Parte 7/10 - A Mão do Assassino
Nota autoral:
Olá, pessoa que estará lendo isso em um futuro próximo. Criei esta nota porque este foi o capítulo que mais gostei de escrever e achei justo dedicá-lo a todos que já leram até aqui. Mas quero deixar um agradecimento especial às leitoras EspiralTemper e DonnaBranca, que estão acompanhando essa história desde o primeiríssimo capítulo e são sempre as primeiras a ler e votar quando um novo é publicado. Obrigado pelo incentivo!
Espero que gostem desse capítulo tanto quanto eu. =)
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Eu estava sentada em um banco acolchoado, à minha frente havia uma mesa quadrada com um copo de refrigerante em cima. Estava escuro, mas havia luzes coloridas em toda parte, pessoas dançavam e curtiam a festa num ritmo animado. A maioria segurava um copo de bebida na mão.
E havia música, muita música.
Era uma boate muito parecida com a de Satayash.
Eu estava sozinha ali no banco enorme e confortável. De alguma forma, o banco era tão grande que fazia com que eu me sentisse pequena e solitária diante de um mundo tão gigantesco que até perdia o sentido.
A amiga que tinha vindo comigo para a balada provavelmente estava com algum cara no meio daquela multidão. Ou talvez já tivesse ido embora com ele. Tudo bem, eu não me importava, esse fora o combinado. Meu apartamento não era muito longe dali e voltar sozinha não seria problema.
O gás no meu refrigerante borbulhava convidativo. Mas eu não sentia vontade de beber, nem o refrigerante e muito menos qualquer bebida alcoólica. Principalmente naquela noite. Beber só pioraria aquela sensação dentro de mim. A sensação de não pertencer a lugar nenhum estava mais forte do que nunca.
Era desconcertante. Mesmo ali, com todas aquelas pessoas, eu me sentia sozinha e um pouco infeliz. Não acontecia sempre, mas quando acontecia era algo forte e insolúvel em meu interior. Fazendo com que eu quisesse me sentir alheia e a despeito de tudo.
Foi nesse momento que percebi que não se tratava de um sonho, mas de uma lembrança.
Como eles reagiriam se soubessem que uma criminosa estava observando?
Era demais para mim. Eu definitivamente não estava com ânimo para balada naquele fim de semana. Peguei minha bolsa e olhei no relógio do celular lá dentro, já estava tarde. Hora de ir para casa. Pelo menos eu não teria ressaca no dia seguinte.
Com o canto do olho notei alguém sentando ao meu lado no banco. No que virei o rosto vi olhos verdes me encarando com intensidade. O rapaz louro deu um gole na bebida que segurava, como se estivesse tentando tomar coragem, e sorriu.
Eu queria olhar para o outro lado, queria não demonstrar tanto interesse quanto ele. Não era esse o jogo que todos jogavam? Mas por algum motivo não consegui desviar o olhar. Porque algo nele parecia tão... familiar.
"É claro, sua sonsa. Nesse exato momento você está deitada ao lado dele."
— Oi – ele disse alto o bastante para ser ouvido acima da música.
— Oi.
Ele estava usando a mesma roupa de quando havia chegado na boate de Satayash. Isso significava... seria uma coincidência ou aquela seria... bobagem, talvez ele não tivesse tantas roupas para sair. Senti a realidade delicada do sonho se agitar, impedindo que meu pensamento prosseguisse.
— Nos conhecemos de algum lugar? – ele perguntou.
O meu "eu" da lembrança franziu o cenho, tentando lembrar se já o tinha visto antes. Mas ele entendeu meu silêncio de forma errada, colocando as mãos na frente de forma defensiva.
— Ah, isso não é nenhum tipo de cantada nova – ele parecia muito nervoso, o que me fez sorrir. – É só que... eu vi você sentada aqui sozinha e tive a impressão de que nos conhecemos de algum lugar. Não que você não pareça interessante o suficiente para ser... hã... cantada.
Precisei fazer força para não rir. Ele era um desastre. Mas tentei falar num tom reconfortante.
— Também acho que já te vi antes. Mas não lembro onde.
— Eu trabalho em uma lotérica na cidade vizinha, talvez você já tenha passado por lá – ele disse isso coçando a parte de trás do pescoço, parecendo meio sem jeito ao falar do trabalho.
— Não, acho que nunca fui lá. Eu me mudei para esta cidade há pouco tempo – disse isso e pensei que poderia facilitar as coisas um pouco mais, afinal, não podia negar que ele também era atraente. – Eu trabalhava em um call center, então acho que a única forma de termos tido algum contato foi se eu tiver tentado te vender algo pelo telefone.
Ele sorriu, contente por ter sido correspondido.
— Se ouvisse sua voz, eu provavelmente compraria qualquer coisa.
Rezei para que a penumbra do local escondesse o quanto eu devia estar vermelha.
"Como um tomate, diria Débora."
— A propósito – ele disse –, me chamo Daniel.
— Elie – me apresentei, e bebi um gole do refrigerante numa tentativa inconsciente de parecer natural.
O silêncio havia descido sobre nós. As batidas da música poderiam muito bem ser as do meu coração. Por que eu me sentia tão nervosa?
— Você parecia meio triste agora pouco – disse Daniel. – Aconteceu alguma coisa?
Senti algo tocar meu interior com mãos de gelo.
— Não. Não é nada, é só que... deixa para lá.
O que eu iria dizer? Que estava tendo uma crise existencial no meio de uma festa? Mas por algum motivo esquisito eu tive a impressão de que ele entenderia.
Ele chegou um pouco mais perto no banco. Nós dois olhamos para as pessoas que dançavam na pista.
— Sabe, às vezes eu acho que as coisas não fazem sentido – ele disse, parecendo ler meus pensamentos. – Nós nascemos, vivemos, morremos e somos esquecidos. Como se a realidade e a existência não tivessem propósito algum.
Olhei para ele, que continuava olhando para a pista de dança como se enxergasse algo além das pessoas que dançavam.
— Talvez você vá sair correndo com o que eu vou dizer. Talvez você vá pensar que eu sou algum tipo de gótico que se perdeu no caminho para o cemitério. Mas às vezes eu penso, pela maneira como as pessoas se tratam, que elas não percebem que tudo o que temos perante algo tão sem sentido quanto a morte somos nós mesmos e...
— ... uns aos outros – completei.
Ele olhou para mim. Eu já tinha chegado àquela mesma conclusão tantas vezes antes. E eu tive a certeza de que já tínhamos tido aquele tipo de conversa em algum outro momento... em algum outro lugar..., mas onde?
— Sei o que quer dizer – eu disse. – Antigamente eu costumava pensar que o vazio existencial dentro de mim iria me consumir até não sobrar nada. Mas com o tempo foi passando, e agora eu só sinto de vez em quando. Como agora pouco. – E acrescentei num tom brincalhão: – Mas se você está perdido, rapaz gótico, o cemitério mais próximo fica a quilômetros daqui.
Ele riu e pareceu relaxar um pouco, em seguida levantou-se do banco e se pôs de pé diante de mim.
— Quer dançar? – disse estendendo a mão.
Dei meu melhor sorriso e aceitei o convite, ele me conduziu até a pista de dança. A música eletrônica que tocava parecia querer expressar algum sentimento abstrato e inexplicável. E enquanto nós dançávamos pensei que talvez existisse algum sentido para todo aquele caos que formava a existência. Um motivo invisível em algum lugar, que se revelaria se descobríssemos alguma coisa antes.
Em algum momento naquela noite nós nos beijamos.
E muito mais tarde eu disse para ele:
— Eu te convidaria para ir lá em casa, mas ainda está tudo uma bagunça por causa da mudança.
— Podemos ir para outro lugar.
— Onde?
— Tem um hotel aqui perto. O que acha?
— Por mim tudo bem.
Nós caminhamos até as portas da boate, mas antes de sairmos ele disse:
— Me desculpe por estar tão nervoso, é a primeira vez que levo uma garota para um hotel.
Eu não conseguia parar de rir. Quantas pessoas falavam com tanta sinceridade assim no primeiro encontro?
— Tudo bem – eu disse –, é a primeira vez que me convidam também.
E era mesmo. Não apenas isso, mas também sentia que aquela era a primeira vez que eu estava com um homem desde que havia saído da prisão. Daniel não era o único a sentir nervosismo.
Nós nos beijamos antes de sair pelas portas.
E o sonho se desfez em uma névoa prateada.
*
Quando meus olhos se abriram, a luz do quarto estava mais branda. Como se tivesse se adaptado enquanto dormíamos para proporcionar conforto visual.
"Serviço de qualidade, parabéns, Morfélia" – pensei sonolenta.
Ao meu lado Daniel ainda dormia, seu peito subia e descia de forma quase imperceptível, soltando um ronco baixo cada vez que exalava. Levantei da cama com cuidado, ele parecia ainda estar em um sono profundo e não fez menção de acordar. Me dirigi até a janela e espiei através da cortina.
Lá fora a noite ainda se estendia no céu. Não que aquela treva absoluta pudesse ser chamada de noite. Logo acima o Oblívio virou sua pupila para onde eu estava. Lânguido.
Fechei as cortinas prontamente.
O que eu tinha imaginado? Que quando acordasse e olhasse pela janela veria um dia claro e um sol brilhante no lugar do Oblívio? Não. Naquele lugar a noite era eterna. Esse pensamento parecia tão certo quanto o fato de eu não ter um braço.
Meu vestido e minhas roupas de baixo tinham desaparecido. Eu estava prestes a usar o telefone para ligar para Morfélia e descobrir o que tinha acontecido com eles, quando decidi vasculhar as gavetas da cômoda e, para meu alívio (e de certa forma até satisfação), encontrei uma camiseta simples e calças jeans que seriam mais confortáveis do que a roupa de festa. Mas a tiara branca continuava descansando ali em cima. Me olhei no espelho e ajeitei ela em meu cabelo.
Não poderia negar, eu me sentia muito mais disposta depois de ter dormido.
Olhei para Daniel que continuava dormindo e decidi não o acordar. Eu precisava pensar e fazer algumas coisas. Saí para o corredor e olhei para os dois lados, estava vazio e silencioso como sempre tinha estado. Meus pés me levaram até a porta do quarto do senhor idoso.
Parei em frente à entrada e me preparei para o que iria acontecer. Pensei em todos os argumentos que poderia usar para convencê-lo de que não precisava se entregar ao esquecimento. Eu não deixaria de tentar pelo menos mais uma vez.
Bati na porta e como esperado não houve resposta. Abri um pouco devagar, com medo de parecer inconveniente de novo.
— Com licença.
O quarto estava escuro. Senti minhas pupilas se dilatando para se adaptar e quando minha visão se acostumou pude ver a cama, ela estava arrumada e vazia. Como se o homem nunca tivesse estado ali. Ao lado dela, sobre a mesa de cabeceira, vi que o frasco de remédios agora estava cheio e intacto, cheios de malícia.
O homem tinha desaparecido enquanto dormia.
Aquilo foi como um balde de água fria em meu rosto. Saí do quarto um pouco desnorteada e fui em direção ao quarto número um. Bati três vezes na porta e apenas uma inatividade estranha me recebeu, bati novamente com insistência. Nada.
— Débora, está aí? – chamei.
Já estava começando a ter um mal pressentimento sobre aquilo.
Abri a porta e olhei dentro do quarto. Ali também estava escuro e o frasco de remédios também estava intacto, mas vi que as cobertas sobre a cama estavam desarrumadas, como se alguém tivesse passado a noite ali. Fora isso, não havia sinal de Débora.
Me apressei até as portas do elevador, que se abriram assim que me pus em frente à entrada com a chave número três na mão direita (tomei o cuidado para deixar a porta do quarto destrancada).
Quando as portas se abriram novamente, o saguão de entrada se estendeu à frente. O som de piano continuava tocando de forma incessante. Passei por Morfélia na recepção, ela estava ocupada escrevendo alguma coisa em um caderno.
— Olá Elie, dormiu bem? – perguntou ao me ver.
— Sim, obrigada. Você viu a Débora?
Ela fez um sinal com os olhos azuis na direção das poltronas do outro lado. Quando me virei, vi a garota de cabelos castanhos ondulados encolhida com os pés sobre o sofá. Seu olhar parecia tão perdido que nem havia notado minha presença.
— Você deu algo para ela comer? – sibilei para Morfélia.
— Não – ela respondeu com voz inalterada. – Ela está desse jeito desde que desceu, como se minha hospedagem não fosse boa o suficiente para...
Deixei que ela continuasse a falar e me aproximei de Débora.
— Elie – ela disse erguendo os olhos para mim e forçando um sorriso abatido –, você trocou de roupa. Caiu bem em você.
— O que aconteceu? – perguntei ao sentar a seu lado. – Por que está com essa cara?
— Não está muito bonita, não é? – ela tapou o rosto com as mãos e esfregou os olhos.
Esperei até que ela parecesse mais confiante.
— Eu lembrei de algo – declarou.
Pela cara dela, não parecia ter sido uma lembrança muito boa.
— Você quer falar sobre ela?
Ela me olhou com uma expressão atormentada e disse:
— Lembra quando eu contei sobre aquele garoto e... que nós...
— Claro – eu disse rapidamente para que ela não se sentisse mais constrangida. – Mas repito que vocês não fizeram nada de errado. Você teve uma experiência natural que todo mundo tem. Só isso.
Pensei em contar o que houve entre Daniel e eu na noite passada, talvez isso a fizesse se sentir menos culpada. Talvez ela até achasse graça ao me ver vermelha novamente, um sorriso já estava quase se formando em meus lábios.
— Eu fiquei grávida – ela disse.
A sentença trespassou meus pensamentos.
— O que?
Ela voltou a encarar fixamente o tapete felpudo.
— A lembrança que recuperei ontem me mostrou isso – ela colocou os braços ao redor dos joelhos. – Eu fiquei desesperada... eu... não sabia o que fazer...
Tentei acalmá-la, mas ela não pareceu ouvir.
— Eu contei para minha mãe e ela ficou furiosa – sua voz tremulava em cada palavra. – Mas isso não foi nada comparado ao meu pai. Ele parecia enlouquecido... disse que tinha criado uma prostituta... eu pensei que ele me mataria.
Todas as palavras fugiram da minha boca, tive medo de que qualquer coisa que eu dissesse, qualquer coisa que eu perguntasse, pudesse piorar ainda mais a situação. "Ele te bateu?" – quis perguntar. Mas o olhar que ela me lançou estava cheio de uma resposta dolorosa.
— Ele foi atrás do rapaz e da família dele, ameaçando com processos judiciais e querendo extorquir dinheiro. Como se eu fosse o motivo de alguma negociação... – a última palavra se perdeu em um soluço. – A família dele queria um teste de DNA quando a criança nascesse, mas ele assumiu que era o pai... acho que eu nunca tive tanta vergonha na minha vida...
Nesse momento eu já começava a sentir o estremecimento passando para mim.
— Mas – comecei com cautela –, se ele iria assumir então talvez fosse porque ele realmente gostasse de você. Tudo ficaria bem, não é?
Ela me olhou com olhos esbugalhados. Então eu compreendi.
— Ah – ofeguei –, mas não era isso que você queria.
Ela começou a chorar e me abraçou.
— Como pode... foi só um erro... eu... – disse entre os soluços convulsivos. – Eu não quero ter esse filho, Elie. Eu não posso. Eu só queria poder sair de c-casa quando ficasse maior e ter minha p-própria vida. Eu não posso... eu não me sentia preparada.
Afastei ela com cuidado.
— Me escuta – eu disse, tentando limpar as lágrimas dela. – Isso não importa mais. Nós estamos aqui, lembra? Nada disso importa. As lembranças, elas... elas parecem dolorosas, mas elas só servem para nos lembrar quem nós somos de verdade. Pense nisso, ok? Vai ficar tudo bem. Nós podemos contar uma com a outra.
Ela se recostou no sofá e se concentrou em limpar o rosto.
— Obrigada – disse num fio de voz.
Por alguns segundos vislumbrei a escuridão na barriga dela, e um pensamento sinistro percorreu minha mente.
O telefone na recepção tocou, quebrando o ritmo melódico da música instrumental. Morfélia atendeu antes que o terceiro toque se completasse:
— Alô... ah, olá, como passou a noite?... sim... ah, sim, suas amigas já estão aqui embaixo. Claro... Ok, de nada – e pôs o telefone de volta no lugar.
Ela se levantou da cadeira atrás do balcão e disse para nós:
— Era Daniel, ele já está descendo.
Acenei em resposta.
— Me desculpe, eu nem perguntei se você dormiu bem – disse Débora ao meu lado. – Apesar de tudo eu me sinto bem menos cansada agora. Você também se sente assim?
— Sim, eu... dormi bem também – disse, mas Débora detectou algo suspeito no meu tom de voz, ela semicerrou os olhos. – O que foi?
Me fiz de desentendida.
— Você parece estranha.
Me aproximei um pouco mais dela com ar confidente.
— Daniel e eu dormimos juntos – sussurrei.
— O quê?! – ela arregalou os olhos.
Apenas lancei um sorriso travesso em resposta, e fiquei feliz ao ver que ela começara a rir, embora o nariz fungasse um pouco.
— Então vocês...? – ela tentou.
— Sim – emplaquei.
— Isso é possível? Aqui?
— Me perguntei a mesma coisa.
E o assunto morreu porque as portas do elevador se abriram e Daniel veio em nossa direção com uma expressão jovial.
— Puxa, achei que estivesse sozinho quando vi que não tinha ninguém lá em cima.
Ele continuava com as mesmas roupas de antes.
— Como passaram a noite? Aconteceu algo?
— Ah, eu passei muito bem – disse Débora com um sorriso malicioso. – E aposto que você também.
Ele abriu a boca e franziu a testa, em seguida olhou para mim como se dissesse "você contou?".
Pigarrei e tentei mudar de assunto.
— O que acham de falarmos com Morfélia antes de sairmos novamente? Tem algumas coisas que eu quero perguntar a ela.
E lancei um olhar significativo para Daniel. A compreensão surgiu em seu rosto.
— Ah, certo.
Sim, eu precisava perguntar se havia alguma forma de ficar na cidade para sempre. Eu já estava me acostumando tanto com as peculiaridades daquele lugar que já as recebia de bom grado. Eu poderia continuar existindo sem um braço. E também poderia conviver com a ameaça do Oblívio. Por que desde que eu havia chegado naquele lugar eu me sentia mais... como eu mesma. E a ideia de ficar com pessoas que eu começava a amar era tão inesperada quanto maravilhosa.
— Morfélia – eu disse já me aproximando da recepção –, tem algo que eu preciso te perguntar.
Ela levantou os olhos púrpuras do que escrevia e direcionou-os para mim.
— Se eu puder responder, assim o farei.
Olhei para trás e vi que Débora e Daniel já estavam bem próximos. Talvez Débora também gostasse da ideia.
— Eu queria saber se é possível... – me interrompi quando reparei em algo que não estava ali antes.
A campainha de mesa acima do balcão emitia uma luz dourada.
— Ora, ora, parece que temos uma sortuda hoje – disse Morfélia em tom divertido.
Daniel apareceu ao meu lado.
— O quê? Ah...
— É uma lembrança minha – eu disse. – De que cor você enxerga ela?
— Prateado – respondeu Daniel.
— Hum... – fez Morfélia. – É espantoso o quanto vocês sabem...
Débora apareceu ao lado com uma expressão de dúvida.
— Do que vocês estão falando?
Daniel virou-se para ela:
— Você não consegue ver?
— Ver o quê? Por que estão todos olhando para a campainha?
Olhei para Morfélia com ar interrogatório:
— Por que ela não vê?
Ela deu de ombros.
— Isso é algo que vocês precisam descobrir sozinhos, se quiserem. Aliás, por que está demorando para recuperar sua memória? Não era isso o que você queria? Toque logo no objeto.
Lancei um olhar a todos ao meu redor, Daniel me incentivou com um aceno de cabeça. Respirei fundo e toquei a campainha.
O som agudo reverberou pelo aposento até se perder pelas paredes. E quando o som acabou eu já não estava mais lá.
O atendente do hotel saiu de trás de uma porta ao ouvir o barulho da campainha, seu rosto estava embaçado pelo Esquecimento. Ouvi enquanto Daniel alugava um quarto para nós. Eu ainda sentia o nervosismo presente, embora estivesse mais ameno agora.
Mas quando o meu "eu" da lembrança olhou com atenção para o atendente do hotel, o nervosismo voltou com força total, porque de alguma forma eu achava seu rosto familiar, e não tinha uma boa impressão sobre ele.
Tentei ignorar a sensação enquanto subia as escadas com Daniel.
— Você está bem? – ele perguntou. – Se quiser ainda posso te deixar em casa. Sei que é meio precipitado no primeiro encontro...
— Eu estou bem.
O quarto em que entramos tinha uma cama de casal, duas mesas de cabeceira, dois tapetes pequenos de cada lado, e um banheiro. Coloquei minha tiara e a bolsa na cômoda e antes que minha tensão colocasse tudo a perder eu o beijei, a sensação dos lábios dele nos meus me acalmou. A porta foi fechada às pressas. E quando me dei conta já estava deitada na cama.
Acho que eu nunca tinha feito aquilo na vida. Acho até que era virgem naquele momento porque sentia um medo incompreensível por dentro. Tive medo de que ele soubesse que eu já tinha estado em uma prisão. Tive medo do que ele faria se soubesse o que fiz.
— Espera – eu disse, me levantando da cama. – Preciso usar o banheiro antes.
— Ok – disse Daniel com um sorriso. O rosto corado e o cabelo já um pouco bagunçado.
Entrei no banheiro e acendi a luz. Meu coração palpitava loucamente.
A moça que me olhou no espelho era a mesma que havia sorrido para mim no hotel de Morfélia. Os cabelos ruivos caiam até os ombros. As sardas pontilhavam a pele acima do nariz de uma forma adorável. Eu era bonita, que droga! Por que eu precisava sentir aquele medo?
Liguei a torneira e lavei o rosto. Aquilo sempre me ajudava a me acalmar, desde a época da escola, quando eu não tinha coragem nem de sair de casa.
Dei um sorriso e o espelho me disse que tudo daria certo. Que eu merecia estar com alguém que gostasse de mim. Pelo menos por uma noite.
Ouvi batidas na porta do quarto.
— Já estou indo – disse Daniel.
Ouvi a porta se abrindo e alguém perguntou algo para ele.
— Ah, sem problema – respondeu Daniel. – Acho que está aqui em algum lugar.
A água na pia continuava correndo, emitindo um barulho contínuo e hipnotizante.
O meu "eu" da lembrança começou a tremer, porque se lembrou de onde eu tinha visto o atendente do hotel antes. E eu sabia que era ele quem falava com Daniel na porta, embora o Esquecimento impedisse que eu ouvisse qualquer coisa que era dita.
O atendente sabia o que eu tinha feito.
Abri a porta do banheiro e vi que os dois estavam na porta do quarto, o rosto do atendente continuava distorcido pelo Esquecimento, mas pude distinguir um sorriso oblíquo quando ele entregou algo para Daniel e disse:
—Tenham uma boa noite – e saiu.
Daniel fechou a porta devagar, sem tirar os olhos do que segurava na mão.
Senti o Esquecimento ganhar força na lembrança, tentando aniquilar tudo, tentando impedir que eu visse e ouvisse.
Um olho gigante surgiu no teto do quarto, algo que não pertencia à recordação original.
"Venha para mim" – disse o Oblívio. – "Eu te pouparei de qualquer dor".
Mas eu lutei para continuar ali, eu já não conseguia ouvir, mas pelo menos conseguia ver.
Os olhos de Daniel estavam arregalados quando se voltaram para mim, as sobrancelhas tão unidas que pareciam querer se tornar apenas uma. Algo saiu da minha boca, e eu soube que era o nome dele. O Esquecimento me proibiu de ver o que ele segurava. Ele tinha descoberto...
Meu coração queria sair pela boca.
Ele disse algo que não entendi.
Eu tentei decifrar o que tinha em seu rosto: Medo? Espanto? Aflição? Nojo? Mágoa?
Fiz força para ouvir o que ele dizia:
— ...assim como ela – foi tudo o que consegui entender.
Ele colocou a coisa que segurava em cima de uma cômoda e pôs as duas mãos no rosto.
Eu me aproximei dele, queria acalmá-lo, queria explicar alguma coisa, ou dizer qualquer coisa antes de ir embora. Mas quando toquei em seu braço ele me empurrou.
Dei alguns passos cambaleantes para trás, mas o tapete abaixo de meus pés escorregou me fazendo perder totalmente o equilíbrio. A última coisa que vi foi o rosto de Daniel. Eu estendi minha mão esquerda para que ele segurasse. Tinha ciência de que meus olhos imploravam, porque a gravidade estava me levando para baixo. A expressão dele mudou para medo e sua boca tentou formar um nome. Não era medo de mim, era medo do que aconteceria comigo. Ele estendeu a mão direita. Mas agora era tarde demais... tão tarde...
A mão dele desapareceu do meu campo de visão, e depois seu rosto. E tudo que eu via agora era o teto do quarto... e o olho.
Eu pensava que cairia para sempre.
Abaixo, apenas o nada estava me esperando.
Ou assim eu desejava.
Mas o que me esperava era a extremidade pontuda da mesa de cabeceira, que perfurou sem hesitação a base do meu crânio.
A dor veio e se foi.
— Elie?! Elie?! – ouvi sua voz.
Tão tarde...
— Elie?!!!
Ficando cada vez mais distante.
Em seguida a escuridão, e com ela, abençoado, o silêncio. As duas forças que sempre competiam na cidade silenciosa deram as mãos e vieram me buscar.
— Elie?!
Ele continuava gritando.
— Elie, você está bem? – ouvi a voz preocupada de Débora.
Abri meus olhos e vi que os rostos deles me olhavam de cima.
— Elie, você caiu quando tocou na lembrança! – disse a voz dele. – Você se machucou?
— Eu estou bem... – minha voz saiu fraca enquanto tentava me apoiar.
Ele estendeu a mão para me ajudar a levantar.
Morfélia apareceu em meu campo de visão com seu sorriso esmaecido e pálpebras preguiçosas:
— Vejo que recuperou uma lembrança marcante, querida. Mas o que é que você queria me perguntar antes de ela aparecer?
"...ficar nesta cidade para sempre..."
— Nada – eu disse enquanto me levantava por conta própria e ignorava a mão do assassino. – Não era nada importante.
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