Parte 6/10 - Olhos e Pílulas
O silêncio sobrenatural, já esperado, nos encontrou do lado de fora, impedindo que nossos passos soltassem qualquer ruído. A pressão nos ouvidos se fez presente novamente. Mas agora eu até me sentia satisfeita com ela, como se meus pensamentos ficassem mais claros. Não sei se aquilo era possível, mas sentia muita vontade de descansar em um lugar calmo para variar. Eu poderia me sentar ali mesmo na calçada e aproveitar o silêncio, se não fosse a ameaça iminente do Esquecimento.
— Nós precisamos tomar cuidado – eu disse o mais alto que pude –, não vamos ouvir quando os servos do Oblívio se aproximarem
— Sua voz... – começou Daniel, o brilho de neon na porta da boate dava um tom rosado ao rosto dele.
— Sim, aqui fora o silêncio reprime qualquer som. Precisamos olhar em todas as direções enquanto caminhamos. Não sabemos de que lado eles podem aparecer.
Débora olhava para cima na direção do olho gigante, roendo as unhas. Olhei para ele também. Parecia que nos observava atentamente, sem nunca piscar. Até pude distinguir as artérias na parte branca da retina trovejando na direção da íris escura, como relâmpagos vermelhos.
— Então... aquilo é o Oblívio? – indagou Daniel.
— Não olhem para ele – eu disse desviando o olhar. – É isso que ele quer, nos distrair até que seus servos cheguem e nos peguem de surpresa.
Examinei os dois lados da avenida para ver se alguma das criaturas já havia chegado, mas não havia nada, os postes continuavam a emoldurar os dois lados da rua em uma fileira de luzes brancas que se estendiam a perder de vista, até parecerem se unir no horizonte.
Nós caminhamos devagar pela calçada enquanto observávamos os estabelecimentos. Eu cuidava da nossa retaguarda, procurando qualquer movimento suspeito. Mesmo acompanhada, a sensação de estar sozinha parecia se acomodar em meu íntimo, como se fosse um hóspede que há muito já se sentia em casa. Mas, ali fora, a sensação mais evidente era a de estar sendo julgada silenciosamente. Vendo que os outros pareciam se sentir da mesma forma, tive vontade de falar qualquer bobagem para quebrar a sensação.
— Que lugar estranho – disse Daniel, parecendo ler meus pensamentos -, parece uma cidade fantasma.
Débora deu sua familiar risada anasalada.
— É exatamente o que ela é, mas nós é que somos os fantasmas.
O poste bem acima de nós piscou de repente, fazendo a luz tremeluzir por alguns instantes. Nós olhamos um para o outro, nossos rostos sumindo e reaparecendo em milésimos de segundo, e depois olhamos para cima, assustados. Até que a luz voltou a se estabilizar e devolveu o aspecto simétrico da rua.
— Será que devemos avisar a prefeitura para trocar essa lâmpada? – perguntou Daniel.
Nós começamos a rir ao mesmo tempo, tentando disfarçar o nervosismo.
— Detesto ficar aqui fora – disse Débora, cruzando os braços e segurando os ombros –, detesto aquela coisa no céu e não suporto ficar nesse silêncio sozinha com meus pensamentos. Será que não podemos entrar em qualquer estabelecimento?
Voltei a olhar para trás, até onde os postes iluminavam não havia nada de anormal.
— Aquilo parece um teatro – disse Daniel apontando para um estabelecimento largo, com alguns degraus que subiam para uma entrada ladeada por colunas de mármore. – O que acham de dar uma olhada?
— Por mim tudo bem – eu disse. Débora também assentiu, aliviada.
Atravessamos a rua a passos largos.
— Vocês acham que vai estar barulhento lá dentro também? – perguntei com um pouco de receio. De repente o silêncio não me parecia tão ruim.
— Só se o teatro ainda não ter... – Daniel interrompeu o que estava dizendo, estacando a poucos centímetros do primeiro degrau.
No patamar de entrada, duas criaturas encapuzadas com rostos oculares saíram de trás das colunas ao lado das portas, quase simultaneamente, como se estivessem nos esperando. Segurei o braço de Débora antes que ela avançasse mais. Quando ela viu os dois vultos soltou um grito mudo.
— Acho que as entradas esgotaram – sussurrou Daniel.
Nós fizemos meia-volta e corremos para a esquerda, na direção do estabelecimento ao lado. Mais à frente, virando a próxima esquina, quatro servos do Oblívio nos avistaram e vieram para nós sem nem hesitar, como se fossem teleguiados pelo olho gigante. Olhei para trás e vi que as duas criaturas estavam ainda mais próximas, todas as mãos estendidas e repugnantes, ávidas para nos reduzir a nada. Ganhando distância não importando o quanto corrêssemos.
Paramos em frente à uma cerca viva que circundava um pequeno jardim, bem no meio dele um caminho de lajotas de concreto levava até as portas de vidro de um prédio com seis andares. Luzes tênues brilhavam através das cortinas nas janelas lá em cima.
— Temos apenas uma escolha agora – eu disse.
Daniel correu a frente e abriu as portas de vidro para que passássemos, as seis criaturas se encontraram onde estávamos poucos segundos antes. Nós entramos no prédio e quando fechamos as portas elas se aproximaram e nos observaram através do vidro, as mãos enluvadas com dedos longos deslizando sobre a superfície. Por um momento prendemos o fôlego achando que elas tentariam forçar a entrada, mas não o fizeram. Elas simplesmente voltaram pelo caminho de lajotas e se misturaram às sombras onde os postes não conseguiam iluminar.
Nossos ouvidos foram preenchidos por música instrumental, muito baixa, que vinha de alguma caixa de som no teto e soava pelo ambiente. Nós nos viramos e percebi que, embora o lugar não fosse muito grande, estávamos completamente sozinhos ali. O estabelecimento estava vazio.
Havia um balcão de recepção logo à nossa frente com um grande quadro vermelho bordô pendurado atrás, na parede; nele havia várias plaquinhas com números e ganchos para pendurar chaves. A maioria das chaves continuava ali, mas alguns ganchos pendiam sem nada.
— Isso é um... hotel? – deduzi enquanto também notava um lustre cheio de cristais no meio do salão, girando displicentemente como se acompanhasse a música agradável de piano.
Nós nos aproximamos do balcão, mas atrás dele só havia uma cadeira giratória vazia e um telefone sobre a mesa.
— É, parece muito com a recepção de um hotel. Os outros estabelecimentos que vocês estiveram também estavam vazios? – perguntou Daniel enquanto analisava a campainha de mesa depositada acima do balcão de madeira, o brilho do lustre reluzindo em sua superfície metálica. Ele achou melhor não a tocar, e eu também não estava muito afim de experimentar para ver o que acontecia. Os sons naquela cidade pareciam ter um efeito único para influenciar as situações.
— Nós só estivemos em uma igreja, mas, assim como a boate, estava lotada – disse Débora.
— Vocês acham que pode ter alguma lembrança aqui para nós? – perguntei.
— Vai saber. Eu jamais imaginaria que haveria uma lembrança minha naquela boate.
Em um canto do salão havia algumas poltronas e sofás ao redor de uma pequena mesa, em cima dela um vaso ornamentado e azul armazenava botões de rosa igualmente azuis. Abaixo ainda havia um tapete felpudo e bege que dava um ar ainda mais aconchegante ao pequeno espaço.
— Acho que vou me sentar ali um pouco – eu disse, já me dirigindo até uma das poltronas.
Assim que sentei percebi que a poltrona era tão confortável quanto parecia, tanto que me surpreendi quando bocejei e meus olhos se umedeceram. Débora e Daniel vieram até onde eu estava. Quando ela passou por mim, notei com mais atenção aquele buraco em sua barriga; parecia absorver qualquer luz que estivesse próxima, era tão estranho que parecia algo saído de um sonho, embora provavelmente eu não estivesse tão diferente sem um braço.
Débora sentou-se na poltrona ao meu lado e soltou um suspiro.
— Acho que eu não me importaria se sumisse enquanto estivesse aqui sentada, aproveitando essa paz.
— Não fale assim. Nós vamos recuperar nossas lembranças e renascer em uma vida melhor do que a que tivemos antes. Eu sei que vamos. – Encarei o rosto cansado dela. – Mas acho que não seria nada mal descansar um pouco. Vocês também não se sentem assim? Como se suas mentes estivessem cansadas? Como se precisassem dormir um pouco?
Débora esticou as pernas, assentindo com os olhos fechados.
— Eu sinto – disse Daniel, que agora estava sentado no sofá ao lado. – Mas acho que não tanto quanto vocês. Deve ser por que, de nós três, fui o último a chegar.
Ele franziu um pouco a testa pensando em algo e em seguida dirigiu a palavra para mim:
— Por falar na vida que tivemos antes, Elie, por que você disse que tinha um histórico de criminosa para Satayash?
— Ah – ofeguei, um frio percorreu meu âmago, espantando um pouco do sono. Débora abriu os olhos e me fitou com atenção. De repente tive medo do que eles pensariam a meu respeito, mas reuni coragem e disse sem conseguir encará-los: – Eu recuperei uma lembrança na boate. Ela era tão confusa quanto as outras e, em algumas ocasiões, eu não conseguia enxergar ou ouvir direito, mas... eu tive a impressão de que passei algum tempo em uma prisão. Eu não sei exatamente o que fiz... – fiquei em silêncio por um momento.
A melodia ironicamente calmante continuava tocando.
— Mas isso não importa muito – disse Daniel. – Não é como se todas as pessoas que já foram presas fossem más. Existe muita gente ruim que nunca foi presa. Pelo menos acho que era nisso que eu costumava pensar quando estava vivo.
Me senti agradecida pelo comentário.
— Eu sei, mas... existe a possibilidade de eu ter matado alguém, talvez uma das minhas colegas de classe, eu não sei. – Finalmente olhei para Débora e depois para Daniel: – Mas eu juro que nunca tive intenção de matar ninguém. Eu... eu realmente acredito que ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa. E se eu precisar me redimir pelos meus pecados nesta cidade, então eu vou fazer isso. Nem que eu precise despertar todos os cidadãos.
Sim. Era isso, eu finalmente tinha compreendido o motivo pelo qual a segunda saída só se apresentava ao recuperar todas as lembranças. A segunda armadilha daquela cidade tratava-se de uma autoavaliação onde, no fim, o cidadão decidia qual saída merecia tomar.
— Está tudo bem, Elie – disse Débora, estendendo a mão e tocando meu ombro esquerdo. – Eu sei que você é uma pessoa boa, você me salvou do Oblívio duas vezes, e eu sempre vou ser grata por isso. Não importa o que aconteça.
O sorriso bondoso dela fez com que meus olhos ficassem um pouco embaçados.
— Eu também não me importo – disse Daniel. – Nós estamos todos mortos mesmo, o que mais é preciso para pagar pelos pecados? O que pode ser pior do que a morte?
Ergui meus olhos para o lustre brilhante, sem sequer enxergá-lo.
"Ser esquecido" – pensei, mas aquela resposta me apertou por dentro, como se quisesse me sufocar, então não me atrevi a verbalizá-la. Tentei mudar de assunto.
— Vocês notaram algo estranho neste estabelecimento?
Eles olharam para mim e depois começaram a vasculhar o ambiente com os olhos, sem parecer ver nada de diferente.
— Não tem nenhuma escada em espiral aqui – eu disse –, ao contrário da boate e da igreja. É como se esse lugar não recebesse recém-chegados. Por isso é tão vazio.
