CAPÍTULO XVII
Melina não dormiu no quarto de Joe naquela noite — não dormiu em quarto nenhum, na verdade —, não queria olhos julgadores pesando em suas costas durante toda a madrugada. Sabia bem o que ele pensava daquela sua ideia inusitada. Não poderia mudar a mente dele e ela também não conseguiria mudar a dela. Teriam de viver com aquilo. Porém, por pelo menos uma noite, queria dar tempo para que seu sangue esfriasse, para evitar mais um possível desentendimento.
Então ela ficou do lado de fora da casa. Sentada na beirada da piscina, com os joelhos próximos ao seu coração, vigiando a lua que a vigiava, dizendo para si mesma que estava fazendo a coisa certa. Não poderia ser de outro modo, de outro modo não seria correto. Ela sabia bem que, enquanto seu tio estivesse à procura da pérola, a desolação continuaria batendo à sua porta. Era uma questão de tempo até que conseguisse entrar. Também não poderia ignorar a existência da coisa, por mais que quisesse. Havia percebido isso naquela sala branca, no fundo do Mar Egeu.
Não importava o que fizesse, todos continuariam a olhar para ela em busca de uma resposta. Poseidon queria uma resposta. Calisto queria uma resposta. E se ela ousava dizer que pretendia ser rainha de alguma coisa, então tinha que ter uma resposta para seu povo. Para seu azar, nunca foi de seu feitio ser básica. Se queriam uma resposta, ela lhes daria um manifesto. Iria destruir a pérola.
Esperançosamente, a longo prazo, aquilo viraria a mesa a seu favor.
Mas o elefante na sala era uma grande pergunta, estampada em todos os cantos de sua mente, tirando sua paz e queimando todos os neurônios que tinham lhe sobrado. A pergunta era: "Como?"
•
Porém a insônia não fez uma única vítima naquela madrugada. Joe também não conseguia dormir e, se ele teria de ficar acordado, não ficaria acordado sozinho. Abner, sentindo a atmosfera que havia se instalado na casa, não foi embora. Sua intuição estava certa, pois foi tirado da cama no meio da noite e arrastado para a cozinha para cumprir seu papel de irmão do coração — ouvir lamúrias enquanto comiam tudo o que tinha na geladeira.
Depois de reclamar por quarenta minutos sobre como Melina era teimosa e cabeça dura, Joseph pareceu lembrar, finalmente, que a pensão em que sua casa havia se tornado estava prestes a receber mais um inquilino — Maria Cecília.
— Vai juntar a mãe de pet com a mãe de planta... — filosofou e suspirou. — Que o universo tenha misericórdia de nós...
— Sim... Ou elas vão se amar ou vão se odiar. Sem meio termo.
— Eu aposto em se amar. Linda faz amizade muito fácil.
— Sem querer ofender, mas o temperamento da sua namoradinha não é nada fácil.
— Muito menos o da sua!
— Esse é meu ponto.
— Ah... — foi obrigado a concordar com o raciocínio. — Quando ela chega?
— De manhã. Pegou o primeiro voo disponível.
Assentiu, sem surpresas. Não esperava nada menos vindo dela.
— Com medo? — perguntou, divertindo-se um tanto ao imaginar o que ela diria assim que pisasse em terras sulistas.
— É claro que sim. E se eu fosse você, também teria. Ela vai voar no seu pescoço.
— Não sou eu quem namoro com ela — deu de ombros. — A obrigação de passar todas as informações era sua.
— Ela vai acabar com minha raça... — olhou para seu amigo, prevendo as palavras que estavam prestes a sair de sua boca e logo implorou: — Por favor, não diga isso.
— Eu avisei — falou pausadamente, com gosto.
— Ela teria vindo muito antes se eu dissesse o que estava acontecendo.
— Sim, mas agora ela está vindo de qualquer jeito. Adiantou o quê?
— Eu sei lá... Só queria ela fora disso. Ela estava quase se formando, sabe? Ela trancou o curso ontem mesmo.
Joe assentiu, sendo preenchido pela culpa de envolver tantas pessoas naquela bagunça.
— Me desculpa.
Abner sacudiu a cabeça em negativa. — Não precisa se desculpar. Ela sabe no que tá se metendo. Eu só...
— Eu sei... Vem, vamos tentar dormir. Você precisa estar descansado pra ouvir o tanto que ela vai gritar com você — brincou, mas os dois sabiam que havia um fundo muito grande de verdade.
•
Horas antes que o sol acordasse, Anastasia acordou. Já era seu hábito acordar cedo, mas não tão cedo. Levantou-se da cama, inquieta, sentindo seu coração bater em um ritmo estranho. Percebeu então que estava reparando demais em como seu coração batia dentro de seu peito. Tentou tomar um banho quente, para ver se resolvia algo, entretanto, mesmo após se banhar, continuava a deslizar as unhas pelas palmas de suas mãos. Foi então que, sem saber, teve a mesma ideia de Joseph — acabar com a noite de sono de outra pessoa.
