Parte 9/10 - O Nome no Túmulo
Senti minha força minguando enquanto tentava entender qual era o propósito daquele lugar. Viver novamente valia tanto a pena? Havia algo que fizesse sentido em algum lugar?
Eu estava tão esgotada, tão cansada daquelas perguntas.
Tão cansada daquela cidade. Tão cansada para continuar...
À minha frente, Daniel levantou-se e tentou me ajudar.
― Precisamos seguir em frente, Elie.
Com muito esforço me obriguei a levantar e seguir ao lado dele até a porta de um estabelecimento próximo sem nem mesmo tentar ver que tipo de lugar era, ele entrou primeiro, mas eu parei em frente a porta.
― Você não vem? – ele perguntou do outro lado.
― Eu não sei mais o que realmente quero, Daniel.
Ele esperou que eu continuasse.
Tudo estava desmoronando dentro de mim.
― Você pode continuar procurando suas recordações – eu disse a ele. – Mas eu não consigo mais. Eu... só não quero mais continuar fazendo isso. Talvez a segunda saída não seja para mim.
Daniel voltou para a rua, fechando a porta do estabelecimento atrás de si, e sorriu com a metade da face que ainda possuía.
― Você não entende, não é? Eu também nunca me importei com qual saída tomaríamos, eu só quero ficar com você, seja qual for o caminho que você siga.
Eu poderia ter voltado a chorar, mas até para isso não tinha mais forças, todas as lágrimas haviam secado.
― Por quê?
― Eu... eu não sei... eu só... me sinto uma pessoa melhor quando estou com você.
Eu assenti levemente e fiz um gesto para que viesse comigo.
E assim voltamos para o meio da rua e caminhamos em linha reta, lado a lado, eu queria poder tocar a mão dele, senti-lo, mas os servos já tinham levado isso também. Daniel já não tinha metade do rosto, ambas as mãos e metade do tórax, como alguém que tivesse tudo isso amputado e ainda assim sobrevivesse.
Não houve nenhum som enquanto caminhávamos, e até minha mente estava silenciosa, o foco de tudo era a longa rua que se estendia à nossa frente. Os postes lançavam sua luz fria de cada lado.
Nenhum servo apareceu, porque o motivo pelo qual eles nos perseguiam já não existia. Também não havia nenhum despertado além de nós, e me senti grata por isso, não havia a mínima vontade de interagir com outra pessoa.
Nenhum estabelecimento chamava nossa atenção, apesar de haver construções de tamanhos e formas variadas. A verdade sempre esteve ali fora.
A cidade se adaptava aos cidadãos que recebia e era um reflexo do mundo e da vida que havíamos deixado para trás, e não havia nada que representasse isso melhor do que uma caminhada sem sentido por uma rua infinita, onde desaparecíamos aos poucos e não deixávamos nada para trás.
E assim nós vagamos pela rua sem fim sob a noite eterna.
Acima de nós, o olho gigante nos observava, julgando constantemente, tal qual o olho do leitor de um livro qualquer, ansioso para julgar os atos dos personagens e fazer o papel blasfemo de um deus. Nós o ignoramos. Eu não tinha a mínima vontade de atender às expectativas de qualquer entidade, fosse ela divina ou não.
Nós caminhamos por alguns minutos, ou por alguns dias, num ritmo sem pressa para chegar ao nosso destino incerto. Algo inexplicável nos informava que estávamos chegando ao fim.
De longe nós avistamos algo prateado que reluzia a distância, bem no meio da rua. Parecia algum estabelecimento alto e deslocado. Algo nele tentou despertar minha curiosidade, mas continuamos no mesmo ritmo.
Quando nos aproximamos pude ver que era um enorme portão com duas folhas, suas grades metálicas formavam arabescos detalhados e entrelaçados num estilo gótico. Um grande muro se deslocava dos dois lados, impedindo que os outros estabelecimentos continuassem.
Por entre as grades, vi que a rua se estreitava e continuava além dele, os postes de luz também continuavam, porém eram mais escassos e a distância entre eles era maior, acima do muro também podia-se ver galhos de árvores. Antes que pudéssemos dar meia volta, os portões se abriram com um rangido que se rebelava contra o vácuo natural da cidade. Ninguém nos esperava do outro lado.
Daniel e eu nos entreolhamos num consentimento mudo, e seguimos para o último estabelecimento.
Lá dentro era ainda mais escuro, mas eu conseguia ver que a rua era feita de pedras hexagonais e estendia-se a nossa frente até o horizonte; contornada por postes e árvores gigantescas e desfolhadas que alternavam entre si. E no lugar dos estabelecimentos havia inúmeras caixas de concreto com a largura de um adulto deitado que se elevava do solo de terra batida. Todos absolutamente iguais.
Infinitos túmulos se estendiam dos dois lados a perder de vista, numa paisagem simétrica, cinzenta e artificial.
"Há mais pessoas mortas do que vivas" – refleti.
Nós continuamos rumo ao desconhecido, e conforme avançava notei que haviam lápides acima dos túmulos, cada um mostrava um nome e duas datas. Mas nós não paramos para avaliar nenhum.
O olho gigante tinha sua visão constantemente bloqueada pelos galhos nus acima de nós.
Um cemitério. O último estabelecimento era um cemitério, era tão óbvio que chegava a ser irônico. Em algum lugar do mundo que eu deixei para trás meu corpo físico estava em um lugar assim.
Nós passamos ainda mais tempo lá dentro, tanto que comecei a sentir a parte de trás da minha cabeça ainda mais adormecida. Ao olhar para trás eu já não conseguia ver o portão, a rua se perdia entre as árvores e luminárias.
Então, à nossa esquerda, vi uma luz que se diferenciava das outras. Uma luz dourada que brilhava acima de um dos túmulos.
― Daniel – chamei.
Ele me seguiu por entre os túmulos, passamos por cima de uma raiz grossa que ondulava por cima da terra muito próxima do túmulo e chegamos até a origem da luz, o túmulo do qual ela vinha era retangular e sem nada que o diferenciava dos outros, exceto o nome na lápide. Ali, gravado em letras de forma afundados no concreto havia um nome inconfundível: ELIE.
Ao lado do último "E", um retângulo um pouco maior que uma carta de baralho emanava uma luz dourada. O objeto parecia ser exatamente isso, um tipo de carta, porém qualquer coisa que estivesse escrito nele estava ofuscado pela luz.
― Acho que é minha última lembrança – disse.
― É estranho – disse Daniel. – Vejo que a maior parte dela tem luz prateada, mas há uma ponta com luz dourada.
Olhei para ele.
― Talvez haja algo para você nela – senti um amargor subir pela garganta. – Nós nos conhecemos na outra vida.
― Como você sabe? Você me viu na lembrança do hotel, não é?
― Sim.
― Eu fiz algo para você? Eu te machuquei?
― Acho que você deve descobrir por si mesmo – virei-me para o túmulo. – Vamos tocar a lembrança juntos. Eu vou erguê-la e você toca com a extremidade do braço, ok?
Ele parecia muito nervoso, o restante de sua boca tremia.
― C-certo.
A pupila do olho gigante acima de nós contraia e dilatava, desejoso para ver através dos galhos da árvore que se erguia ao nosso lado.
― Está pronto? – perguntei, e desejei que houvesse um pouco mais de emoção em minha voz.
― Estou com você – ele respondeu.
Estendi a mão e rapidamente ergui a carta dourada do túmulo, Daniel tocou-a com uma parte do braço. E antes que a lembrança nos levasse, vi que as letras do nome no túmulo iam além do último "E". Letras que antes estavam ocultas pela carta dourada. Porque o nome naquele túmulo não era o meu.
Era o nome da pessoa que eu tinha matado.
Minha visão foi tomada pela luz dourada.
Minhas mãos mergulharam na água gelada.
Minhas mãos estavam menores. Elas pegaram um pouco da água na pia e lavaram meu rosto. Havia uma dor aguda no meu lábio, parecia estar rachado, sangrando. E eu soube que aquela se tratava da primeira lembrança que eu havia recuperado na cidade. A lembrança da minha adolescência escolar. Minhas mãos fecharam a torneira e lavaram meu rosto novamente.
Eu podia ouvir nitidamente o barulho das pessoas lá fora no intervalo entre as aulas. A algazarra já estava acabando porque o sinal para que os alunos voltassem para a sala tinha acabado de soar.
Mas eu não queria voltar, eu não queria ver ninguém.
Tudo estava muito claro agora, não havia nenhuma influência do Oblívio me impedindo de ouvir e enxergar com clareza, porque aquela era a última lembrança. De modo que, dessa vez, quando ergui meu rosto para o espelho, pude vê-lo perfeitamente. E quando eu finalmente vi como eu era na adolescência, entendi o motivo de tudo.
Do outro lado da película do espelho, com o olho direito inchado, lábio inferior machucado, e com cabelos ruivos cortados muito curtos, estava um menino.
Ouvi vozes atrás de mim e logo em seguida vi pelo espelho dois colegas que eu conhecia muito bem, já que foram os mesmos que me presentearam com o soco na boca.
― Olha só aonde o vermezinho veio se esconder – disse o primeiro com cabelos castanhos. – Achei que ia se esconder no banheiro das meninas de novo.
Ciente do peso da minha mochila em cima da pia eu me virei para encará-los, seus rostos eram máscaras de malícia. O segundo garoto era maior e mais forte, e com a mesma mão que antes ele havia me ferido agora esfregava freneticamente no meio das próprias pernas, num gesto obsceno e vulgar:
― É disso que você gosta, não é, Eliezer?
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