CAPÍTULO XXI
Voltar para a superfície não foi mais fácil do que descer. Olhavam para os lados a cada minuto, com as palavras de Pasithoe ecoando em suas mentes; selvagens. Onde, no Hades, eles estariam? Havia a questão óbvia: a ninfa de língua afiada era confiável? Todavia, Melina não podia negar que algo dentro dela sempre soube que eles ainda estavam por aí, em algum lugar do oceano, escondidos até mesmo de seu próprio povo.
Não sabia como faria para contar aos demais, decidiu que simplesmente jogaria a informação sobre o colo de cada um deles e deixaria que eles lidassem com aquilo do jeito que achassem melhor.
E foi exatamente isso o que ela e Dante fizeram naquela noite de temperatura baixa, quando os donos da casa já estavam adormecidos e o grupo de jovens já estava com a barriga cheia o bastante para aguentar as notícias com melhor humor.
Após os segundos iniciais de choque, Anastasia foi a primeira a se manifestar, com um sorriso de fascínio no rosto, exclamou:
— Eu sabia! — bateu a palma de sua mão direita na mesa de jantar, fazendo com que os garfos tilintassem sobre os pratos já vazios, esperando para serem lavados. Ninguém se levantaria para lavá-los tão cedo.
Diante do silêncio agoniante que se seguiu, Melina resolveu interromper o silêncio que mais a incomodava.
— Joe? — ela chamou.
Ele, então, piscou pela primeira vez em muitos segundos. Sacudiu a cabeça, deu de ombros e deu voz aos seus pensamentos:
— Eu iria perguntar o quão arriscado isso não deve ser, mas acho que prefiro ficar sem saber a resposta. Não temos muita escolha a não ser irmos atrás deles, ou temos?
Em resposta, a princesa sacudiu a cabeça, em negativa e segurou a mão dele por debaixo da mesa, apertando-a de leve, buscando conforto mútuo.
— Eu tenho uma pergunta de ordem etimológica — Cecília começou a falar. — Por que chama eles de selvagens?
— Porque são canibais — Abner respondeu.
— Não são canibais — Dante retrucou, consternado.
— Comiam humanos no café da manhã — Abner prosseguiu defendendo sua tese.
— Só seria canibalismo se eu e você fossemos da mesma espécie — Anastasia explicou para o moreno. — Não seria canibalismo se eu jantasse sua coxa com molho barbecue. É só a cadeia alimentar.
— Percebe que isso continua não sendo nada tranquilizador? — enquanto humano que era, Abner pontuou.
— Vida, ninguém vai te jantar — Cecília interviu, sem muita paciência. — Eu acho — completou em um sussurro e sacudiu a cabeça, retornando ao assunto que ela própria tinha levantado. — Minha questão é: do jeito que vocês falam, eles parecem ser, tipo... sabe?
— Eu, particularmente, acredito que seja só um estereótipo ruim — Dante explicou. — Chamamos de "selvagens" porque nos consideramos mais evoluídos, por usar roupas, comer comida cozida e todo o resto. Isso parece denunciar algo ruim sobre nós, não sobre eles.
— É uma linda filosofia, mas eu prefiro manter meus dois pés bem atrás — Joe pronunciou-se.
— Eu ainda sou um tanto traumatizada com as histórias que me contavam quando era criança — Ana confessou —, mas mal posso esperar para encontrar com um deles!
— O que nos leva a outra questão: onde esse povo se escondeu? — Joe lançou o grande problema sobre a mesa. — Eu não faço nem ideia de por onde começar. Acho que podemos eliminar a costa. Seria muito arriscado. E as proximidades das bases militares. Mas, eliminando isso, resta só 99,8% do oceano.
— Eu tenho um palpite — enunciou Melina, atraindo todos os olhares mais curioso e os ouvidos mais atentos para ela —, mas não sei se é dos melhores.
— Estamos aceitando qualquer coisa — falou Abner.
— Uma vez eu perguntei pro meu ti... — sacudiu a cabeça em negativa. —Pro Calisto — corrigiu-se. — Sobre a Fossa das Marianas. Sobre a possibilidade de estarem escondidos lá, já que é um local praticamente inacessível. Seria um esconderijo perfeito.
— E o que ele disse? — Ana indagou, ansiosa.
— Só me perguntou se eu tenho ideia do tanto de pressão que há lá. Ele mesmo nunca desceu.
— Sem querer ofender, mas... — Joe começou.
— Se ele não conseguiu descer, como eu chego lá? — Melina completou. — Ele é um nadador muito melhor do que eu... — explicou para Abner e Ceci. Suspirou pesadamente, levou um dos joelhos para perto do peito, colocando o pé descalço sobre a cadeira em que estava sentada e passou a mão pelos cabelos. — Não vou conseguir de primeira, disso eu tenho certeza — concluiu.
— Vale tentar. O pior que pode acontecer é chegar ao fundo e não encontrar ninguém — Dante deu seu melhor para motivá-la ao seu próprio modo, deixando de acrescentar a parte em que diria: "ou morrer por causa da pressão."
— E você tem a gente — Anastasia acalentou-a de modo muito mais acalorado que seu irmão. — Não vamos te deixar ir sozinha.
— Tudo bem... Mas onde isso fica? — Abner perguntou.
— Perto da Austrália, eu acho — Joe respondeu.
— As Filipinas e o Japão estão mais próximos — Dante completou a resposta com base nos conhecimentos que suas viagens a trabalho lhe deram.
— É longe — Maria Cecília resumiu.
— Muito longe... — Melina pensou alto. — Eu posso ir nadando se...
— Nem pensar que tu vai pro outro lado do mundo, sem ter a menor ideia de quanto tempo vai ficar por lá, e eu vou ficar aqui — Joe interrompeu. — Eu vou com você até o mais perto possível.
Sabia que de jeito nenhum o faria mudar de ideia e estava contente com isso. O cenário era caótico e dava pouco espaço para esperanças, no entanto, tê-lo ao seu lado fazia tudo parecer pelo menos um tanto melhor.
— Tudo bem, vamos viajar, então — Melina afirmou, colocando uma mecha atrás da orelha direita. — Isso vai dar trabalho... Temos que ver como vamos fazer pra sair desse país, em primeiro lugar.
— Não podemos nem pensar em ir de navio — Dante alertou.
— Mas não temos documentos. Não temos como pegar um voo como se fossemos pessoas normais — Anastasia lembrou. — É muito mais fácil entrar clandestinamente em um navio do que em um avião.
— Se a gente passar no Rio antes, eu posso dar um jeito nisso — Abner sugeriu, olhando para seu melhor amigo com um olhar criminal que era típico dos dois parceiros.
Joe assentiu, igualmente criminoso. — Acho que eu, Abner e Dante podemos começar a planejar e organizar as coisas por aqui. Vamos precisar de mais algumas roupas, um kit de emergência e pelo menos um pouco de comida pra deixar reservada. Vocês três podiam ir comprar. Cecília conhece a cidade.
— Por mim, tudo bem — Maria concordou. — A gente pode ir amanhã de manhã? — perguntou, dividindo o olhar entre Ana e Mel, que sinalizaram positivamente com a cabeça.
— Acho que três dias são o bastante pra gente se organizar com calma e sair daqui — disse Melina.
— Sim — Joe concordou —, mas acho que agora temos uma questão mais urgente — concedeu a si mesmo o tempo necessário para uma pausa dramática —: quem vai lavar a louça?
— Eu lavo — prontificou-se Anastasia, já levantando-se de sua cadeira, recolhendo os pratos da mesa.
— Eu te ajudo — ofereceu-se Abner.
— Preciso fazer minha própria lista de compras — comunicou Cecília, levantando-se da mesa e dirigindo-se para onde já sabia que encontraria papel, caneta e silêncio para pensar, caminhando pela casa como se fosse da família.
— Eu queria ajudar, mas preciso dormir — Dante explicou-se. — Estou mais cansado do que achei que estaria.
— Também já vou deitar — Melina disse para todos os que restavam. Olhou para seu namorado, com um aceno de cabeça que dizia "vamos?", e deixou a sala de jantar.
Subiram as escadas sem pressa, entrou em seus trajes de dormir com calma e dirigiu-se ao banheiro. Pôde escutar Joe abrir o guarda-roupas enquanto ela lavava seu rosto com água fria.
— Vou conversar com meu pai e já deixar meu avô preparado psicologicamente pra não me ver pelos próximos meses. — Ouviu-o falar do quarto, casualmente.
— Já pensou em alguma desculpa? — perguntou, com a escova de dentes na boca.
— Não, ainda não. Mas vou pensar em alguma coisa convincente.
Melina não podia deixar de sentir-se mal por, mais uma vez, ser o motivo de ele estar se afastando de sua família por tempo indeterminado. Ele até podia ser um excelente ator, porém, ela via por debaixo de sua pele o quanto aquilo lhe cortava o coração.
— O que o Abner vai dizer pro avô dele? — indagou, mudando sutilmente o foco do assunto, cuspindo na pia e enxaguando a boca logo em seguida.
— Eu não sei — confessou o rapaz, entrando no banheiro da suíte, pegando sua escova de dentes e a pasta que já estava aberta em cima do mármore. — Mas ele nunca fez muita questão de saber — deu de ombros.
— O quanto você conhece o Seu Josias? — deu espaço para ele na pia.
— O que quer dizer? — balbuciou com a boca cheia de espuma.
— Não acha ele meio estranho? Que tipo de ser humano normal da cabeça dá uma arma nas mãos de um garoto de quatorze anos?
— Um militar aposentado paranoico.
— Ele me olhou estranho quando me viu pela primeira vez.
— Eu disse: ele é paranoico — finalizou seu argumento, finalizando também a escovação.
— Se você diz — desta vez, Melina quem deu de ombros e, em um gesto automático, pegou a toalha de rosto e a deu a Joseph, que a aceitou.
— Deveria tirar um tempo pra conversar com ele — complementou, vendo que ela ainda não estava totalmente satisfeita. — Pergunta como ele veio parar aqui nesse país. Vai entender um pouco.
— E como ele veio parar nesse país?
— Não vou contar. Ele contando é bem mais interessante — encerrou o assunto, sem dar lugar a objeções. Puxou-a para um abraço, beijando o topo de sua cabeça. — E tu? Como tá? Nem deu pra gente conversar direito.
— Cansada — respirou fundo. — Fisicamente cansada. — Ele franziu o cenho e examinou-a com os olhos. Antes que ele pudesse dizer algo, ela completou: — Só preciso dormir. Amanhã já vou estar melhor.
— Tem certeza disso? — Ela assentiu. — Tudo bem — ele cedeu —, amanhã a gente conversa com mais calma.
•
A manhã do dia que se seguiu poderia ser tida como algo normal — três amigas indo às compras —, se não fosse o motivo que as colocava em cima daquela ponte, atravessando a fronteira. Cecília havia argumentado por um bom tempo sobre como a cidade natal de seu namorado era péssima para se comprar coisas. Ao fim, ela as convenceu de que ir rapidamente à um shopping decente no Uruguai valeria mais a pena. E lá estavam elas, com o porta-malas lotado de sacolas, rumo ao último destino.
Cecília partiu em busca do que ela considerava viável como remédio enquanto as duas sereias foram à farmácia comprar o que Joe havia chamado de "remédio de verdade" e outras coisinhas que se provariam úteis em situações emergenciais.
Enquanto passeavam pelos corredores de cosméticos, fazendo hora para que Cecília as encontrasse naquele estabelecimento, como combinado, Anastasia perguntou baixinho:
— Você está bem?
Apesar da comum ordem das palavras, Melina sabia que o interesse dela não era superficial. Poderia dizer apenas pelos olhos preocupados da garota, que a encarava, esperando uma resposta.
— Depende. O que exatamente quer saber?
— O Dan me falou hoje cedo — não precisava ouvir o resto da oração para saber do que se tratava o assunto — que ainda não se sente cem por cento.
Melina assentiu, calmamente. Não podia demonstrar o mínimo de pânico ou Anastasia também entraria em pânico.
— Eu sei... Eu me sinto... fraca. Mas eu tô melhor do que estava ontem — completou antes que o desespero tomasse conta da menina —, juro. Só está demorando um pouco mais pra eu me recuperar do que eu achei que demoraria.
— A Ceci sabe?
O caixa encarava-as, provavelmente imaginando que a qualquer momento elas sairiam correndo com a cesta cheia de produtos, sem pagar, já que já havia um bom tempo que as duas transitavam pelo local.
— Eu sei o quê? — indagou Maria Cecília, surgindo na ponta do corredor de hidratantes e sabonetes, como um fantasma. Retornava a elas com as mãos cheias de sacolas biodegradáveis, recheadas de coisas verdes, como se tivesse acabado de voltar da feira.
— É melhor a gente conversar lá fora — Melina falou, dirigindo-se ao caixa.
— Tudo bem — concordou a semideusa —, já vou ligando o carro enquanto vocês pagam — saiu da loja, deixando-as só outras vez.
Quando a compra já estava efetuada, deixaram elas também o local, indo em direção ao carro que estava parado do outro lado da rua, de vidros fechados, bagageiro cheio e pronto para partir de volta para casa.
Melina nem mesmo se deu ao luxo de ficar surpresa com o que aconteceu a seguir. Surpresa seria se nada de mal lhes acontecesse. Porém, deu a si mesma o direito de ficar irada quando Anastasia tropeçou na calçada, sendo pega desprevenida pela informação que lhe veio, arregalou os olhos e relatou:
— Tem alguém se aproximando — parou por mais alguns segundos para pensar e declarar com total certeza do que dizia: — Athenion. Athenion está por aqui.
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