Capítulo IV
Ainda me sinto exausta, quando acordo com batidas incessantes na minha porta. Imediatamente, minha mente é tomada pelas imagens daquela cena lamentável que fui obrigada a ver e, além de indignação, sinto vergonha também.
Levanto e corro até a porta e, assim que abro a porta, deparo-me com uma moça bem jovem, de cabelos escuros, olhos azuis e sorriso acanhado, que não deve ser mais velha do que eu. Ela perde alguns segundos me encarando com espanto. Esse é o efeito que meus olhos estranhos causam.
— Bom dia, Vossa Graça — cumprimenta-me, fazendo uma reverência exagerada. — Meu nome é Carolina e fui escalada para ser sua criada no que for necessário.
— Criada? — devolvo, erguendo uma sobrancelha.
— Sim, senhorita. Minha primeira função é ajudá-la a se aprontar para o café da manhã.
O jeito como ela esfrega as mãos uma na outra e não para os pés no chão, evidencia que ela está muito nervosa, mas decido não tocar no assunto para não deixá-la ainda mais desconfortável.
Ela me encaminha até a penteadeira e me senta no banquinho. Fico me olhando no espelho, enquanto ela some por alguns instantes. Ouço o som de coisas caindo no chão, acompanhado de um xingamento em voz baixa e não contenho uma risada. A garota está completamente perdida.
Dentro de pouco tempo, ela volta, trazendo consigo uma escova de cabelo e uma caixa e começa a pentear meus cabelos.
— Não seria melhor eu me vestir primeiro? — pergunto, mirando-a pelo reflexo. — Senão vai estragar o que você vai fazer no meu cabelo, certo?
— Ótima ideia. — Sorri, puxando-me pelo braço até o guarda-roupa.
Ao abrí-lo, vejo-o completamente vazio.
— E o que a senhorita vai vestir? — pergunta-me, como se eu soubesse a resposta.
— Eu trouxe algumas roupas de casa — explico, pegando a minha bolsa.
Abro-a e coloco meus vestidos sobre a cama. Carolina faz um esforço tremendo para esconder sua expressão de descontentamento, mas não se sai muito bem.
— A senhorita não pode vestir estes trajes. Não são apropriados para a grandeza de seu título.
Agora é a minha vez de demonstrar descontentamento. Quem costurou estas roupas fui eu. Ela devia ter um pouco mais de respeito pelo trabalho alheio.
— Essas roupas são totalmente inadequadas — diz, com desdém, segurando um dos meus vestidos.
— Esses vestidos foram feitos por mim — defendo-me, com as mãos na cintura.
Vejo o terror tingir o rosto da garota imediatamente e preciso suprimir a vontade de gargalhar ao vê-la gaguejando, tentando se explicar.
Então ela se senta sobre a minha cama e cobre o rosto com as mãos.
— Elas têm razão. Eu sou um desastre mesmo — resmunga, com a voz embargada pelo choro.
Sinto-me culpada por ser a causadora do desespero dela. Eu queria apenas fazer uma brincadeira, não acabar com a autoestima da garota.
— Eu só estava brincando, Carolina. — Apresso-me em explicar e me sento ao seu lado. — Eu não quis te ofender.
— A senhorita não ofendeu, só disse a verdade. — Funga. — Eu não nasci para isso. Todas as outras criadas estão certas quando dizem que eu não tenho a menor vocação para isso. É melhor eu ir embora e chamar uma pessoa mais capacitada.
Ela se levanta e caminha apressada até a porta, mas corro e consigo me colocar em frente a ela, impossibilitando sua saída.
— Você está certa — admito. — Essas roupas não são adequadas para uma condessa, mas eu não sei o que vestir. Na verdade, eu não sei nada sobre esse negócio de nobreza, porque eu descobri ontem que faço parte disso. Para ser bem honesta, eu estou morrendo de medo, Carolina. — Minha voz agora não passa de um sussurro. — Você pode me ajudar a entender isso tudo?
Sua expressão assustada se abranda um pouco, como se meu discurso surtisse efeito. É a mais pura verdade. Eu preciso de ajuda para entender como isso tudo funciona, sem parecer uma completa idiota e ela o fará sem me julgar. Pelo menos, não depois de descobrir que ela é tão insegura quanto eu.
