CAPÍTULO XXIV
Joe desfrutou de pouco tempo em relativa paz antes de tudo dar ainda mais errado. Talvez fossem as nuvens carregadas ou a fumaça que saía da boca enquanto falava. Mas o fato era: o frio em sua espinha não mentia quando aparecia. Era um mal sinal. Como um abutre olhando em seus olhos em plena madrugada.
Quando Dante desviou os olhos concentrados na partida de damas, em óbvio tom alarmante, todo mínimo milímetro de sua pele arrepiou-se em alerta. Antes que pudesse se dar conta, já estava dentro do carro, com seus dois companheiros a bordo, porta-malas lotado, em busca das garotas.
Encontraram Anastasia na saída da cidade, trazendo uma Cecília enxarcada e assustada — sem Melina.
Uma explicação rápida da parte de Ana foi o necessário para que compreendessem a dimensão da merda em que estavam atolados. Tinha dentro de si a vontade incontrolável de atravessar a fronteira e quebrar os ossos de todos os imbecis que estava ajudando Athenion naquela empreitada, mas a urgência de reaver Melina era maior. Muito maior.
Lançaram-se pela estrada, rio acima.
Após horas torturantes dentro do carro, lutando contra a neblina que em nada contribuía para que a velocidade pudesse ser aumentada, Ana e Dante perderam os ecos de poder deixados pela sereia ao longo do caminho em uma cidadezinha qualquer que nada teria a oferecer como entretenimento, exceto as manchas de sangue espalhadas pelo asfalto e as cadeiras de bar jogadas dos dois lados da rua.
— Em nome de qualquer deus — Joe implorou, saindo do veículo —, alguém me diz que esse sangue não é dela.
— Eu vou tentar descobrir o que aconteceu aqui — Abner comunicou, saindo pela porta do carona e afastando-se do grupo.
Alguns curiosos olhavam os quatro parados, encostados no carro. O tumulto já havia se dissipado há um bom tempo, ao que tudo indicava, Joe só não saberia dizer se aquilo era algo positivo ou não.
— Tem certeza de que esse é o lugar? — Cecília perguntou para os irmãos, que acenaram em concordância. — Vamos esperar o Abner voltar — decidiu por todos — e vamos pra outro lugar. Não gosto do tanto de gente bisbilhotando — declarou resoluta, voltando para dentro do automóvel.
Anastasia entrou logo em seguida, sentando no banco do meio, deixando a janela para Dante. Joe entrou pouco tempo após, assumindo o banco do motorista, olhando para Maria pelo retrovisor.
— Pra onde quer ir? — perguntou para ela.
— Algum lugar privado — ela respondeu. — Não pode ser muito longe. Ela ainda pode estar por perto.
— Duvido que ela esteja — ele falou.
— Ela está a pé — Cecília argumentou.
Joe apenas riu, sem humor. — Você ficaria surpresa com a habilidade dela de dar nó em pingo d'água.
A preocupação o atingia como uma pedra de gelo deslizando da parte de trás de se pescoço e percorrendo toda a sua coluna; era inevitável. Mas confiava em Melina e em sua extraordinária capacidade de se virar por conta própria.
A porta do carona se abriu pouco tempo depois. Antes mesmo que seu corpo estivesse totalmente dentro do carro, Abner já narrava:
— Parece que foi uma briga de bar. Todo mundo se juntou pra bater em um gringo. Quem não tá no hospital, tá na cadeia. Tinha uma garota no meio, mas ela fugiu no meio da confusão.
— Ótimo... — Joe murmurou para si mesmo, dando partida com o veículo.
Dirigiram até a saída da cidade, a procura de um lugar calmo e reservado.
E não serviria qualquer lugar. Maria Cecília era bastante exigente. Tinha que estar em contato com a natureza, mas não qualquer natureza. Seguia uma lógica interna que só fazia sentido para ela. Para os demais, restava obedecer e ficarem satisfeitos com a qualidade do serviço entregue.
Por fim, encontraram um mirante deserto que lhes serviria de base pelos minutos necessários. Ainda julgava ser exposição demais, pararem no meio da estrada, onde qualquer um que estivesse passando pudesse vê-los, mas foi o melhor que conseguiram naquelas circunstâncias.
Armaram o circo todo para Maria Cecília fazer o que sabia fazer de melhor, com o pouco que tinha.
Sentada diante da mata selvagem, sem muitas cerimônias agarrou o pulso do semideus — a pessoa mais próxima a Melina que tinham ali — e a buscou. Esperava não estar longe. Teria uma visão mais clara estando mais próxima.
A primeira coisa que viu foi uma loja de conveniências. O pouco movimento, a poeira, veículos de grande porte e a logo tão conhecida por brasileiros. Mesmo assim, poderia ser qualquer posto em qualquer lugar. Forçou-se a ampliar o campo de visão. Apenas uma placa seria o suficiente para dar melhor norte.
Buscou em volta, recusando-se a parar até ter sua resposta.
Km 114.
