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Parte 8/10 - O Triunfo do Oblívio


Senti o olhar dele queimar em meu rosto, muito parecido com o que havia me dado na lembrança.

Quando eu cheguei naquela cidade, na boate de Satayash, fui dominada pela vontade de desaparecer, mas eu sabia o que queria e sabia o que precisava fazer para alcançar a inexistência. Depois, quando entrei na igreja de Belzebel, meu objetivo era recuperar minha memória e despertar Débora a qualquer custo, então eu sabia o que realmente queria e o que estava fazendo. E quando o Oblívio tentou me levar de novo enquanto tentava encontrar Satayash, e até mesmo quando entrei naquele hotel, eu ainda sabia o que fazia e o que queria. Em todas essas ocasiões, mesmo que em algumas dominada por uma força externa, eu estava fazendo alguma coisa, eu estava querendo alguma coisa. Eu reagia.

E agora me encontrava petrificada, sem saber o que fazer ou pensar.

Tomei consciência disso ao mesmo tempo que dois sentimentos se digladiavam dentro de mim, e nenhum deles era bom. De um lado havia a raiva, ela exigia a violência, uma retaliação, me fazendo querer virar e gritar para ele: "FOI VOCÊ QUEM ME MATOU! FOI VOCÊ!". Mas conforme aquele sentimento ganhava força, eu também sentia alguma coisa que vinha de brinde, alguma coisa quente que queria escorrer pelo rosto, e sabia que se continuasse a considerá-lo a represa iria se romper...

Do outro lado havia o sentimento mais primitivo de todos. O medo. O medo de mim mesma, o medo do que eu tinha feito. Eu matei alguém. Foi isso que ele tinha descoberto na recordação. Eu matei alguém. Aquela certeza estava tão clara que parecia fazer parte de mim mesma todo aquele tempo. Mas quem? Era possível que eu tivesse matado uma das minhas colegas de classe e que ela fosse parente dele? Então isso mudava tudo...

― Mas você não ia perguntar...? – indagou a voz que eu não queria ouvir.

Os dois sentimentos estavam numa luta acirrada para tomar posse do pouco que restava da minha existência. Como eu disse, nenhum deles era bom.

Então fiz a única coisa que as pessoas fazem quando não sabem o que fazer. Quando não sabem o que realmente querem.

Uma parte de mim se isolou no fundo da minha essência. A outra parte dissimulou.

― Não – minha voz saiu firme. – Eu preciso continuar buscando as outras lembranças. Preciso saber quem eu fui.

― Do que você lembrou? – perguntou Débora.

Dei a ela um sorriso nem um pouco convincente.

― Foi só mais uma sessão com psicólogo, e foi tão confusa quanto as outras lembranças.

Ela pareceu não acreditar, mas manteve silêncio.

Morfélia me fitava com uma expressão estranha, como se soubesse que eu estava mentindo. Eu queria perguntar a ela se eu poderia finalmente escolher entre as duas saídas, já que tinha recuperado a lembrança da minha morte, mas no fundo eu sabia a resposta: aquela lembrança não tinha sido a conclusão. Aquela cidade jamais me deixaria passar pela segunda saída sem me mostrar a pessoa que eu tinha matado.

― Então quer dizer que vocês já estão de partida? – perguntou Morfélia.

― Acho que sim... – ele disse.

― Bom, espero que tenham gostado da minha hospedagem. E, por favor, se encontrarem algum outro despertado, informem a ele sobre este estabelecimento. É muito solitário quando fico sem hóspedes, e isso acontece com muita frequência. Nesse exato momento tenho apenas...

A voz de Morfélia foi ficando cada vez mais baixa conforme eu me distanciava, e antes que eu me desse conta do que estava fazendo, já estava abrindo as portas de vidro da saída. Os outros dois murmuraram despedidas apressadas para Morfélia e vieram atrás de mim. Já estava na metade do caminho de lajotas do pequeno jardim quando eles me alcançaram.

― Vamos entrar no estabelecimento ao lado – eu disse antes que eles me perguntassem qualquer coisa, num tom mais indiferente do que gostaria. – Não há motivos para ficarmos escolhendo, isso só daria mais oportunidade para o Oblívio.

A luz e o ambiente agradável do hotel foram substituídos pela rua desolada e constantemente vigiada. Mas havia uma tensão no ar que nada tinha a ver com esses elementos.

― Elie – disse Débora atrás de mim, um pouco relutante –, a parte de trás da sua cabeça está... desaparecendo.

Levei a mão para a região entre a curva da nuca e minha cabeça e não senti nada, nem mesmo meu cabelo, como se o local estivesse adormecido.

― Estou ficando sem tempo – eu disse tentando parecer menos insensível. – Precisamos encontrar outras lembranças.

E como se a cidade ouvisse meu apelo, um grande estabelecimento surgiu assim que chegamos à esquina. Ele preenchia toda uma quadra e possuía um pátio muito maior que o do hotel, com bancos e árvores desfolhadas. O prédio tinha três andares e era bastante comprido, com muros altos que o cercavam além do pátio. Uma rampa com baixo declive se estendia até a entrada do local, onde largas portas de vidro também nos aguardavam.

― Eles estão vindo – avisou o assassino atrás de mim.

Ao me virar, próximo da entrada do hotel, vi criaturas encapuzadas com rostos preenchidos por olhos únicos e verticais. O número delas parecia ter aumentado, mas não havia tempo para contar.

― Vamos – apressou a voz, segurando meu braço e nos guiando pela rampa do estabelecimento.

Nós só paramos quando estávamos lá dentro, e os servos do Oblívio fizeram o mesmo, se dispersando assim que perceberam que não havia mais como nos alcançar.

Assim que pisei dentro do local, uma sensação esquisita apossou-se da minha existência. Uma sensação de fragilidade, de impotência e fraqueza. O que só intensificava a tormenta que ocorria dentro de mim.

Atrás de nós havia cadeiras de plástico enfileiradas e mal-acabadas que sustentavam pessoas de idades variadas. Gemidos de dor vinha da maioria delas, e algumas permaneciam num silêncio doentio, com olhos vidrados em uma enorme TV próxima ao teto, dela eu não conseguia distinguir nada do que transmitia, apenas um chiado alienado e estranho. As pessoas que gemiam seguravam alguma parte do corpo, como se estivessem machucados e aguardassem por um tratamento.

Fechada como eu estava em meu casulo mental, não precisei de muito esforço para não olhar para elas. A ideia de despertá-las já não parecia ser tão altruísta quanto era no começo.

Uma escada em espiral descia em um canto isolado.

Havia um pequeno painel eletrônico próximo da TV que mostrava alguns números, e quando o número na tela mudou, uma voz vinda de uma janela de vidro na parede esquerda o anunciou. Um homem que estava sentado em um dos bancos levantou e manquejou até a janela de vidro. Poucos segundos depois a porta que havia ao lado da janela se abriu e o homem passou por ela, desaparecendo pelos corredores além dela.

Nos aproximamos da janela e vimos que havia um ser de quatro braços digitando sem parar em algo que parecia ser um computador.

― Com licença – ele disse.

O recepcionista do hospital nem mesmo virou o rosto:

― Aqui está a senha de vocês – disse pondo três papeis com números diferentes pelo vão da janela. – Aguardem nos bancos até serem chamados. Logo vocês serão atendidos.

― Atendidos?

― Isso mesmo, não estão doentes? Logo receberão o tratamento que precisam.

― Nós não estamos doentes. Escuta, somos despertados – continuou a voz que eu não queria ouvir, fazendo um gesto para onde Débora e eu estávamos. – Nós viemos a procura das nossas lembranças. Será que podemos procurar pelo hospital? Digo, isso é um hospital, não é?

O olhar do recepcionista voltou-se para o rapaz loiro, registrando seu rosto pela primeira vez. Olhou por cima do ombro e franziu o cenho para onde Débora e eu estávamos. Ele não era como os outros, dava para ver pela sua estatura, era pequeno como as pessoas que cantavam no coral de Belzebel.

― Despertados... – sussurrou como se não soubesse o que fazer. – Aguarde um instante.

Seus dedos discaram alguns números em um telefone ao lado e o pôs no ouvido:

― Alô, me perdoe por incomodar – ele disse num tom de voz agudo e inseguro quando foi atendido. – Acabaram de aparecer despertados na recepção e eles querem... já sabe?... c-certo... ok... farei isso. Muitíssimo obrigado.

Ele depositou o telefone no gancho e olhou para nós.

― Vocês podem entrar – ele disse. – Sua senhoria Angelix aguarda vocês na sala quarenta e dois do terceiro andar, na ala da diretoria. Vocês devem ir direto para lá seguindo pelas rampas nos corredores.

― Certo – disse o rapaz. – Angelix é o ser responsável por este hospital?

O ser pequeno assentiu com ar de quem não queria muita conversa e apertou um botão na parede, a porta que levava até os corredores se abriu logo à nossa frente.

― Vocês devem ir agora – disse.

― O que acham? – ele perguntou virando-se para Débora e eu.

Ouvi ele perguntado de muito longe, como se meus sentidos estivessem entorpecidos novamente, embora dessa vez era por vontade própria. Meus olhos estavam direcionados para ele sem enxergá-lo.

― Talvez ele possa ajudar, como os outros fizeram – disse Débora. – O que você acha, Elie?

Assenti apaticamente e nos dirigimos até a porta do corredor, mas parei em frente à recepção.

― Por que essas pessoas parecem tão doentes? – perguntei ao ser pequeno. – Satayash disse que não há sequelas das nossas mortes neste lugar.

O ser de quatro braços me olhou como se estivesse ouvindo algo absurdo e nojento.

― Você deve perguntar isso para Angelix, que neste momento a aguarda no terceiro andar, sala quarenta e dois – ele repetiu e voltou a digitar no computador num gesto de dispensa, parecendo visivelmente aliviado quando me afastei.

Virei-me para os dois que me aguardavam na entrada do corredor, e mais uma vez os olhos dele cruzaram com os meus. A mágoa nos meus devia estar evidente porque ele começou:

― Elie, você está estranha. O que aconteceu? Foi algo na sua lembrança...?

― Não diga nada – eu disse sem olhar para ele, um pouco de ira transparecendo incontrolavelmente em cada palavra. – Só... não diga nada.

Débora olhava para nós com um ar nervoso e hesitante, a mão perambulando pela gola da blusa. Por fim ela pareceu tomar as rédeas da situação.

― Acho que é melhor continuarmos procurando... – disse com um sorriso trêmulo. – Estou vendo uma espécie de rampa no fim do corredor, deve ser por ali. Talvez o responsável por este hospital possa nos ajudar de alguma forma.

E assim seguimos em silêncio na direção da rampa. Mantive o olhar no chão evitando o rosto dele, que continuava a me olhar de soslaio. Entrementes, eu também tentava evitar olhar para as inúmeras portas que se abriam dos dois lados do corredor, gemidos e até alguns gritos não paravam de soar através delas, algumas vezes misturados com o chiado estranho que devia vir de alguma TV.

Subimos pela rampa em espiral no fim do corredor, sempre em silêncio.

Outro corredor idêntico ao anterior abriu-se à nossa frente, o piso era branco, limpo e frio. E naquele local havia um cheiro estranho, um odor forte de produto de limpeza que tentava a todo custo mascarar um outro cheiro, mais forte e... podre.

― Que lugar gigantesco – ele disse. – Seria fácil se perder aqui.

Continuamos vagando pelo corredor, que além de uma curva tornava-se idêntico ao anterior. Passamos por muitas salas, mas nenhuma tinha o número 42 gravado na porta. Em alguns momentos não pude evitar olhar para dentro dos quartos, e em um deles vi uma pessoa idosa deitada em uma cama com olhos vidrados e imóveis voltados para o teto.

― O que há com elas? – sussurrei para mim mesma.

― O quê? – ele perguntou.

Meneei a cabeça em negativa e continuamos o caminho, mas antes de chegarmos em uma nova curva meu olhar foi atraído para outra pessoa em um dos quartos. Estaquei onde estava. Um menino careca e com tubos que saiam do nariz encontrava-se deitado em uma cama além da porta, seu olhar estava concentrado em uma TV grudada na parede oposta. Toda vez que ele respirava um chiado semelhante ao da TV era emitido. Ele parecia minúsculo naquela cama gigantesca, e aquela imagem me tirou do estado de entorpecimento.

Débora e ele vieram até onde eu estava.

― Ele é só uma criança... – eu disse já entrando no quarto.

O menino não teve nenhuma reação a nossa presença. Mas além dele havia outras duas pessoas. Um senhor idoso estava deitado em outra cama com cortinas que delimitavam o perímetro da mesma, e um ser de quatro braços vestindo roupas de enfermeiro terminava de injetar algo em seu pulso. Quando ela se afastou – a agulha da seringa ainda pingando – pude ver metade do tórax do idoso desaparecendo aos poucos.

― Você é Angelix? – ele perguntou para o ser de quatro braços.

O rosto cinzento da enfermeira voltou-se para nós.

― Não – disse enquanto guardava a seringa em um bolso do jaleco. – Mas vejo que vocês despertaram. O que querem com Angelix?

― Disseram que ela está nos aguardando.

A enfermeira aproximou-se de onde estávamos e nos fitou:

― Bem, não é comum que despertados andem por estes corredores. Certamente Angelix saberá o que fazer com vocês. Posso levar vocês até sua sala.

Em seguida ela olhou para o menino na cama:

― Ainda está sentindo alguma dor, querido?

O menino virou os olhos apáticos para ela.

― Não, ele não está – eu disse antes que qualquer som fosse pronunciado. – Isso que você injeta neles é o que está fazendo-os desaparecer?

As sobrancelhas dela se arquearam.

― E agora você decide por eles?

― Não vou deixar você fazer isso.

A enfermeira estreitou os olhos.

― Vamos ver o que Angelix acha disso – e saiu apressada pela porta do quarto.

O ruído da criança respirando pareceu ficar mais alto e vê-la naquele estado só me fez querer despertá-la ainda mais. Mas foi ele quem se adiantou.

― O que há com você? – disse no familiar tom gentil enquanto sentava-se na beirada da cama.

A criança virou a cabeça vagamente para o rosto dele. E alguma coisa pareceu brilhar ali.

― Está doendo...

― Onde?

― Eu não sei – seus olhos piscavam devagar. – Me sinto tão confuso, eles dizem que vou melhorar, mas eu não sinto nenhuma melhora...

Débora parecia estar a ponto de chorar.

― Eles quem? – ele perguntou segurando a mão do menino.

― Eu... não consigo lembrar...

― Você não quer dar uma volta com a gente?

― Quero, mas não posso.

― Por quê? – perguntou Débora.

― Porque... estou doente...

Houve um momento de silêncio e o menino foi atraído para a TV novamente.

― Qual é o seu nome? – perguntei me aproximando ainda mais.

― Breno.

Eu já não conseguia me conter.

― Breno, você está sentindo alguma dor?

― Não, mas eu acho que vou morrer.

Era isso, estava na hora de despertá-lo.

― Mas você já está...

― PAREM! – gritou uma voz na porta do quarto.

Nós três viramos e vimos que a enfermeira já estava de volta

― Vocês não devem fazer isso – ela disse. – Angelix está aguardando vocês e me pediu para guiá-los até sua sala.

― Não pense que vou deixar essa criança desaparecer sem fazer nada! – gritei para ela.

A enfermeira fechou os olhos por um momento, tentando manter o controle, depois continuou num tom calmo:

― Não somos nós que estamos fazendo vocês desaparecerem. Eu admiro sua força de vontade em querer ajudá-lo, mas você não tem poder para isso.

― E porque vocês não o ajudam? É tão difícil assim se colocar no lugar dos outros?

― Esta não é a questão aqui. Angelix pediu para que eu dissesse a vocês que podem despertar todas as pessoas deste estabelecimento depois de irem à sua sala.

― E porque ela não vem até nós se sabe onde estamos? – ele perguntou.

― Porque está preparando os medicamentos para os pacientes da sala de espera. Quero pedir que vocês me acompanhem agora, por favor.

Olhei para os outros dois e eles pareceram ter o mesmo pensamento que eu.

― Nós vamos, mas depois vamos voltar para despertá-lo.

― Se assim vocês desejarem – consentiu a enfermeira.

Ele levantou-se da cama e disse para o menino:

― Nós vamos voltar logo, beleza?

E a criança, por sua vez, assentiu fracamente e voltou a olhar para a TV.

Ao passar pela porta do quarto olhei para o número gravado na superfície e o guardei na memória, prometendo a mim mesma que não sairia daquele lugar sem voltar até ali.

Nós percorremos os corredores, passamos por curvas que davam para corredores idênticos, e continuamos andando com a enfermeira sempre a frente. E percebi, com certo pavor, que jamais conseguiríamos sair daquele hospital sem que alguém nos mostrasse a saída. Outros enfermeiros com quatro braços passaram por nós, alguns carregavam bandejas com frascos de medicamentos e seringas.

Em certo momento também percebi que a mão direita dele estava desaparecendo.

Por fim chegamos à uma sala com o número quarenta e dois gravado em relevo na porta.

― Vossa senhoria Angelix – anunciou a enfermeira ao entrar, num tom cheio de respeito -, trouxe os despertados, como você me pediu.

A sala era pequena e simples, com uma estante e uma bancada cheia de frascos de medicamentos, e atrás dela, do outro lado da sala, um ser com quatro braços estava virado de costas para nós, observando por uma janela larga na parede oposta. Dois de seus braços estavam voltados para trás.

― Agradeço pelo seu esforço – disse sem se virar. – Eu atenderei eles agora, você está dispensada.

A enfermeira fez uma pequena reverência e saiu pela porta sem olhar para nós.

― Acredito – disse a voz límpida através do rosto oculto – que estavam tentando despertar um dos meus pacientes.

Eu estava prestes a dizer que ainda despertaríamos o menino, que iriamos informá-lo de que já estava morto e que ele viria conosco, se assim quisesse. E que se dependesse de mim despertaria todas as pessoas que pudesse naquele hospital. Eu estava prestes a dizer isso num tom de desafio. Mas naquele instante, muito lentamente, o rosto de Angelix se virou.

Se eu pensei que Belzebel parecia ter uma aura divina quando o encontrei, era por que ainda não tinha visto Angelix. Tinha cabelos encaracolados e brancos como algodão, usava um jaleco igualmente branco e imaculado, ambos contrastavam com a pele negra de um rosto tão frio e impassível que pensei estar diante de uma estátua. Um rosto que ao mesmo tempo emanava conhecimento infinito e respeito profundo.

Nós três nos mantivemos em silêncio.

― Se vocês ainda desejam despertar alguém neste estabelecimento, me sinto na obrigação de lhes mostrar o destino que vos aguarda – sua voz era tão fria que o ar em volta também parecia estar perdendo calor, era a primeira vez que sentia mudança de temperatura na cidade. – Venham até a janela, há algo que vocês precisam ver.

Nós passamos pela bancada e Angelix afastou-se para que nós víssemos. A janela ficava em um ponto alto de modo que podíamos ver a entrada do hospital e, lá em baixo, entre os bancos e árvores desfolhadas, no mínimo uma dúzia de figuras encapuzadas estava parada em frente ao estabelecimento, como uma espécie de culto obscuro. Todos eles estavam esperando nossa saída...

― Ele sabe o que vocês pretendem fazer – disse Angelix olhando na direção do olho colossal que nos observava do céu. – E se despertarem mais uma pessoa sequer, o número de servos lá em baixo irá dobrar.

Débora pôs a mão na boca.

Engoli em seco.

― Agora, podem sentar-se – disse Angelix indicando as três cadeiras do outro lado da bancada.

Aquilo parecia um déjà vu, quantas vezes eu já estive numa situação como aquela desde que cheguei na cidade?

― Nós já escapamos deles antes, podemos fazer isso de novo – eu disse sem um pingo de convicção.

Angelix sentou-se do outro lado e me encarou de modo inflexível, pondo as mãos sobre a mesa e cruzando os dedos.

― Mesmo que vocês despertem todas as outras pessoas neste estabelecimento, o que é algo impossível, isso de nada adiantaria. Vocês teriam apenas duas escolhas nesta situação: sair pelas portas lá embaixo e serem consumidas pelos servos, ou vagar por estes corredores numa busca infrutífera pelas lembranças até desaparecerem completamente.

― Mas eu não quero... eu não posso permitir que essas pessoas sejam levadas pelo Oblívio sem fazer nada – eu disse.

― E porque você não quer? Porque você não pode?

A pergunta me pegou de surpresa. Senti o olhar dos outros voltados para mim, e não consegui fazer nada além de morder o lábio e olhar para baixo.

― É admirável a sua vontade de querer ajudar os outros cidadãos – começou Angelix. – É realmente muito raro encontrar um humano que não hesita em se pôr no lugar do outro, já que é da natureza de vocês evitar a dor a qualquer custo. Mas sejamos francos, você não está fazendo isso pelas outras pessoas, está fazendo por si mesma. Você está com medo de ficar sozinha novamente. Está com medo do que o Silêncio pode lhe falar? Mesmo que já tenha chegado até aqui, ainda não percebeu que a jornada para o autoconhecimento é algo que precisa ser feito sozinha?

Eu ainda não conseguia dizer nada. Aquilo era verdade? Eu estava tentando ajudar aquelas pessoas apenas para me redimir pelo o que tinha feito em minha vida passada? Como uma forma de sabotar meu senso moral e convencer a mim mesma de que merecia viver novamente.

― Nós ainda não estamos entendendo – disse Débora ao meu lado, sua voz firme e decidida em meu auxílio. – Porque as pessoas deste hospital estão doentes? Como isso pode tornar justo a busca delas pelas lembranças?

Angelix respirou fundo e pela primeira vez sua expressão mudou, derretendo um pouco do gelo que formava sua face e concedendo um sorriso sereno. Um sorriso tão sincero e bondoso que me fez querer chorar ali mesmo.

― Elas não estão doentes, o que vocês conhecem como doença não pode se manifestar neste mundo. Mas vou explicar o que está acontecendo para aliviar as vossas consciências. Vocês humanos criam vícios para o corpo e para a mente no intuito desesperado de esquecer a verdade derradeira, alheios de que ela é a única coisa que pode vos libertar – ela pegou um dos frascos que havia na estante e olhou para os comprimidos cor de âmbar dentro dele, um halo de luz emanava deles. – Todos os pacientes deste hospital foram ou serão medicados por isto, sua função é lembrar a eles o que esqueceram em suas vidas passadas. Algo trivial e ao mesmo tempo importantíssimo.

Enquanto ela revirava o frasco em sua mão escura pude ver que no rótulo havia duas palavras: Memento Mori.

― Elas esqueceram a linha tênue e delicada que separa a casca da essência e por isso os ecos de suas enfermidades os seguiram até aqui. Na verdade, é isto que afeta a todas as almas deste mundo, impedindo-as de se conectarem com si mesmas.

― Então quer dizer que aquela criança já tomou este medicamento e continuou achando que está doente? – perguntei.

A face de Angelix voltou a ser inexpressiva.

― Há coisas mais importantes para vocês se preocuparem, afinal crianças despertam muito mais facilmente do que adultos. E se ela despertar sem a influência de vocês, terá uma passagem muito mais tranquila por esta cidade.

― O que você quer dizer? – ele perguntou. – Com o que deveríamos nos preocupar?

― Em como irão sair deste estabelecimento, por exemplo. Ou será que preferem desaparecer por estes corredores infindáveis? Eu particularmente detestaria que isso acontecesse.

― Mas nós podemos encontrar as lembranças aqui, não podemos? – perguntou Débora.

― Podem, mas será que conseguiriam ficar aqui sem despertar ou interagir com os outros pacientes? Pelo que vi isso parece bastante tentador para vocês, não foi por acaso que o Oblívio mandou seus servos para a entrada. Não apenas isso, mas vocês estão em um dos maiores estabelecimentos desta cidade, poderia passar muito tempo até que encontrassem outras lembranças, e pelo o que vejo, vocês não dispõem de muito tempo.

A escuridão em meu ombro pareceu pulsar diante da afirmação, e constatei que a escuridão no ventre de Débora também tinha ficado maior, assim como a mão direita dele, da qual não restava mais nada.

― Mas se sairmos agora os servos vão nos alcançar. Não temos nenhuma escolha – disse a pessoa que eu não queria ver ou ouvir.

Mas ele tinha razão.

Então entendi onde Angelix queria chegar com toda aquela conversa. E eu soube que jamais poderia cumprir a promessa de voltar e despertar o garoto.

― Há outra saída para fora deste estabelecimento?

Os olhos de Angelix brilharam.

― Sim.

Nós esperamos que ela falasse mais alguma coisa, mas nada aconteceu. Ela permaneceu imóvel e inexpressiva.

― E você pode nos levar até lá? – perguntei, sabendo que nunca encontraríamos a saída apenas com instruções.

― Sim – a boca da estátua se moveu. – Mas com uma condição.

― Pode falar – pediu ele.

― Vocês não devem tentar despertar nenhum outro cidadão enquanto estiverem nesta cidade. Se vocês tivessem despertado aquela criança, agora ela também seria um alvo do Oblívio. Sabendo disso, não é uma condição difícil de ser obedecida. Concordam?

Débora e ele assentiram com a cabeça, mas eu hesitei.

No fundo me sentia derrotada e perturbada. Derrotada porque não poderia ajudar nenhuma outra pessoa a despertar, já que aquilo apenas agravaria nossa situação, e perturbada porque bem no fundo, em um local muito escondido nos recônditos da minha existência, eu me sentia aliviada por não precisar mais fazer isso.

― Concordo – eu disse, e pela primeira vez desde que cheguei naquela cidade uma lágrima brotou e escorreu pelo meu rosto, ela foi enxugada antes que qualquer um percebesse. – Por favor, nos mostre a saída.

Angelix ergueu-se lentamente da cadeira, as mãos esconderam-se em quatro bolsos do jaleco.

― A saída fica em uma despensa no primeiro pavimento, quando chegarem lá fora, tentem encontrar um estabelecimento menos complicado do que este – ela deu a volta na bancada e fez sinal para que a acompanhássemos. – Vou levá-los até lá.

Nós levantamos e seguimos Angelix pelo corredor, que caminhava a passos lentos e decididos. Os gemidos, gritos e chiados vindos dos quartos foram ouvidos novamente, e quando passávamos por algum outro ser de quatro braços, eles paravam e faziam uma pequena reverência para Angelix, que parecia ignorar completamente. Descemos pelas rampas circulares e, quanto mais descíamos, mais o ambiente parecia perder a luminosidade, ficando cada vez mais ermo e silencioso.

― Estamos chegando – avisou Angelix.

Ao que parecia, já estávamos no térreo. Como o som desconcertante havia ficado para trás, achei que era seguro olhar para as portas abertas pelas quais passávamos: quartos hospitalares desertos e escuros. E foi em um deles que alguma coisa brilhou.

Parei em frente a porta. A luz lá dentro parecia cintilar, como se soubesse que havia sido descoberta.

Os outros continuaram caminhando, sem notar quando entrei no quarto cheio de breu.

Consegui distinguir uma cama hospitalar antes de esbarrar nela, e ao contorná-la encontrei uma bandeja com instrumentos cirúrgicos, de tamanhos e formatos tão variados que eu nem sonharia em dizer para que serviam. No centro da bandeja a fonte da luz se destacava. Um bisturi muito fino emanava um brilho cortante e prateado.

Pus a mão na boca ao constatar de quem poderia ser aquela lembrança.

Eu não posso... eu não me sentia preparada.

― Elie? – disse uma voz muito próxima. A voz dele. – O que aconteceu? Isso é uma...?

Me senti grata pela falta de luz esconder seu rosto.

― É prateado para você? – perguntei.

― Sim.

Pensei rápido antes de continuar.

― Precisamos sair daqui – eu disse apressada. – Foi um erro ter entrado neste quarto.

― Por que? Isso é uma lembrança, deve ser da Débora.

Minha respiração saiu ruidosa quando me virei completamente para fitar os olhos verdes que teimavam em refletir o brilho no escuro.

― Você não entende.

― Então me explique, Elie, por favor? O que eu fiz para ser tão indigno da sua confiança?

Por um momento eu quase explodi e disse o que tinha visto na última lembrança, mas aquilo não ajudaria em nada, não agora.

― Quando estávamos no hotel, Débora disse que lembrou de estar grávida antes de morrer – expliquei. – Mas ela não queria ter a criança. E eu acho que... acho...

― O que?

― Acho que ela tentou abortar – me afastei do bisturi como se fosse um inseto peçonhento. – Mas algo me diz que no lugar de onde vim essa prática é proibida e, por isso, perigosa.

Comecei a puxar o braço dele.

― Essa deve ser a última lembrança dela, e não é uma lembrança boa. Talvez ela não escolha a segunda saída se ver isso. Tem que ter outro jeito.

Puxei ele rapidamente pelo quarto escuro, desesperada para sair dali. Mas quando chegamos à porta, Débora e Angelix já estavam lá.

― Débora... – comecei a dizer.

Ela sorriu ao notar que ele e eu estávamos juntos.

― Vocês voltaram a se falar? – perguntou. – Não precisava ter me dado esse susto sumindo de repente, era só pedir um tempo a sós.

― S-sim, vamos indo.

Fiz menção para continuarmos o caminho, barrando a visão dela para o quarto, mas o rosto de Angelix me encarou implacável do alto, meneando a cabeça.

― Você não tem esse direito – disse.

― O que? – perguntou Débora. – Por que eu nunca sei do que estão falando?

Angelix estalou os dedos e o quarto atrás de nós se iluminou. Débora olhou além da porta e viu a lembrança brilhando. O reflexo em seus olhos era dourado. Seu sorriso morreu aos poucos ao distinguir o objeto.

Ela deu um passo para dentro do quarto.

― Débora – fui atrás dela e toquei seu ombro – você não precisa ver, talvez seja doloroso demais... há outras lembranças lá fora...

Ela afastou minha mão com delicadeza.

― Eu preciso ver, Elie – e continuou andando. – Mas obrigada pelo apoio.

Sua mão estendeu-se sobre o bisturi e pareceu hesitar um pouco antes de continuar, mas por fim tocou-o. Seus olhos abriram-se, cheios de um brilho dourado.

― Última lembrança – sentenciou Angelix.

Daquela vez não foi tão rápido quanto na lembrança da boate, ela ficou parada observando o próprio fim pelo o que pareceu uma eternidade, pelo menos para mim. Esperamos em silêncio até que acabasse, então a luz em seus olhos apagou-se e o bisturi voltou a ser um objeto ordinário em meio aos outros instrumentos.

Ela continuou com os olhos fixados na bandeja metálica.

― Débora – chamei-a, me sentindo muito impotente –, estou aqui com você.

― Agora eu sei como acabou... – não havia emoção em sua voz.

Ele aproximou-se de nós e tocou o ombro dela num gesto de apoio.

― Vocês devem estar se perguntando como...

― Não – me apressei em dizer. – Você não precisa dizer nada se não quiser, você lembra do que eu disse? Agora você pode viver de novo e ter uma vida melhor do que a que teve.

Ela pareceu ignorar todas as palavras.

― Eu não abortei, se é o que estão se perguntando – sua voz saiu tão cortante quanto o bisturi. – Embora essa ideia tenha sido cogitada.

Ela ergueu o rosto para nós e a expressão sem vida em seu rosto me assustou. A Débora que conheci estava sempre sorrindo ou chorando, sempre expressava suas emoções com uma sinceridade que quase parecia ingenuidade. Mas aquela diante de mim era o oposto, abatida e distante. E percebi que estava vendo a Débora dos seus últimos dias de vida.

― Isso teria sido um escândalo ainda maior para meu pai. O que as pessoas da igreja pensariam se eu abortasse? – engoliu em seco. – Não. Eu precisava arcar com as consequências do meu erro.

Eu queria desesperadamente fazer algo para consolá-la, queria abraçá-la, dizer que aquilo tudo não importava. Que ela não tinha cometido nenhum erro em querer viver da forma que gostaria. Mas tive medo de que qualquer coisa que dissesse poderia agravar ainda mais seu espírito.

― Débora...

Seu rosto voltou-se para a bandeja de instrumentos, e me arrependi amargamente por ter entrado naquele quarto.

― A criança nasceu prematura e sem vida – ela continuou. – E a hemorragia me levou junto. Foi assim que cheguei até aqui.

Foi nesse momento que ela segurou o bisturi novamente, erguendo-o e olhando fixamente seu reflexo na parte plana. Dei alguns passos na direção dela sem pensar no que estava fazendo e antes que eu a alcançasse um farfalhar de tecido foi ouvido atrás de nós, seguido de batidas lentas e ritmadas.

Aquilo pareceu tirar Débora de seu torpor, fazendo com que se voltasse para a origem do som.

Parado na porta do quarto estava um ser com rosto fino e cabelos cinzas, trajado com uma túnica que se estendia até o chão, ele batia palmas lentamente com suas quatro mãos simultaneamente. Sustentando em seu rosto uma expressão cheia de desdém.

― Eu avisei que você se arrependeria – disse para mim.

A expressão imutável de Angelix tornou-se uma máscara de desagrado.

― Belzebel – disse com os lábios contraídos.

O outro apenas lançou um olhar de esguelha e ignorou completamente o cumprimento, adiantando-se para onde nós estávamos.

― O que está fazendo aqui? – perguntei.

― Você continua fazendo perguntas? Que irritante.

Angelix retomou a compostura.

― Ele veio abrir as duas saídas para Débora, somente o responsável pelo estabelecimento onde o cidadão desceu as escadas pode fazer isso.

Débora depositou o bisturi de volta na bandeja.

― Meus parabéns por ter descoberto quem você foi – disse Belzebel vomitando ironia. – Espero que todos estejam contentes e satisfeitos.

― Ter conhecimento sobre si mesmo é melhor do que padecer no seu estabelecimento hipócrita – ralhou Angelix.

Os olhos dos dois seres encontraram-se e uma tensão elétrica pareceu elevar-se no pequeno ambiente.

― Hipócrita? O que ofereço é a benção de descansar em paz – disse Belzebel, em seguida apontou para Débora. – Veja o que o seu precioso conhecimento fez a esta cidadã, ou será que não vê o tormento pelo qual ela passa.

― O único e verdadeiro tormento é ser manipulado por você – a voz de Angelix elevou-se.

― Veja só quem está sendo hipócrita agora, utilizando um place...

― CHEGA! – gritou Débora.

Ela ofegava e tinha os olhos brilhantes, mas pelo menos parecia ter voltado a ser a garota que eu tinha conhecido.

― Tem razão – disse o sacerdote. – Está na hora de você escolher. Diga logo a porta pela qual deseja passar: o esquecimento ou o renascimento.

Ela começou a roer as unhas de uma mão enquanto a outra procurava alguma coisa na gola da blusa, o nervosismo consumindo-a por dentro.

― Débora – eu disse tentando transparecer uma calma que não tinha –, você lembra quando disse que queria me conhecer quando estava viva?

Ela olhou para mim e confirmou.

― Isso pode acontecer, podemos nos conhecer de verdade em uma vida melhor do que a que deixamos para trás, há tantas coisas que vamos poder fazer juntas. – Tentei sorrir para ela. – Mas isso só vai acontecer se você escolher a segunda saída.

Ela ia dizer alguma coisa, mas parou no meio do caminho, mordeu os lábios e voltou a olhar para o chão.

― Débora – ele disse tentando ajudá-la – se tem alguém que merece a segunda saída, é você.

Belzebel ficava cada vez mais impaciente.

― Está na hora de escolher.

Meu coração quase parou quando Débora olhou para ele e para mim com os olhos lacrimejantes. Eu sabia que o momento de me despedir estava chegando, e não me sentia preparada. Ela voltou-se para o sacerdote.

― Posso permanecer nesta cidade um pouco mais? Quero aproveitar o tempo que me resta com eles.

Pensei que sua indecisão irritaria ainda mais Belzebel, mas estava enganada. Ele deu um meio sorriso.

― Claro, pode ficar o tempo que quiser.

Eu não estava entendendo. Angelix adiantou-se com ar de indignação:

― Você não pode permitir isso, ela deve passar por uma das saídas agora!

― É claro que posso – rebateu Belzebel.

― Então diga a ela o que acontece se ela permanecer aqui, ou eu direi.

O meio sorriso do sacerdote transformou-se em um sorriso completo.

― Pois direi, mas apenas ela precisa saber, como alguém que despertou e recuperou a memória.

O corpo alto de Belzebel reclinou-se até seu rosto fino ficar muito próximo do de Débora, então sussurrou algo inaudível em seu ouvido. Ela piscou um pouco, sem parecer entender.

― Ainda assim, quer permanecer aqui? – perguntou Belzebel.

Ela consentiu apressadamente com a cabeça, como se quisesse acabar com aquilo de uma vez por todas.

― Muito bem então, quando decidir por qual saída quer passar, me chame – seus dedos finos tamborilavam sobre si mesmos entre as mangas da túnica. – Caso não saiba, vocês cidadãos me chamam por Belzebel. Mas só me chame quando realmente decidir.

E dizendo isso deu meia-volta e atravessou o quarto sem olhar para ninguém, até desaparecer além da porta.

― Débora, está tudo bem com você? – perguntei.

Ela deu o sorriso tímido de sempre.

― Não está brava por eu ter adiado minha saída desta cidade?

― Claro que não, estou feliz por ainda estar com a gente.

E mais uma vez nós nos abraçamos, e em algum momento ele também se uniu a nós meio sem jeito. E eu deixei que ele se aproximasse, porque era bom estar com eles, e depois de pensar em me despedir de Débora eu senti que não queria perdê-lo também, e porque aquele era um dos últimos momentos em que poderíamos ficar juntos. Antes de tudo começar a mudar.

― Acho que já podemos continuar procurando as lembranças de vocês dois agora – disse Débora quando nos separamos.

― Mas o que foi que aquele cara te disse antes de sair? – ele perguntou.

― Eu não entendi direito – respondeu ela. – Mas o que importa é que posso ficar mais um pouco.

― Mas não tem nada errado, mesmo?

― Não – ela confirmou.

Havia algo nela que tinha mudado, mas eu não sabia dizer o que era, e por hora resolvi ignorar. As coisas pareciam ter voltado ao normal novamente. Pareciam. A escuridão em seu ventre ainda estava lá.

Angelix pigarreou.

― Vou levá-los a saída do hospital, por favor, me sigam.

Nós saímos do quarto e seguimos a médica pelo corredor mal iluminado e abandonado. Sem demora chegamos até uma porta metálica de duas abas que Angelix fez abrir, sem tocá-las, com um movimento das mãos. Do umbral observamos a rua silenciosa que ficava no que parecia ser o outro lado do quarteirão ocupado pelo hospital, sem nenhum sinal dos servos. Nos aguardando com uma paciência infinita.

― Vocês precisam prestar atenção e serem rápidos – disse o guia de pele escura –, assim que o Oblívio saber que vocês saíram, mandará os servos atrás de vocês.

Por algum motivo estranho ela disse isso olhando apenas para ele e para mim. Por último ela olhou para Débora e pareceu querer dizer algo mais. Mas não o fez.

― Obrigada por tudo – disse a garota de saias.

― Gostaria de poder ajuda-los um pouco mais, mas o meu estabelecimento não foi feito para pessoas como vocês. Despertados não precisam do medicamento.

Assim que saímos para a calçada ouvimos a voz de Angelix novamente.

― Há apenas uma última coisa que precisam saber – ela disse enquanto as portas duplas se fechavam lentamente. – Nenhum tipo de fé pode ser mais verdadeira ou mais poderosa do que aquela que vocês sentem por si mesmos. Talvez isso ajude de alguma forma.

E com isso as portas se fecharam com um baque, nos deixando sozinhos na rua.

― Vamos correr – apressou ele.

― Aquele prédio parece algum tipo de loja, não deve ser tão ruim – apontei para o outro lado da rua.

Em um consentimento mútuo disparamos pela distância até o local e, ao olhar para cima, a pupila do olho gigante me encontrou. E fiquei satisfeita ao perceber que a porta da loja estava cada vez mais perto, por mais rápidos que os servos fossem, nunca nos alcançariam a tempo.

Abri a porta de madeira e um sino anunciou nossa chegada, ele atravessou logo atrás de mim, seguido por Débora.

Ou quase.

Quando ela tentou atravessar a entrada, uma barreira dourada se pôs entre ela e o estabelecimento.

― O quê?

Ela tentou entrar novamente, mas a barreira a repeliu, ondulando como se fosse algum tipo de liquido. Tentou novamente, e de novo. Ele tentou puxá-la, mas quando ela tocava nos limites do estabelecimento era interceptada novamente.

― O que está acontecendo? – exclamei.

Débora desistiu de tentar entrar e soltou um riso anasalado, lançando um olhar de desapego para nós.

― Agora entendi.

― Do que está falando?

― Quando as duas saídas se abrem, todas as outras se fecham. Foi o que Belzebel disse – a voz dela saiu como um sussurro do outro lado.

Por cima do ombro dela pude ver as figuras encapuzadas vindo do outro lado da rua, um nó pareceu se formar dentro de mim.

― Débora, você tem que chamar Belzebel! – gritei para ela

Mas ela continuou parada, com um sorriso triste e rendido.

― Não, eu não vou deixar você fazer isso.

E sem pensar duas vezes atravessei a porta, segurei o braço dela e puxei-a enquanto corria pela calçada. Ela correu ao meu lado.

― Elie...

― Chame Belzebel, rápido! Chame ele!

Tentei entrar em outro estabelecimento, sem nem tentar discernir que tipo de local poderia ser, isso era o que menos importava naquele momento. Mas quando tentei puxá-la para dentro, a barreira se formou novamente.

― Que droga.

― É inútil, Elie, eu não posso mais entrar nos estabelecimentos, nem há mais motivos para isso...

― Débora – ele gritou quando nos alcançou ofegante – você não pode desistir agora. Depois de tudo.

Voltamos para a rua e continuamos a correr ao lado dela. Atrás de nós todos os servos que estavam na entrada do hospital deslizavam com as mãos estendidas.

― Elie... Daniel...

― BELZEBEL! – Comecei a gritar desesperada. – BELZEBEL!!!

Os postes de luz observavam tudo, empalidecendo nossos rostos à medida que passávamos por eles.

― Eu nunca pretendi passar pela segunda saída, eu só adiei porque queria ficar um pouco mais com vocês...

― NÃO!

― Eu não quero ter que viver aquilo tudo de novo, não quero que haja possibilidade de ser pior ainda, não quero mais causar vergonha ou dor para as pessoas ao meu redor. Minha morte foi culpa minha, eu não tive coragem de ser eu mesma, e também não pude viver do jeito que todos queriam. Eu fracassei em tudo.

― Do que está falando?!

Os servos do Oblívio estavam cada vez mais próximos.

― Não quero suportar toda aquela pressão de novo. É muito difícil, Elie, é muito difícil...

Sua voz estava se perdendo no vácuo da cidade. Então ela se desvencilhou da minha mão e parou de correr no meio da rua. Dei alguns passos antes de virar.

― Débora!

Lágrimas escorriam pelo rosto, mas ela sorria.

― Elie... eu nunca pensei que seria feliz quando morresse, na verdade eu morri achando que iria para o inferno, mas você me proporcionou os melhores momentos da minha vida nesta cidade. Vocês me deram sua amizade e compreensão, e isso era tudo que eu precisava enquanto estava viva. Muito obrigada por tudo.

Os servos estavam a poucos metros...

― Daniel, cuide da Elie.

E dizendo isso ela se virou, as saias rodopiaram, e ela correu na direção das criaturas encapuzadas.

― NÃO, DÉBORA!!! – gritei, mas minha voz era apenas um sopro inconsistente.

E só pude distinguir o vulto de Daniel correndo atrás dela com a mão estendida a fim de segurá-la. Eu corri atrás deles. Tentei gritar. Mas era tarde demais, ela já estava muito próxima.

Quando estava a pouquíssima distância das criaturas, Débora deu meia-volta. Virou-se na nossa direção e acenou. Sua boca moveu-se em um adeus. O silêncio da cidade parecia algo blasfemo e covarde diante de tudo aquilo.

Os servos a rodearam, as mãos enluvadas e brancas brigaram entre si para tocá-la.

Um momento ela estava lá.

E no outro não havia mais nada.

Como se ela nunca tivesse existido.

"Você é bem legal, Elie. Eu gostaria de ter te conhecido enquanto estava viva."

Meu fôlego perdeu-se em minha garganta, senti como se estivesse engasgando.

― Não...

Meus pés tropeçaram neles mesmos e caí na rua. A dor em meu rosto e membros quando toquei o chão abruptamente foi lancinante, repentina, e real. Senti minha tiara escorregar com o impacto. A dor física desapareceu tão rápido quanto havia aparecido. Efêmera como toda existência. Mas a dor aguda que me atingia por dentro continuou.

Levantei o rosto do chão e vi através do véu de lágrimas que os servos estavam muito próximos dele.

Ele.

Porque eu ainda evitava o nome dele? De que isso adiantava? Algum dia foi possível fugir da dor? Quem mais eu precisaria perder?

Daniel corria aos tropeços na minha direção, mas os servos estavam muito próximos. Logo eles o pegariam.

E depois a mim.

Talvez não fosse tão ruim. Não haveria mais dor quando eles me levassem. A angústia acabaria. Eu deveria me sentir satisfeita..., mas por que as lágrimas não paravam de cair?

Um dos servos alcançou Daniel por trás e conseguiu tocar seu braço esquerdo, que desapareceu imediatamente.

Ele estendeu o braço direito para mim, o que já não tinha uma mão. Sua boca se moveu tentando gritar meu nome. Ele queria que eu fugisse. Mas de que isso adiantaria? Correr era inútil. Reencarnar era inútil. Tudo que eu fazia era inútil. Porque eu lutava tanto se tudo ao redor indicava que eu merecia a inexistência?

O olho gigante no céu nunca esteve tão arregalado. Faminto. Voraz. Opaco.

Vitorioso.

Me apoiei no braço e consegui me pôr de joelhos.

Esperei.

A luta tinha acabado.

É melhor incendiar do que queimar aos poucos.

Eu não queria ver Daniel ser levado também, então desviei o olhar para o chão e vi o local onde minha tiara tinha caído, ela tinha estado comigo desde o início, e me perguntei se ela permaneceria ali quando eu me fosse.

Então algo aconteceu.

Porque aquela cidade não pertencia ao Oblívio, ela pertencia ao Silêncio, e eles tinham essências muito diferentes.

O Silêncio parecia cruel às vezes, inexpressivo, ainda mais apático do que o Oblívio. Mas quando todas as influências externas cessavam, era ele que nos acompanhava, ele era o único que nos permitia ver o que sempre esteve conosco, revelando o que sempre havia importado...

Está com medo do que o Silêncio pode lhe falar?

A tiara branca emitiu um brilho dourado, manifestando-se em uma lembrança no meio da rua. Mas por que naquele momento? Era como se a cidade quisesse me dar mais uma oportunidade. Mas como sairia daquela situação? A não ser que aquela fosse minha última lembrança, me dando acesso a segunda saída. Então eu estaria salva.

Mas Daniel não. 

Mais lágrimas brotaram quando eu soube que não queria perdê-lo.

Outro servo alcançou-o e tocou seu tórax, deixando um buraco no local.

Então fiz a única coisa que estava em meu alcance, a única coisa que poderia nos dar uma chance.

Eu toquei a tiara, e os fragmentos da lembrança vieram.

Eu estava sentada em uma mesa de restaurante e um senhor de idade, meio calvo, estava sentado na cadeira oposta. Ele me olhava com uma expressão de ternura, e uma onda de gratidão me envolveu por dentro.

― Pai.

― Hoje já faz um ano desde que você nasceu de novo – ele disse depositando uma pequena caixa embrulhada em cima da mesa. – Então você merece um presente de aniversário.

Eu estava tão feliz. Aquela era a primeira lembrança feliz que eu via.

― Pai... eu...

― Não precisa dizer nada, Elie...

E quando ele disse meu nome, foi como se algo se rompesse dentro de mim e eu soube que estava chorando.

Mas eu não podia permanecer ali, por mais feliz que aquela lembrança fosse. Me forcei a sair dela e vislumbrei um dos servos tocar o rosto de Daniel, metade dele desapareceu.

A lembrança me puxou de volta.

―... você sabe como sempre foi a sua mãe, sempre querendo controlar tudo e todos. Mas um dia ela vai te entender, Elie, só dê um pouco de tempo para ela.

Minha mãe e eu não nos falávamos desde que aquilo tinha acontecido. Aquilo. Quando eu matei aquela pessoa? 

Não havia tempo para tentar entender, eu não podia ficar muito tempo ali.

Mas eu apenas acenei com a cabeça e tentei limpar as lágrimas.

― Você não vai abrir o presente? Sinceramente eu não sabia o que comprar, nunca fui muito bom nisso, mas espero que você goste.

Desembrulhei a caixa e ao abri-la vi a tiara branca. Ela era um pouco larga e simples, sem nenhum adorno.

― É linda – eu disse pondo-a na cabeça. – Muito obrigada, pai..., mas eu não posso continuar aqui, tem alguém que precisa de mim.

Ele continuou sorrindo quando forcei a interrupção da recordação. Não houve despedidas, então eu estava de volta no meio da rua, na mão direita ainda segurava a tiara que brilhava.

Daniel continuava correndo em minha direção. Mas ele jamais chegaria, estava sendo cercado pelos servos do Oblívio. Mais uma vez deixei que a ira substituísse o desespero.

― AFASTEM-SE DELE!

E lancei a tiara na direção de Daniel. Ela fez um arco no ar, parecendo girar lentamente sobre si mesma como uma aureola de anjo, levando o som da minha voz e aterrissando no olho único do servo do Oblívio que estava mais próximo dele.

O guincho que a criatura soltou foi insuportável, desumano, um grito de loucura vindo de algo que não existia. Um grito que reverberou pelas ruas. Tapei meu ouvido direito com a mão que restava. O olho no rosto da criatura começou a efervescer. Os outros servos pararam. A criatura levou as próprias mãos ao olho ainda gritando e desapareceu completamente assim que o tocou, vítima de si mesmo, mas o eco de seu grito ainda continuou.

― AFASTEM-SE DELE AGORA! – gritei para os outros servos.

E como se impulsionado pela minha voz, o brilho da lembrança abdicada se intensificou. Os servos semicerraram os olhos e tentaram impedir a luz com as mãos em frente ao rosto. Por fim, eles se afastaram para os becos soltando guinchos parecidos com os de seu companheiro destruído.

E um momento depois a rua tinha voltado ao silêncio sobrenatural, vazia como sempre fora. E no centro dela, Daniel vinha até mim. Ou o que restara dele.

Esperei que ele chegasse sem tirar os olhos do chão, ainda ajoelhada.

― Elie...

Um soluço violento percorreu meu corpo espiritual, e as malditas lágrimas voltaram a escorrer. O desespero retornou com força apertando meu peito. Daniel ajoelhou-se na minha frente.

― Obrigado.

Porque aquilo doía tanto? O caos em minha mente era insuportável.

― Ela se foi, Daniel... o Oblívio levou ela – eu disse entre os soluços que sacudiam meu corpo, minha voz estranhamente rouca. – Agora ela não existe mais... nunca mais vai voltar. Ninguém nunca mais vai lembrar dela, talvez nem mesmo nós. Como pode isso...?

― Eu ainda estou aqui, nunca vou te abandonar, eu prometo – ele disse, e quando vi que metade de seu rosto estava eclipsado, como uma lua minguante, senti minha garganta se fechar ainda mais.

Ele tentou me abraçar como podia com o fiapo de corpo que ainda lhe restava.

― Ela se foi... ela se foi... – minhas palavras ficavam cada vez mais incompreensíveis à medida que a represa se rompia. – E ela era como eu... ela era como eu...

Perdi todo o conceito de tempo enquanto estivemos ali, abraçados. Ele também estava chorando, e isso era tudo que podíamos fazer.

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