— É claro, senhorita. Será uma honra. — Sorri, secando as lágrimas.
— Então comece parando de me chamar de senhorita.
Ela acena, concordando, e deixa o quarto para ir atrás de algo para que eu possa vestir.
— A senhorita está linda! — exclama, levando as mãos ao rosto, como se estivesse emocionada com o resultado de todo o seu trabalho.
Também não é para menos. Ela fez praticamente um milagre!
Observo a minha imagem pelo espelho e quase não me reconheço. Meus cabelos estão soltos, mas ao invés do liso de sempre, cachos grandes e volumosos caem como uma cascata pelos meus ombros. A maquiagem, discreta, destaca meus olhos — não que eles precisem de maquiagem para se destacarem — e o vestido azul, sem mangas e que cobre meus joelhos, deixa-me elegante e refinada. Isso para não mencionar os brincos de pérolas — de verdade, não aquelas falsas que a minha mãe usa — e o bracelete prateado.
Batidas na porta me alertam que é hora de sair do quarto e enfrentar a realidade. Calço os sapatos de salto que, para minha sorte, não são muito altos, e encaro a moça.
— Me deseje sorte — peço, em voz baixa, abraçando-a.
Ela retribui, tomando cuidado para não estragar meu cabelo.
Finalmente abro a porta e encontro Aldo me esperando. Ao me ver, ele parece ficar surpreso.
— Bom dia, Helena. Vamos? Temos um dia cheio.
Acompanho-o ao longo do corredor e ele vai me contando histórias sobre o palácio e seus antigos moradores. Tento me esforçar para acompanhá-lo, tanto nas informações, quando no passo, mas meu deslumbramento e o sapato me atrapalham bastante.
Por fim, chegamos à sala de jantar, onde várias pessoas já estão sentadas à uma mesa enorme. Sobre ela, há comida suficiente para alimentar o meu vilarejo pelas próximas semanas.
— Bom dia, senhores. — Aldo chama a atenção de todos. — Esta é a Helena, última descendente da família Loyola de Albuquerque e representante do condado na corte.
Sem saber o que fazer, apenas dou um tchauzinho.
— Este é Saulo, membro do marquesado na corte e sua esposa Paloma — diz, apontando para um homem negro, careca e muito sorridente, que não devia ter mais do que quarenta anos e uma mulher, também negra, com cabelos cacheados e muito bonita. — Este é Sérgio, nosso visconde, sua esposa Joice e sua filha Morgana. — Ele aponta para um senhor de uns cinquenta anos, calvo e de cara fechada, sentado ao lado de uma mulher morena de feição nada simpática e uma jovem deslumbrante, que parece ser um pouco mais velha do que eu, mas que, assim como seus pais, também não parece ser nada cordial. — Por último, mas não menos importante, Olga, a baronesa mais simpática de todo o reino.
— Não seja indelicado, Aldo. Todos sabemos que eu sou a única baronesa deste reino.
A senhora, de aproximadamente setenta anos, sorri e me chama para sentar ao seu lado. Obedeço, após Aldo me dar seu aval.
— Você é a cara da sua mãe, menina! — exclama, examinando-me. — Com exceção dos olhos, é claro, que são lindos, por sinal.
— Obrigada — digo, sorridente.
— Seja bem-vinda, Helena — diz o marquês. — Espero que tenhamos uma reunião tranquila e que traga bons frutos para o reino.
— Assim eu espero — respondo, pensando que, na verdade, tudo o que quero é voltar logo para a minha casa.
Mesmo que faça apenas um dia que estou longe da minha família, sinto muita falta deles. Nunca estive longe por mais do que algumas horas e, por mais que o todos os acontecimentos do último dia tenham me deixado um pouco dispersa, a saudade é grande.
— O duque teve um contratempo e só chegará depois do almoço para a reunião — Aldo me explica, sentando-se também e se servindo de uma xícara de café. — Até lá, você estará livre para conhecer as dependências do palácio.
Não sei se isso é bom ou não. Por um lado, queria poder adiar essa reunião por mais tempo, porque me sinto intimidada entre tantos nobres e não sei como agir perto deles. Por outro, quero que isso acabe o quanto antes.
— Posso conhecer os jardins? — arrisco.
— É claro, minha querida — diz a baronesa. — Depois do café eu posso te acompanhar, caso você queira a companhia de uma velha que adora conversar.
— Eu vou adorar.
Terminamos o café da manhã sem grandes novidades e limito-me a responder as poucas perguntas que o marquês e a baronesa me fazem — as únicas pessoas que parecem se importar com a minha presença naquela mesa.
Por mais que eu tenha dificuldade com o salto, preciso fazer um esforço sobrehumano para acompanhar os passos lentos da velha senhora até os jardins. Queria poder descalçar meus sapatos e correr até lá, porque a ansiedade por conhecer o que tenho certeza que será minha parte preferida do palácio não cabe em mim.
Quando finalmente chego lá, deparo-me com a visão mais linda que eu, uma apaixonada por jardins, poderia ter. Enquanto eu passava por aqui, ontem, de dentro do carro, não pude ter a noção exata de toda a exuberância desse lugar. É maior, mais colorido, mais exótico e muito mais bonito.
Sem conter minha empolgação, deixo a senhora para trás e corro na direção do aglomerado de flores — algumas que eu nunca vi — e ajoelho-me no chão, depois de levantar a barra do meu vestido.
— Vá com calma, querida — alertou-me a baronesa. — Você precisa estar apresentável para a reunião.
Vejo-a sentar em um banco de ferro branco com arabescos decorativos e, contra a minha vontade, levanto do chão e me sento ao seu lado. Depois da reunião eu voltarei aqui para dar a devida atenção a este jardim encantador.
— Eu te peguei no colo, minha querida, quando você ainda era Aurora. — Ela sorri e segura minhas mãos entre as suas. — Você se tornou uma mulher tão linda. Seus pais se orgulhariam tanto de você.
Vejo emoção em seus olhos. Ela tinha uma relação muito próxima com eles, sem a menor dúvida.
Tento parecer educada, enquanto ela me conta várias histórias sobre eles, mas a verdade é que não consigo sentir nada por essas pessoas. Meus pais estão vivos e mal vejo a hora de voltar para casa.
Não me contenho e acabo contando a ela sobre a minha família. Falo sobre a minha mãe e seu gênio difícil, sobre meu pai e sua paciência sem fim, sobre Aristides e seu jeito zombeteiro e sobre Jonas, claro, que é o melhor amigo que alguém poderia ter.
— Estou curiosa para conhecer as pessoas que te criaram tão bem.
— Eles são maravilhosos, mesmo!
Só me dou conta do horário quando somos chamadas para o almoço e, depois de uma refeição deliciosa, seguimos até a sala de reuniões.
A sala não é muito grande. A decoração fica por conta da grande mesa redonda em madeira de lei e do retrato do rei Plínio III, pendurado na parede. Tenho a impressão que o vazio na sala de dá para evitar distrações nos momentos de decisões importantes para o reino.
Aldo já tinha me explicado por alto sobre a dinâmica da votação. O voto de cada membro equivale a seu grau hierárquico na linha de nobreza. O voto do duque equivale a cinco votos, o do marquês a quatro, o meu a três, o do visconde a dois e da baronesa a um.
Tomo meu assento e um silêncio constrangedor paira sobre o ambiente. Não consigo conter meu nervosismo e bato os pés ritmadamente sobre o assoalho polido, o que desperta a impaciência do Visconde. Não que ele diga alguma coisa, mas suas bufadas desrespeitosas e seus olhares hostis na minha direção não escondem que ele, definitivamente, não foi com a minha cara.
Estou a ponto de quebrar o silêncio, quando a porta se abre e faz isso no meu lugar.
Um rapaz bem bonito e jovem, que não deve ter mais do que vinte e cinco anos, de postura distinta, entra apressado e se senta na cadeira vaga ao meu lado, mas não parece notar a minha presença.
— Me perdoem pelo atraso. Tive um contratempo — explica-se, direcionando suas desculpas aos demais e só então, olha para mim. Ele me encara por alguns segundos e continua: — É um prazer conhecê-la, Helena. Eu sou Henrique, o último membro desta corte.
Não consigo conter a surpresa, nem a vergonha que esta apresentação me causa, porque, de imediato, reconheço sua voz.
Ele é o homem da cozinha.
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Segura essa vergonha.
Beijos e boa semana <3
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