•
Quando Melina desceu do caminhão, sua vontade era correr para o chuveiro mais próximo e se livrar de toda a fuligem de estrada e de toda poeira que estava na parte de trás daquele veículo em que havia se enfiado às pressas para fugir de Athenion. Mas o banho teria de esperar.
Abandonando suas fiéis companheiras de viagem — as caixas de móveis —, viu-se em um posto de gasolina de beira de estrada. Sabia que Athenion havia ficado há pelo menos quarenta minutos de distância de carro para trás, mas não podia garantir que seus fantoches humanos não estivessem espalhados em cada bueiro.
A água havia feito bem a ela. Sentia-se mais forte.
Então, esperançosamente, forçou sua mente a ir em busca de outras, obtendo sucesso. Ouviu as vozes internas dos motoristas que paravam por ali, dos passageiros e dos funcionários. Nenhum deles planejando matá-la, felizmente.
Estudou as opções que tinha e decidiu que o melhor a fazer era aguardar ali. Precisava confiar que seu leal e poderoso grupo daria conta de encontrá-la.
Entrou na loja de conveniências, mantendo a postura. Se houvesse confiança de sua parte, então o visual esfarrapado poderia ser secundário e não chamaria tanta atenção. Rodou pela loja, até que percebeu que precisaria pedir alguma coisa para continuar ali. Andou até o caixa de nariz arrebitado. Não tinha dinheiro, mas tinha a ela mesma.
— Vou querer uma coxinha e um energético, por favor — pediu à moça do caixa.
— São dezessete reais — ela respondeu como um robô.
— Posso pagar com uma informação do além? — pôs um sorriso divertido nos lábios. Sabia que aquela mocinha ali lia o horóscopo todos os dias. Não seria difícil.
— Tá brincando comigo?
— Do jeito que você brincava de escolinha na casa da sua tia Fernanda, mas só até os 8 anos, porque ela morreu atropelada quando você tinha essa idade?
Apenas depois pensou que poderia ter revelado algo mais leve.
— Okay. Tô dentro — os olhos dela brilharam. — O que tem pra mim?
— O moço ali fora, o Breno, quer te pegar.
— Tu jura? — indagou, boquiaberta. Melina apenas assentiu, com um sorriso ladino, confiante. — Tudo bem, pode levar — decidiu, pegando o salgado da estufa e logo em seguida indo em busca da bebida no refrigerador.
Quando sua cozinha já estava completamente dentro de sua barriga e seu energético chegava ao fim, avistou um veículo conhecido estacionando. A primeira pessoa a sair correndo de dentro dele foi seu namorado, carregando um olhar que se dividia entre querer matá-la e querer segurá-la no colo pelo resto da vida.
Quando a alcançou, porém, ele já tinha decidido que apenas abraça-la seria o bastante.
— Nunca mais faz uma coisa dessas, Linda — advertiu-a quando a soltou. — Quer me matar do coração?
— Desculpa — pediu, sinceramente. — Foi uma decisão de emergência.
— Tudo bem, eu sei — afagou a nuca dela. — Só fiquei preocupado.
— E agora? — ela questionou, olhando para os outros que a olhavam aliviados, tímidos, sem querer interromper o casal. — Perdemos tudo que tínhamos comprado pra viagem.
— A gente conseguiu trazer o que tinha lá em casa mas é só isso, também. Precisamos sentar com calma e planejar os próximos passos.
— A gente pode achar um hotel barato aqui pela estrada pra passar essa noite.
— É, é uma boa ideia.
— Uma última coisa: como vamos enfiar seis pessoas no carro?
— Anastasia vai no porta-malas — falou um pouco mais alto.
— Ei! — a menina protestou atrás deles.
Rindo da situação, entraram no carro.
Anastasia não foi no porta-malas. Foi no colo de Maria Cecília ao invés disso.
Acharam um hotel qualquer que serviria para abrigá-los enquanto recalculavam a rota. Acomodaram-se em três quartos e decidiram que passariam a noite ali, trocariam de veículo no dia seguinte e então seguiriam por terra, para o Rio de Janeiro, onde arranjariam meios de sair do país.
Quando tudo já estava resolvido, Melina pôde, enfim, banhar-se.
Ao sair do banheiro, revigorada pela incomparável sensação de limpeza, Joe já havia terminado de separar o que era mala de quem e havia levado as deles para o quarto. Não tinham muita coisa, para falar a verdade. Algumas poucas peças de roupas, poucas armas e pouco dinheiro vivo. Porém, o que chamou a atenção da sereia foi o tridente largado sobre a cama.
— Eu trouxe pra você — ele elucidou.
— Eu não quero — ela afirmou firmemente, apertando a toalha no corpo. — Não quero nada dele.
— Tem certeza? — levantou uma sobrancelha. — É um tridente muito bom.
— Tenho — reiterou, pegando uma muda de roupa para vestir.
— Tudo bem — concordou com o tom de voz mais baixo do que o usual, fitando-a.
Ela não o encarou de volta por alguns longos segundos. Continuava encarando o tridente, ao invés, enquanto se arrumava.
— Acha que eu estou ficando louca? — perguntou, finalmente, quando já estava vestida. Genuína era sua dúvida. — É um tridente muito bom, mesmo — explicou, dando de ombros.
— Eu acho que tu é uma garota com convicções muito fortes e eu amo isso em você — respondeu, chegando mais perto dela. — Não é loucura se tu tem um bom motivo. — Beijou-lhe a testa, envolvendo seu rosto com ambas as mãos.
Ela apenas assentiu, mantendo os olhos baixos.
— Quer jogar essa coisa fora? — ele indagou.
Pensou antes de responder: — Não. Ainda não.
Tinha algo em mente, porém, sentia que não era hora de tomar aquela decisão, por mais simples que fosse. Queria ver como a narrativa se desdobraria dali para frente. A depender de como se desse tudo, ainda teria a oportunidade de quebrá-lo à marteladas violentas.
Passou os braços em volta do tronco dele, aconchegando a cabeça em seu peito, sem emitir absolutamente nenhuma palavra. Ele também não o fez. Estar juntos era o bastante; nada precisava ser dito.
O momento foi interrompido por batidas na porta. Segundos depois, ela se abriu, revelando Abner do lado de fora do quarto.
— Tem alguém aqui que ver vocês dois — ele avisou.
A reação imediata de Joe e Mel foi entreolharem-se, em busca de respostas. Nenhum dos dois tinha a menor ideia de quem poderia ser.
— Relaxa — Abner os acalmou, com um sorriso. — É meu avô.
•
Melina mal podia acreditar em tudo o que estava ouvindo. Na realidade, desconfiava ainda mais daquele homem do que em um primeiro momento. Quem era ele, afinal de contas? Com que objetivo ele estava se dispondo a oferecer o jato de um amigo para levá-los para o Rio, além de ofertar abrigo, documentos e armas?
Abner e Joe nem mesmo se surpreenderam. Cecília também não. Ana e Dante estavam dispostos a aceitar qualquer ajuda sem questionar muita coisa. Mas Melina não era tão fácil assim de ser comprada. Queria — precisava — entender exatamente quem era aquele homem que parecia saber tanto sobre ela quando ela não sabia nada sobre ele.
Por isso, quando todos já estavam satisfeitos com o auxílio, ela o chamou de canto, por não estar satisfeita com o pouco de informações que tinha.
— Eu vou ser bem direta — falou, fechando a porta do quarto atrás dela e cruzando os braços sobre o peito. — Quem é você?
Para suscitar ainda mais sua ira, Josias riu.
— Joe não te contou?
— Ele me disse pra perguntar sobre como você veio parar no Brasil, mas não disse mais nada.
— E por que nunca me perguntou? Sempre estive a disposição pra responder.
— Por que eu não entendo como isso poderia justificar você agir desse jeito.
— De que jeito? Ajudando?
— Olha, me desculpa, mas eu ainda não consegui tirar algumas das facas que enfiaram nas minhas costas no ano passado, então, não, não estou muito aberta a confiar em pessoas que agem sorrateiramente e nunca falam nada com clareza. Preciso de tudo em panos bem limpos se quer que isso dê certo.
— Sorrateiramente? — ele ergueu uma sobrancelha.
— Exatamente isso o que você ouviu. Não gosto do seu jeito. Você não é transparente. Não gosto que saia por aí ensinando adolescentes a usarem armas e nem aparecendo do nada atrás de mim com uma ajuda quase divina. Abner e Joe podem confiar em você por motivos óbvios, mas eu aposto um braço que eles não sabem de tudo sobre você.
— Tem razão — ele suspirou, sentando na cama, aparentando cansaço. — Eles não sabem.
— Acontece que a minha confiança não vai vir tão fácil. O jeito como você olhou pra mim na primeira vez que me viu? Como se soubesse demais da conta? Eu não gostei. E eu posso descobrir o que eu quero de um jeito bem rápido, só não fiz isso ainda em respeito ao Abner, mas agora chega. E eu acho bom você começar a falar tudo o que sabe e ser bem honesto. Porque eu vou saber se mentir.
— Me disseram que sereias eram ferozes, mas nunca tinha visto uma pessoalmente pra ter certeza — soltou a informação no ar. — Agora eu posso confirmar.
Sem dizer nada, Melina permaneceu de braços cruzados, instigando-o com o os olhos a continuar a falar.
— Minha ajuda é sincera, Melina. Quer saber como eu cheguei nesse país? Minha mãe veio refugiada da Polônia, comigo em um braço e uma trouxa de roupas no outro, sem saber falar uma única palavra de português. Eu apoio qualquer luta por sobrevivência porque eu sei como é ter que fugir de casa, da própria pátria, e não saber se vai ter como sobreviver ao dia seguinte.
A informação a desarmou quase que por completo.
— E se quer saber como eu sei que você é o que é, é porque eu sou o que sou. Meu pai é o bastardo do seu sogro e não, nem o Joseph nem o Abner sabem dessa parte. Prefiro que meu neto seja poupado de saber que tem qualquer parentesco com aquele deus de merda. Eu só estou ajudando minha família. Só isso. Satisfeita?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro