobreviver sem mim.
Abner não tinha resposta boa o suficiente para retrucar a mais pura verdade. Então, calou-se.
Meia hora depois já tinham tudo o que precisavam dentro de uma mochila, mas Joe não fazia nenhuma menção de deixar o apartamento. Deitou-se largado no sofá, ao invés disso. Abner apenas sentou-se no braço do móvel e deu ao amigo o direito do silêncio por alguns minutos, até que perguntou:
— No que tanto pensa?
— No tanto de tempo que eu desperdicei. Eu poderia ter feito tão mais pela Linda, mas ao invés disso eu estava só... você sabe.
— Eu sei...
— Não tem nenhuma palavra motivadora? — levantou uma sobrancelha.
Abner pensou um pouco. — É foda.
Joe riu.
Uma lágrima escorreu involuntariamente do canto de seu olho. Não se deu ao trabalho de limpá-la.
— Eu estou mais cansado do que gostaria de admitir — confessou, encarando o teto.
— Eu imaginei. Só estava esperando tu explodir.
— Eu não vou explodir. Não posso. Não agora. Eu preciso resolver a merda que eu mesmo arrumei antes disso.
— Não acha que está se cobrando um pouco demais, não? Às vezes você fala como se tudo isso fosse sua culpa. Sabe que não é.
— Eu poderia ter aproveitado melhor meu tempo pensando em alternativas melhores e mais eficazes.
Abner fez uma longa pausa.
— Eu não que estamos falando da mesma coisa.
— Não, não estamos... — Joe confirmou.
— Se sente tão responsável pelo que, exatamente?
Desta vez, que se calou por segundos intermináveis foi o semideus.
— Eu preciso te contar uma coisa — disse enquanto reunia coragem para dizer a coisa em si.
O silêncio do outro rapaz era o indicador de que ele deveria prosseguir com a narrativa. Buscou nos olhos do amigo motivos para voltar atrás e continuar guardando seu segredo para si mesmo. Não encontrou. Sabia que Abner ficaria ao seu lado.
— Eu fiz uma coisa ruim, Abner. Eu fiz uma coisa muito ruim.
•
Quando os rapazes voltaram, já estavam prontos para partir. Melina não era do tipo que gostava de perder tempo. Especialmente quando cada segundo desperdiçado poderia significar ser encontrada.
O avô de Abner havia feito muito.
Havia garantido uma passagem segura até o Japão. De lá, estavam por sua própria conta e risco, contudo, aquilo já era bem mais do que o necessário. Melina sentiu-se um tanto culpada por pensar tão mal do solicito homem. Mas arranjaria tempo para agradecê-lo corretamente depois.
Não havia uma lista muito grande de aliados em que pudesse confiar. Fez uma nota mental de honrá-los da maneira mais digna possível assim que tudo estivesse resolvido.
Pensou em todas as pessoas que ainda estavam em Anamar. Se estariam bem, se já teriam desistido dela ou se ainda possuíam alguma fé inexplicável. Pensou um pouco mais e chegou à conclusão de que não precisavam ter fé nela, apenas precisavam ter raiva da mesma coisa. Aquilo era mais simples e fácil de obter.
Porém, havia ainda uma única coisa que não parecia ser tão simples quanto deveria e era bem mais urgente.
Dentro do avião, desviou os olhos do continente que desaparecia muito abaixo e os concentrou em Joe. Cada mínima parte de sua alma confiava nele. Não queria deixar margem para que ele duvidasse disso. No entanto, precisava lembrá-lo:
— Sabe que está chegando a hora em que vai ter que me contar onde está a pérola, não sabe?
Ele pareceu surpreso por alguns segundos. Como se tivesse sido pego em flagrante. Mas não respondeu com expressões verbais. Apenas acenou a cabeça em concordância.
Quando ela não esboçou nenhuma reação, nem positiva nem negativa, ele passou o braço ao redor dos ombros dela e a puxou para perto de si, deitando-a em seu abraço, acariciando seu couro cabeludo.
— Eu não se tudo o que eu faço é certo. Provavelmente, não — ele enunciou, baixo o bastante para que ela só o ouvisse devido à proximidade. — Mas tudo o que eu faço é pra te manter viva e bem. Eu te amo, Melina. Acima de qualquer lei humana ou divina.
Melina.
Nunca a chamava assim.
Talvez aquilo fosse um péssimo indicativo.
Sabia dentro de si que não era uma declaração de amor em glitter, rosa e dourado. Não era fofo ou doce. Mas ela entendeu. Mais do que entender, não temeu.
Envolveu seus braços ao redor de seu tronco. Apertou-o com força.
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