2 - Wells
Era uma perfeita ironia do destino que a cidadezinha para qual eu fui enviada se chamar Wells, ou bem em português. Bem, era tudo o que eu não estava me sentindo no momento.
O Sr. Jenkins não me acompanhou no voo. O advogado tinha mil e umas coisas para tratar no Brasil. Não precisei fingir o tempo todo que estava superando e respirei aliviada por estar em um lugar em que ninguém me conhecia.
Desembarquei em Bristol e o motorista que o Sr. Jenkins contratou para mim acenou de longe, segurando uma plaquinha com o meu nome. O homem se esforçou muito em puxar assunto comigo, mas desistiu depois que eu não liguei muito.
Passei boa parte da viagem até Wells olhando as montanhas e a floresta densa que cercava cada lado da estrada. Um arrepio passou pelo meu corpo e o motorista, muito gentil, desligou o ar condicionado.
― É o Parque Estadual. ― Ele disse em inglês. Agradeci mentalmente aos meus pais pelos anos no cursinho.
― É aberto a visitação? ― Eu perguntou sem tirar os olhos da janela.
― Está fechado há muito tempo. ― O motorista conta. ― Muitos ataques de ursos e lobos.
A ideia me diverte. Não estava mais no Rio de Janeiro, afinal.
A paisagem dá lugar a casas esparsas de alvenaria com pequenas cercas de pedra ou canteiros floridos. Em poucas curvas chegamos ao que eu imagino ser o centro da cidade. O motorista sobe uma ladeira e estaciona em frente a uma casa, não muito diferente das demais, com tijolos vermelhos e janelas brancas.
A senhora parada em frente a casa me olha com interesse. Ela lembra muito o meu pai, os mesmos cabelos escuros e os olhos azuis. Eu sorrio e ela se aproxima. Marie se despede do motorista, enquanto ele me ajuda com as malas. Em poucos segundos, estamos sozinhas.
― Fez boa viagem? ― Ela pergunta.
― Sim, até que deu para dormir bastante.
Marie assente e entra na casa, eu a sigo, sem ter certeza exata do que fazer. Ela não parece muito feliz em me ver.
― Pode ficar livre para usar a cozinha. A televisão não tem muitos canais, mas passa alguns filmes antigos de vez em quando. O seu quarto é por aqui. ― Eu a sigo pelas escadas. ― O banheiro é no final do corredor. Tem toalhas limpas no armário.
Dou uma olhada rápida no corredor. Memorizo a porta do banheiro e duas outras portas além da minha, imagino que uma delas seja o quarto de Marie.
― Vou deixar vocês a sós para desfazer as malas. ― Ela fala.
E assim, sem nenhuma palavra de conforto ou menção ao nome do meu pai, Marie me deixa sozinha.
O quarto em si é bem razoável. As paredes são claras e recém-pintadas e o piso é de madeira boa. A cama antiga comida como a pequena cômoda e a mesa de estudos. Olho deprimida para a prateleira de livros vazia.
Desfazer as malas me toma pouco tempo e faço questão de demorar bastante para escolher um modo de organização. Pego a minha necessaire e um pijama antigo e vou até o banheiro. Deixo a água quente escorrer pelo meu corpo, enquanto eu encaro os azulejos.
As minhas ultima lembrança da minha antiga vida me assaltam. Como as coisas podem mudar tanto em tão pouco tempo? Num baque, como para confirmar as minhas indagações, a água fica gelada e eu dou um grito. Saio do box caindo por cima da cortina com a certeza de que amanhã isso vai virar uma belo de um hematoma.
― Não pode demorar no banho. ― Marie fala quando eu desço. ― O disjuntor desarma. ― Ela explica. ― Está com fome?
― Um pouco. ― Eu me sento de frente para ela na cozinha.
Depois de dar algumas garfadas numa comida desconhecida para mim, eu deixo o garfo de lado, impaciente. Nada mais entra no meu estomago como antes. Cada garfada parece se transformar em cinzas na minha boca.
― Muito diferente? ― Ela pergunta.
― Foi muito bonito. ― Eu desconverso. ― O funeral, quero dizer. Pelo menos foi o que o Sr. Jenkins falou. Ele disse também que a senhora queria estar lá, mas não podia.
Marie engole a comida e estende os olhos em minha direção. Não tenho certeza se ela está realmente me vendo. Por um momento, parece que ela se importa, mas ela torna a olhar para o prato, como se eu não existisse.
― Se não vai mais comer, deveria ir se deitar. ― Ela fala depois de algum tempo. ― Amanhã tem aula cedo.
Não tinha certeza se eu acreditava no inferno, mas se existisse, eu estava nele.
A primeira noite foi difícil. Ventava muito em Wells e a arvore no quintal da trás de Marie chegava quase até a janela do meu quarto, então cada vez que o vento uivava feito um animal, os galhos rangiam na minha janela, implorando para entrar.
Sonhei com o acidente de novo e acordei com um grito preso na minha garganta. Por sorte, Marie não acordou, então eu pude chorar no silêncio do meu quarto sem que ela pudesse se incomodar.
O café da manhã com Marie foi uma agonia silenciosa. Os meus pais eram artistas, então estava acostumada a acordar com música e o som de torradas e ovos sendo feitos. Eric cozinhava, enquanto Luisa corrigia uma pilha de provas na mesa do café.
A lembrança ficou cinzenta na minha mente, enquanto gradualmente a nossa cozinha animada e barulha era substituída pela monotonia silenciosa de Marie.
Não era difícil reconhecer a Escola Secundária de Wells no centro. O complexo de edifícios no alto de uma pequena colina gramada era de longe o maior que tinha na cidade.
Era constrangedor ver os comerciantes irem para a frente de suas lojas ao me ver passar na vitrine ao lado de Marie. Os alunos chegavam a virar o pescoço só para me olhar. Marie me deixou na esquina e se certificou se eu conseguia voltar sozinha.
― Eu vim do Rio de Janeiro, lembra? ― Eu respondi. Marie não entendeu a piada e eu revirei os olhos para a sua total falta de humor.
Já no estacionamento eu fui arrebatada por dois veteranos. Não registrei o nome deles ou as suas boas-vindas muito simpáticas. A funcionária da secretária só faltou derrubar o café, quando eu entrei no cubículo que fedia a poeira e papel velho.
― Você deve ser a Roslyn Satie. Seja muito bem-vinda a nossa escola. ― Ela disse. ― Animada?
― Pode se dizer que sim. ― Minto. Nos últimos dias eu estava me tornando uma excelente mentirosa.
― Aqui estão os seus horários, o Manual do Alunos e alguns formulários para participar de grupos extracurriculares. ― Ela me entrega a papelada. ― Os alunos estão muito ansiosos para ter você. Você pensa em entrar em algum?
A porta de vidro se abre mais uma vez e eu dou graças por ter sido salva de responder a pergunta. A menina alta e muito branca, que mais parece um anjo do que um ser humano, entra e sorri para mim.
― Isabela, pode levar a Roslyn para a sua primeira aula? ― A secretária pergunta. ― Você já estão atrasadas!
Isabela me enche de perguntas sobre o Brasil e a minha antiga vida. Penso se não seria melhor recomendá-la a alguma agência de viagem ou algo do tipo. Depois de responder sobre o clima, a comida, a vida noturna da cidade, ela finalmente se cala e eu agradeço.
― Os meus pais querem me dar uma viagem de presente de formatura. ― Ela recomeça. ― Eu já estava decidida em ir para os Estados Unidos, mas aí veio a notícia que você ia chegar e vindo do Brasil. Mamãe pensou, porque não? Mas claro que o meu pai não está muito feliz com a ideia...
Uma das minhas habilidades excelentes era a capacidade de me desligar por completo de tudo o que havia ao meu redor. Recém-adquirida no hospital. Era fácil comer, dormir, fingir ser um humano normal, quando não se tem ciência exata do que se estava fazendo. Apenas deixando o botão automático ligado.
O meu piloto automático estava permanentemente ligado nos últimos dias.
― A gente se vê depois da aula! ― Isabela fala e volta correndo para o corredor.
O professor de Trigonometria não interrompe a aula ao me ver entrar, mas todos os alunos me seguem com os olhos até que eu assumo o meu lugar na ultima cadeira. Ele enche o quadro com ângulos e função, mas eu não os vejo como antes. A minha mente vaga para um lugar distante que eu ainda não sei aonde é. Um lugar em que eu possa ser feliz.
O sinal do fim da aula toca e fecho o meu caderno ainda em branco. Um garoto toma a coragem e me cumprimenta. Não lembro o seu nome, mas sei que temos aula de química juntos. O magricela consegue ser mais tagarela do Isabela e passa boa parte do caminho falando de como é bom ser do Clube do Xadrez.
― Eu não sei jogar xadrez, então... ― Dou de ombros.
― Não se preocupa, eu posso te ensinar, é bastante fácil de aprender. ―Ele se ilumina.
A aula de química passa mais devagar e o meu piloto automático me impede de prestar a atenção. Os meus ouvidos filtram as palavras, que são apenas zumbidos para mim.
Antes que eu possa perceber as aulas chegam ao fim e eu me demoro no caminho para casa. Casa. Ainda é difícil pensar na casa de Marie como a minha casa e Marie não parecia fazer questão que eu me sentisse assim lá.
No meio do caminho eu fecho os meus olhos e sinto a brisa gelada beijar os meus ombros. Consigo sentir a água gelada envolver o meu corpo. Ouço as batidas na janela e vejo o reflexo de dois rubis na água. Os meus joelhos fraquejam, pois sou golpeada com a cruel certeza de que eu deveria ter morrido naquele dia.
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