— Tem razão – disse Débora. – Isso quer dizer que podemos descansar aqui sem problemas?
— Seria muito bom – e me estiquei um pouco mais na poltrona. Eu me sentia melhor por eles não terem pensado mal de mim, mas a possibilidade de eu ser algum tipo de homicida atormentava minha mente, e se não fosse esse o caso, devia ser algo igualmente ruim para ter sido presa, porque as pessoas nas minhas lembranças pareciam me julgar constantemente.
— Satayash disse que não tínhamos o resto da eternidade – lembrou Daniel. – Mas concordo que ficar aqui seria bom para relaxar. Não me sinto muito ansioso para recuperar minha memória... – ele parou quando pareceu notar algo diferente no salão. – Aquilo é um elevador?
Olhei na direção em que ele apontava. A parede atrás do balcão da recepção parecia fazer uma curva para dentro, passando por uma coluna e, a alguns metros no fundo, se destacava novamente onde surgiam portas duplas metálicas. Ao lado da porta havia alguns botões.
— Vou lá dar uma olhada – ele disse.
— Ok.
Nós observamos enquanto ele se afastava, chegando ao elevador com portas fechadas. Ele passou a mão por elas e depois pelos botões, sem parecer ter muito sucesso. Débora aproximou-se do meu ouvido e disse:
— Ele é bem sortudo.
Virei meu rosto para ela, sem entender.
— Por quê? – e pensei em acrescentar: "por que ele é bonito?", mas achei melhor não passar mais vergonha.
— Por que ele conheceu você na vida passada – disse Débora, com um meio sorriso. – Você é bem legal, Elie. Eu gostaria de ter te conhecido enquanto estava viva.
Senti minhas bochechas ficarem um pouco mais quentes, Débora começou a rir.
— Você fica muito engraçada quando fica com vergonha, fica tão vermelha quanto seus cabelos. Parece um tomate.
— Haha, muito engraçado – eu disse, mas agora também estava rindo.
Ela parou de rir e suspirou, olhando para o tapete felpudo, os olhos cansados e tristes novamente.
— Acho que eu não tive amigos enquanto estava viva – ela refletiu, a mão inconscientemente deslizando pela gola da blusa, procurando pelo pingente que uma vez tinha estado ali. – Minha vida era resumida em ir para a escola, para casa e ajudar meu pai na igreja.
— Mas, lá na boate, você não disse que tinha lembrado de já ter ido a uma festa? Aposto que você não era tão impopular.
— Sim – ela disse, parecendo fazer força para não me encarar. – Eu lembrei de ter estado em uma festa e... eu sei, eu sei. Parece estranho que uma pessoa como eu fosse para uma festa como aquela, com música, drogas, essas coisas. Eu também não sei como fui parar lá, mas sei que eu estava cansada de viver sob as regras do meu pai. Eu me sentia tão velha, como se estivesse deixando a vida escorrer pelas mãos. Eu só queria, pelo menos uma vez, ser uma adolescente normal.
— Mas não tem nada de errado nisso, Débora.
Ela apertou os lábios, parecendo não ter tanta certeza.
— Alguns dos meus colegas da escola estavam naquela festa e, por incrível que pareça, eles não pareciam ser tão ruins quanto eu achava. Eu era tão preconceituosa, achava que todos eles iriam queimar no inferno – ela deu um risinho com a ideia –, mas eles foram legais comigo. Pareciam surpresos por eu estar lá.
Ela parecia estar falando consigo mesma, então não quis interromper com nenhum comentário.
— Eu tive medo de que lá estaria sozinha, mas não foi isso que aconteceu. Tinha um garoto, ele era da minha escola, nós conversamos durante a festa inteira, e... bom, ele era bem legal e...
Agora o rosto dela é que parecia um tomate.
— O que aconteceu, Débora? – perguntei curiosa.
— Bom... eu tinha dezesseis anos na época, acho. Como eu disse, minha família não me deixava ir para esses lugares, eles achavam que aquilo era pecado. