CAPÍTULO XI
O céu estava estrelado — como sempre. Indiferente a tudo o que era diferente, agora, em Anamar. A alta maré fazia com que as rochas se encontrassem com as águas com violência. Calisto sempre considerou essa simples e natural ocorrência como uma das coisas mais belas a se admirar na natureza.
Uma vez leu que o mar é um inimigo que os homens se esforçam para amar. Aquilo não tinha como ser menos ou mais verdade do que era. O oceano nunca prometeu paz à terra. Eventualmente, pelos próximos dias dos homens e, talvez, até depois que eles se forem, aquelas rochas ali embaixo iriam ser derrotadas pela erosão. Mesmo que estivessem ali há milênios, lutando para se manterem firmes, uma hora, iriam perder a guerra. Não há nada que se possa fazer quando o mar avança contra você.
Era inútil lutar contra a natureza.
Sempre teve isso como regra de vida.
Qualquer esforço para romper o natural resultaria em fracasso.
E Calisto odiava qualquer forma de fracasso.
— Majestade. — Ouviu a voz de Athenion o chamar e viu-se obrigado a desviar os olhos das ondas para olhar para ele.
Assistiu-o prestar uma reverência e parar com ambas as mãos atrás das costas, nos primeiros degraus da arquibancada do teatro. Estava obviamente cansado, havia acabado de chegar de sua viagem e, pelo visto, havia ido direto ao palácio, em plena madrugada.
Indicou com a cabeça para que ele terminasse de subir.
— Imaginei que estivesse acordado — falou ele, assim que terminou de subir os degraus. Parou com um dos pés no último e outro no penúltimo, apoiando o braço esquerdo na coxa. Olhou para baixo, tentando desvendar o porquê de Calisto gostar daquele lugar e de ficar sentado com uma perna na arquibancada e com a outra balançando no ar. Apenas a um balançar de distância de uma longa queda.
— Como foi a viagem? — perguntou sem o mínimo interesse.
— O de sempre — pulou o assunto irrelevante. — Por que pediu que eu viesse assim que possível? Alguma emergência?
— Não exatamente. Mas tenho uma tarefa especial para você.
— Do que se trata?
— Melina.
O nome da princesa pesou sobre eles enquanto Athenion ajeitava a postura para receber propriamente a sua ordem. Ele tinha plena noção da importância do que estava por vir e das consequências nada agradáveis caso falhasse.
Mas não era o temor o que o movia. Havia algo nele, por baixo da presunção e da amofinação. Algo que havia feito Calisto escolhê-lo para esta missão, em específico. Era aquela obstinação rara de se encontrar. Ele era detentor de uma determinação feroz e palpável e, principalmente, tinha a calma, a frieza e a astúcia necessárias. Na medida certa. Uma quantidade que podia ser controlada e usada. E que frequentemente precisava ser podada, para que não ousasse voar mais alto do que lhe era permitido.
— Ela deixou a caçada — prosseguiu dizendo o rei — e está com Joseph. Preciso que encontre-os e traga-os até mim. Acha que consegue fazer isso?
— Sim, majestade!
— Anastasia e Dante estão com eles. Seja cuidadoso, ou eles estarão sempre um passo à frente.
Athenion respirou fundo e encarou o céu. Aquilo dificultava seu trabalho.
— Tudo bem, irei pensar em algo.
— Vão te passar as informações concretas sobre o último paradeiro deles. O resto é com você. Pode levar quantos homens quiser.
Athenion assentiu, como um bom soldado. — Alguma instrução a mais?
— Não. Mas você parece querer fazer uma pergunta.
Ele gargalhou sem humor. É claro que ele tinha uma pergunta a fazer. A mesma de sempre:
— Como está Chloe?
— Ela está bem. Está dormindo.
— Tenho permissão para falar com ela antes de partir?
— A minha? — arqueou uma sobrancelha. — Eu não me importo. Mas duvido que ela queira.
O governador de Eidon sacudiu sua cabeça, em protesto contra si mesmo, olhando para o chão e então para o horizonte.
Calisto observou com curiosidade enquanto ele parecia travar uma luta interna. Havia mais uma pergunta escondida ali, que o importunava e acabava com a sua tentativa de manter uma boa postura. E, apesar de tentar disfarçar, as últimas palavras de Calisto havia suscitado uma fúria fria naquele homem.
— Por quê? — ele perguntou, enfim.
— Por que eu duvido que ela queira falar com você?
— Por que está transando com ela? — reuniu todo o descaramento que tinha para perguntar.
Calisto arregalou os olhos, considerando aquilo um total abuso da parte do tritão. Poderia repreendê-lo naquele momento. Poderia não responder. Porém, queria saber até onde ele pretendia ir com aquilo. A ira contida nos olhos de Athenion dizia ao rei que há muito ele estava engasgado com aquela questão.
— Porque eu quero — deu de ombros — e porque ela quer.
— Nunca gostou dela. Por que isso e por que agora? É algum tipo de provocação ridícula? Eu fiz alguma coisa para que me odiasse tanto, Calisto?
— Se realmente pensa que eu tomo decisões pessoais pensando em você, então é mais prepotente do que eu achei que fosse. E, não. Não te odeio. Sou completamente indiferente à sua existência.
— Ela não te merece — cuspiu cada palavra. Talvez pelo cansaço, por estar sem dormir ou por qualquer outra razão, ele perdeu o controle sobre sua própria língua.
Calisto queria rir, mas se conteve. Athenion era assim sem suas máscaras. Uma enorme e mimada criança que odiava não estar no centro de tudo. Ele poderia dizer a si mesmo que Chloe era o amor de sua vida desde sua juventude e que por isso estava em surto. Mas, no fundo, Calisto sabia que não era essa a questão. Na realidade, Calisto tinha quase absoluta certeza de que Athenion nem mesmo amava aquela sereia. Apenas não sabia lidar com a ideia de ser rejeitado. De não ser o melhor disponível. Algo dizia ao rei que aquela necessidade doentia de validação e aprovação ainda seria sua ruína.
Entretanto, no presente momento, aquela necessidade lhe era útil. Ele faria o que lhe mandassem fazer. Era natural dele o impulso de provar para todos o quanto era bom em tudo o que se propunha a fazer.
— Ela não é nenhuma adolescente imatura. É uma mulher adulta capaz de decidir o que merece ou não.
— Não... Ela é só a pessoa mais disponível para ser manipulada por você.
— Eu sou um homem paciente, Athenion. Mas eu realmente aconselho que saia daqui agora mesmo. Ao contrário do que pensa, você não é insubstituível.
Athenion apenas concordou com a cabeça, contrariado e em silêncio. Foi em silêncio também que ele partiu, deixando Calisto sozinho outra vez. O rei se ergueu, olhando uma última vez para as ondas lá embaixo antes de saltar para água e ser abraçado pela única casa que conhecia — o oceano.
•
Scylla sempre fora uma grande apreciadora da rotina.
Suas manhãs eram resumidas em acordar antes do sol, nadar, ir até a cidade, fazer compras para o café da manhã e retornar para a quietude de seu lar. Não havia mudado coisa alguma em sua rotina quando Calisto se tornou rei. Continuava fazendo as mesmas coisas, todos os dias, ignorando completamente o caos do país, até Agatha bater à sua porta em uma madrugada.
— O próximo navio para Térpsis só sai em uma semana — contou quando chegou em casa, colocando suas compras matinais sobre a mesa — e ainda temos de arranjar um jeito de te mandar até o porto.
O tilintar da cortina de miçangas foi ouvido quando Agatha entrou no cômodo.
— E o seu amigo?
— Ele pode te levar até a triagem, mas só dois dias antes. Teria de passar mais de vinte e quatro horas escondida. É muito arriscado.
— É a melhor opção — rebateu, puxando uma cadeira para se sentar.
Scylla colocou uma das mãos na cintura. — A melhor opção é sair do país.
— Não vou fugir. Vou ficar e lutar. Foi para isso que eu fui criada.
— Existem diferentes formas de se lutar uma guerra. Saber a hora de recuar e esperar é uma delas.
Usou o tom mais maternal que conseguiu. Nunca teve filhos, mas tinha conhecido a mulher à sua frente quando esta ainda era uma garotinha. Apavorava-a a ideia de vê-la ser pega e presa — ou coisa pior.
— Precisam de mim em Térpsis. Sabe disso. São crianças rebeldes com muita ousadia e pouco conhecimento de estratégia militar.
— E o que você pode fazer quanto a isso? Transformar jovens mimados em soldados? Não me parece uma tarefa muito fácil.
— Eu devo isso à ela, Scylla — argumentou, com olhos pesarosos.
Era aquele olhar — aquela melancolia, aquela dor que seria perene. Era aquilo que impedia Scylla de apagá-la e colocá-la no próximo navio para a Oceania. Conhecia bem aquele terror e aquela culpa: ver a pessoa que você jurou proteger ser morta na sua frente. Não havia um dia em que não pensasse em como havia falhado com Nice. Tinha certeza de que o mesmo passava pela cabeça de Agatha.
Quando acordava durante a madrugada e a encontrava acordada também, nenhuma das duas precisava dizer nada. Tinham o mesmo motivo para estar de pé. A mesma eterna assombração sobre os ombros e a certeza de que aquela sensação jamais as deixaria.
— Escute, eu fiz uma promessa à Melina. De que ela teria apoio quando retornasse. Não vou falhar com ela também.
Scylla tomou uma boa quantidade de ar, sabendo que não haviam argumentos capazes de fazê-la mudar de ideia. Havia puxado aquela garra de sua mãe.
— Se é o que quer, tudo bem — puxou uma cadeira para se sentar também. — Vamos tomar café.
•
Uma piscina nunca, na história, parecia ter demorado tanto para encher. Mas, enfim, estava cheia! E Melina e Anastasia já estavam com suas malas prontas e perfeitamente agasalhadas. Saíram do quarto carregando suas bolsas de viagem, preparadas para o show de atuação que teriam de dar para Joseph Charles.
Assim que desceram as escadas, encontraram-o na sala, assistindo o jornal, como fazia todos os dias. Assim que as viu, ele virou o pescoço para analisá-las melhor e perguntou sem rodeios:
— Aonde vão arrumadas assim?
— Anastasia nunca foi em Gramado — respondeu Melina —, a gente vai dar um pulinho lá, pra visitar. Só uns dois dias.
— Gramado? No inverno? — ele franziu o cenho, desgostoso. — Com tudo lotado de turista abestado?
— Bom, também somos turistas, então... — Anastasia deu de ombros.
O velho virou as costas para ver seu neto, que ainda estava parado ao pé da escada.
— E você e o outro guri vão também?
— Não, Dante amanheceu passando mal, tá de cama — respondeu Joe. — Vou ficar aqui fazendo companhia pra ele.
— E vai deixar sua namorada ir assim, é? Não sabia que é perigoso mulher viajar sozinha desse jeito? Achei que tinha te educado direito, moleque! E se aparecer um doido pra sequestrar as duas?
— A gente vai ficar bem — Melina interviu —, não precisa se preocupar.
— Hm! — ele bufou. — Tá bom, então. Estão levando dinheiro? — Elas assentiram. — Joe! Pega meu cartão lá e anota a senha pra elas — ordenou para o rapaz e voltou a falar com elas. — É tudo caro naquela cidade. Um assalto! Podem usar meu dinheiro, eu já não tenho mais com o que gastar. Guardem o de vocês.
Enquanto Joe não retornava com o cartão, o homem dava dicas à elas sobre onde encontrar lojas mais baratas, quais eram os melhores hotéis e as alertava a não aceitar carona, comida ou bebida de ninguém.
Quando o rapaz voltou, disse ao avô que iria levá-las ao aeroporto da cidade e que já retornava. Despediram-se, guardaram as bolsas no porta-malas do carro e seguiram para seu destino de viagem: a piscina.
Antes que pulassem nela, Melina indagou:
— O que vai fazer com o cartão do seu avô?
— Vou comprar um amplificador novo — parou para pensar se tinha algo a mais na sua lista de compras mental — e um purificador de ar pra colocar no meu quarto. Querem alguma coisa?
— Eu quebrei suas baquetas — informou Melina —, precisa de novas.
— Eu tenho reservas.
— Ah, eu sei. Quebrei essas também.
— Seu avô me emprestou a antiga máquina de costura da sua avó — falou Anastasia —, mas as linhas já estão podres. Se poder comprar novas...
— Okay... Mais alguma coisa, madames?
— Preciso de botas novas — pediu Mel.
— Seu pai comentou que queria trocar o liquidificador — lembrou Ana.
— E a batedeira também — a outra sereia completou.
— E se puder comprar alguns tecidos novos, também, eu agradeceria. Quero fazer uma blusa.
— Aquele desenho que me mostrou? — Melina perguntou e Anastasia concordou. — Compra rosa bebê, vai ficar lindo nela. Ah! Eu também queria um... — Sua fala foi interrompida por Joe, que a empurrou para dentro da piscina.
Antes que pudesse ser a próxima vítima, Anastasia também pulou.
— Ótimo! — ele exclamou. — Ninguém quer mais nada.
— Eu ia dizer que queria chocolate! — insistiu Melina, assim que emergiu sua cabeça para fora da água. Escorou-se na bordar, cruzando os braços sobre as beiradas de madeira.
— Uh, eu também quero! — avisou Anastasia, surgindo ao lado dela.
Ele riu, rendido. — Tudo bem, eu compro.
— Agora, sim! Lista de compras encerrada — anunciou Melina.
— Vai dirigir pra despistar seu avô? — perguntou Ana e ele assentiu.
Agachou-se sobre seus tornozelos para falar melhor com elas e tocou a mão de Melina e acariciou sua pele com o polegar.
— Tem certeza de que vão ficar bem sem comida?
— Tenho, não se preocupe — ela o confortou. — Qualquer coisa, eu faço o Dante me ouvir.
Ele assentiu, levantando-se e pegando o controle da cobertura. Ligou-a e os três observaram ela deslizar em direção às duas garotas. Antes que chegasse até elas, Melina lhe dirigiu a palavra uma última vez antes de imergir com Anastasia. Sorriu e se despediu, dizendo:
— Te vejo em dois dias.
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