A vítima escolhida fora seu irmão. Entrou no quarto dele e acendeu a luz. Aquilo foi o suficiente para acordá-lo. Dante sempre tivera um sono leve.
Quando ele acordou, assustado, ela já estava a meio caminho de sua cama. Sem muita alternativa, ele se sentou, coçando os olhos para dissipar o sono, e perguntou:
— Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu... — falou com ar de mistério. — Aconteceu que eu acho que a princesa enlouqueceu de vez.
— Por causa da história da pérola?
— Sim! O que ela tem na cabeça, Dan?
— Eu não sei... Mas o que eu tenho a ver com isso pra você me acordar três horas da manhã, Ana?
— Eu sei lá. Você sempre foi o inteligente da família. Achei que iria ter uma explicação plausível.
— Não sou eu quem quero destruir a pérola. Por que não pergunta pra ela? Ela não é sua amiga?
— Sim. Mas justamente por ela ser minha amiga que eu estou preocupada. Não acho que ela esteja muito bem das faculdades mentais. Ela passou por muita coisa...
— Eu não acho que ela tenha enlouquecido de vez.
— Eu também não quero acreditar nisso, mas vamos lá... Não me diga que não estranhou nem um pouco essa ideia brilhante dela. Eu não posso ser a única do contra.
— Não é. Acho que o Joe concorda com você. Viu a cara que ele fez quando contou o que ela queria fazer?
— Vi... Mas o que você acha?
— A gente não tem que achar nada. Nós dois fugimos do nosso país para apoiar Melina nessa campanha dela para ser rainha e isso não tem volta. Temos que confiar que ela sabe o que está fazendo.
— E se não souber?
— Então estamos condenados. — Aquilo não a acalmou nem um pouco. — Mas se quer mesmo saber o que eu acho, então eu acho que ela realmente sabe o que está fazendo.
— Como tem tanta certeza?
— Por que você está aqui? — respondeu com outra pergunta.
— No seu quarto? — franziu o cenho.
— No Brasil, no meio do nada, na casa de um imigrante viciado em assistir leilão de gado.
Anastasia refletiu por alguns segundos. — Porque o atual rei é um desgraçado.
— Só por isso?
— E por causa dela.
— Eu também... E você a conhece melhor do que eu. Sabe que ela pode ser doida, às vezes, e mesmo assim acredita nela. — Anastasia assentiu. — Alguma coisa nela ganhou a sua confiança e a sua lealdade. Sei que pode parecer irracional, mas tem que confiar no seu coração. Eu sei que seu coração confia nela, mesmo que seu cérebro esteja te dizendo que ela é louca.
— Nunca imaginei que fosse te ouvir dizendo isso. Para confiar no meu coração.
— Nem eu. Mas seu coração é diferente do meu, você é melhor com essas coisas. E, se você acredita nela, eu também acredito — fez uma longa pausa enquanto ela refletia sobre o que ele havia dito. — Agora já pode voltar para o seu quarto.
— Está me expulsando?
— Sim. Por Hipnos, me deixa dormir!
•
Quando o dia amanheceu, todos já estavam de pé, com olheiras e bocejando. Menos Joseph Charles, que não fazia ideia do porquê sua casa estava se tornando a casa da mãe Joana, mas também não se importava com isso. Joseph Bernard estava de pé junto com o estranho grupo de jovens, em partes porque já estava com saudades da carioca estressada, em partes porque queria testemunhar o barraco.
Anastasia e Dante estavam completamente inocentes e despreparados para o que estava por vir, assim como Melina. Quando viu o sol nascer, decidiu que estava disposta a fazer as pazes com Joseph Felipe e voltar à normalidade. Começou sendo cordial, para ver qual seria a reação dele. Quando ele também a tratou como se nada tivesse acontecido, percebeu que já estava tudo bem entre eles. Talvez fosse mais maduro sentar e conversar sobre o assunto, como dois adultos maduros, mas não havia tempo hábil para tal. Resolver aquilo ao próprio modo era mais prático. No momento, a prioridade era outra.
Haviam preparado um café da manhã especial para receber a semideusa. Melina não sabia exatamente o porquê de a presença da garota ter sido requisitada, deduziu que algo tinha a ver com a margaritis. Não acreditava que Maria Cecília soubesse do seu paradeiro, mas, pelo visto, ela deveria ser uma peça essencial daquele quebra-cabeça. Também estava apreensiva para finalmente serem apresentadas. Quando perguntou a Joe como era Cecília, ele lhe respondeu: "Ela e Abner são almas gêmeas", isso não a tranquilizou nem um pouco.
Assim que ouviram o som de pneus passando sobre as pedras que formavam o caminho até a entrada da casa, levantaram-se todos para olhar pela janela. Viram uma garota parda descer do banco do carona, furiosa. Ela bateu a porta do carro com tanta força que seus cabelos lisos, longos e castanhos — quase pretos — voaram com o vento proporcionado pela batida. Ela virou o rosto para a casa, encarando a plateia curiosa, varreu todas as faces ali até encontrar seu alvo; Joe.
Cecília marchou até a porta de entrada enquanto Abner saía do carro, apontava para Joe e passava o dedo indicador pelo pescoço. A garota abriu a porta da sala de supetão, virou o pescoço para o lado, semicerrou os olhos e falou:
— Você — apontou seu dedo acusador para Joe —, seu filho de uma puta! Como você tem a audácia — gritou a última palavra — de voltar pra casa e não me falar nada? Um mês, Joseph Salton, um mês. E você só me procura agora? — andou na direção dele, pisando firme. — Nem uma mensagenzinha dizendo que tava vivo, fazendo e acontecendo sem mim, como... — teve que parar para recuperar o ar. Quando percebeu que Abner já tinha entrado na casa, apontou para ele também. — Vocês dois! De complô! Me excluindo de tudo como se eu fosse uma égua velha, vocês não têm vergonha na cara, não? Eu deveria matar vocês e dar pros porcos do seu Charles comer!
O rosto da garota estava tão vermelho que Melina tinha dúvidas se ela estava exagerando ou falando sério. Decidiu que gostava dela.
— Eu achei que você era meu amigo, mas não... — Cecília prosseguiu. — Antes tivesse me dado um tiro. Melhor do que fingir que eu não existo. É isso que eu sou pra você, não é? Uma zé ninguém. Um nada. Pior que a mosca do cocô do cavalo do bandido. O que foi, hein? Não mereço participar da turma do Scooby Doo? Eu virei uma figurante na sua vida, foi, Joe? Me trocou pelos seus novos amiguinhos? — apontou para o casal de irmãos. — Nada contra vocês, é claro — falou com mais brandura.
— Acabou? — Joe teve a coragem de perguntar.
— É claro que não acabou! Eu vou reclamar no seu ouvido até o fim da sua vida e, quando você morrer, eu vou fazer questão de discursar no seu velório só pra te xingar todinho e eu ainda vou cagar em cima do seu caixão!
— Maria! — interviu Joseph Bernard, quando já estava satisfeito com o escândalo, andou até ela com os braços abertos e a abraçou saudosamente. — Comprei cacetinho daquela padaria que tu gosta.
Inevitavelmente, ela riu. — Golpe baixo! — contestou. — Sabe que eu não tenho maturidade pra chamar pão de cacete.
— Eu sei, eu faço de propósito. Como foi o voo? — casualmente mudou de assunto, levando-a para a cozinha, com um braço passado pelo ombro da garota.
— Tranquilo, seu Zé. Vim pensando em como assassinar seu filho.
— Depois tu mata ele, deve tá morrendo de fome, come alguma coisa e conhece o resto do povo — apontou para Anastasia. — Aquela ali gosta de bicho igual você.
Anastasia acenou para ela, com um sorriso amarelo, um tanto temerosa e assustada com a rápida mudança de humor.
Não contente com apenas um aceno, Cecília foi até a ruiva e a puxou para um abraço apertado, apresentando-se devidamente. Fez o mesmo com Dante, que pareceu desconfortável com tamanha afetividade vinda de uma completa estranha, mas Maria pouco se importava. Em seguida, virou-se para a última desconhecida.
— Você deve ser a tal da Linda.
— Em pessoa! — Melina respondeu.
— Você é quase um mito, sabia? O pateta ali vivia falando de você — apontou com a cabeça para Joe —, mas eu tinha minhas dúvidas se um dia a gente iria se conhecer — falou sem nenhuma pressa, enquanto a analisava com os olhos por tempo o suficiente para deixá-la sem graça. — Amei sua energia! — exclamou, enfim, pegando todos de surpresa e puxando Melina para um abraço.
Todos repararam no suspiro aliviado de Abner, especialmente sua namorada, que soltou sua nova amiga e apontou para ele, dizendo:
— Eu ainda não acabei com você. E nem com você — acrescentou para Joe. Então, assumiu um semblante sério ao correr os olhos por todos os presentes. — Mas vamos ao que interessa — fixou os olhos no semideus. — Por que me chamou aqui?
— Pra comer cacetinho — ironizou, dando a ela um olhar que Melina conhecia bem. Era um olhar que dizia: "É melhor conversarmos depois."
Pagaria qualquer preço para descobrir o quanto Cecília sabia, se ela sabia algo que Melina não sabia ou se ela também estava tão perdida quanto todos. A julgar pelo olhar que a semideusa dirigiu ao de seu tipo, apostou na última opção. De certo modo, aquilo a confortou um pouco.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro