Capítulo 01
DA IMENSA VARANDA do meu quarto era possível assistir o sol nascendo a oeste. Essa era a parte mais interessante das minhas manhãs desde que havia me mudado para a Inglaterra. Colinas verdes e planícies cobertas por mata se estendiam além dos muros palacianos, e vez ou outra, imaginava como seria estar lá fora, de pés descalços, vestida de trapos, sem olhares cheios de expectativas sobre mim.
Bebericava um chá carregado de especiarias enquanto escondia-me nos próprios pensamentos.
— Está gostoso? — perguntou Marie, servindo biscoitos amanteigados. — Coloquei um toque especial de cravo da índia...
— Como um néctar dos deuses— brinquei, arrancando-lhe uma risada vacilante.
Marie bateu suavemente no seu uniforme, espanando uma poeira invisível. Ela era minha dama de companhia, a única que veio comigo da França. Marie, com seus cabelos recolhidos em um coque e o rosto quase sempre avermelhado, era para mim como uma herança de minha mãe.
Talvez por também ter sido dama dela, ou talvez por entender tão bem a dor do luto quanto eu, Marie havia se encaixado tão perfeitamente ao meu lado que era como se fosse parte da família.
Ela era a personificação do que dizem que as francesas são. Mesmo ali, beirando os cinquenta anos, era enérgica e elegante ao mesmo tempo, como se o tempo fosse incapaz de lhe roubar a jovialidade.
— Precisamos de um lindo vestido para hoje...— Disparou, passando os dedos nervosos sob a minha arara de vestidos — Azul turquesa, que tal? Combina com seus olhos...
— Como preferir, madame. — respondi, mais interessada no café da manhã do que na escolha dos trajes.
— Ânimo, minha criança!— estimulou-me ela— Qualquer outra garota no seu lugar estaria com um sorriso de orelha a orelha.
— Ora Marie, é claro que estou feliz servindo como uma mercadoria para a nobreza— disse, num tom mais brincalhão que sarcástico. — O que mais poderia pedir?
Conseguiria citar uma lista com mais de duzentas páginas de coisas alternativas que me fariam mais feliz do que aquela posição, mas me reduzi a uma risadinha estridente.
— Hoje será um dia memorável. — falou, estufando o peito. — Você é uma garota especial, por isso o príncipe a escolheu.
— Escolheu a França, você quis dizer. – corrigi.
Marie pressionou os lábios e balançou a cabeça em negativa. Suas mãos passeavam apressadamente entre um vestido e outro, até encontrar o que parecia perfeito aos seus olhos. Era um lindo azul turquesa, de tecido leve, trabalhado em pedrarias. Um modelo delicado e deslumbrante, digno de um grande momento. Digno de um encontro com o príncipe.
O herdeiro já havia completado 19 anos, e embora eu pensasse ser uma idade precoce demais para se casar, a pressão da coroa já pesava sobre seus ombros; ele precisava de um par.
Assim, motivado pela pressão do séquito e pelos deveres de sua posição política, não teve outra alternativa senão cortejar uma moça de simpatia duvidosa com quem nunca havia trocado mais de três palavras.
E foi dessa forma não tão mágica que eu, uma Lady da França, recebi um convite para ter um encontro com o príncipe da Inglaterra. A essa altura você já deve imaginar que essa história não tem nada a ver com amor ou coisa parecida. Está mais para um cara que precisa desesperadamente casar e uma garota que não tem muitas escolhas a fazer.
— O príncipe sempre teve olhares demorados demais sobre você— tagarelava Marie, de um lado para o outro— Você teria reparado se não tivesse passado os últimos anos ignorando a existência dos rapazes.
Eu ri. Suas alfinetadas eram patéticas.
— Desculpe. — falei, me recompondo. — Não é com amor que os casamentos funcionam no meu mundo.
— Talvez esteja tanto tempo fechada no seu mundo que não consiga perceber o outro mundo ao seu redor. — havia um tom de desapontamento em sua voz.
— Eu moro na casa dele há três anos e malmente nos cumprimentamos. Não me condene por não acreditar que seja amor a motivação disso tudo.
Ela deu de ombros.
Eu passei a vida me dedicando a um milhão de outras coisas que naquele momento pareciam fazer muito mais sentido do que um casamento obrigado. Aprendi a falar doze línguas, estudei sobre navegação, astronomia, arte e política. Viajei uma quantidade considerável de países com meu pai e escrevi mais poemas do que achei que seria capaz. Não sabia ao certo se aos 18 anos estava pronta para me resumir a ser, unicamente, um rosto bonito ao lado do futuro rei.
Durante os anos dentro do palácio britânico desenvolvi uma lista mental de coisas às quais gostaria de experimentar, e ser tratada como o chaveirinho de alguém definitivamente não estava nos planos.
O príncipe era um homem sisudo, ocupado e mais solene do que eu julgava necessário. Parecia o tipo de pessoa naturalmente acostumada com a falsidade e dissimulação da Alta Corte. O tipo de pessoa chata demais para se conviver.
Talvez ele não estivesse pronto também. Apesar de exalar um ar de "já nasci preparado", talvez ele estivesse se questionando sobre aquela responsabilidade tanto quanto eu. Até porque, as chances de ser mais fácil governar um país do que arranjar um bom casamento eram bem altas.
O meu pai havia comentado que na sua época não sabia ao certo se queria, de fato, casar. Disse também que não sabia se a minha mãe era a escolha certa, mas que "deixou fluir" ao ponto de dar certo. Será que essa era a engrenagem dos matrimônios?
Não saberia dizer. O que sabia, por certo, era que hora ou outra acabaria sendo prometida a alguém, e considerando os comentários dos nobres pelo palácio, esse momento não demoraria a chegar. Sabendo que o casamento era um fim do qual a minha astúcia não seria capaz de me livrar, o príncipe parecia ser minha melhor alternativa.
— Esplêndida! — exclamou Marie, analisando-me com a cabeça pendendo para o lado quando terminou de me aprontar. — Você está tão... tão...— seus olhos lacrimejaram. — Perfeita!
— Obrigada, cherie. — falei, checando no espelho. — Você se superou, hein?
Meus cabelos loiros estavam soltos, decorados com uma fina tiara de prata que reluzia cada vez que eu balançava a cabeça. As joias que Marie escolheu para aquele dia eram minimalistas, fazendo uma composição perfeita com o vestido azul turquesa. Eu amei a versão que vi no espelho, tendo certeza que era a melhor produção já feita por ela.
— Sua mãe estaria orgulhosa. Você se tornou uma grande mulher.
— Nada seria possível sem você ao meu lado. Obrigada por isso.
Marie pareceu orgulhosa. Ela juntou a mão na minha e depositou um beijo em minha testa. Tê-la ali me fazia lembrar de casa, da segurança e do aroma de Avence. Jamais seria capaz de agradecer-lhe suficientemente por isso.
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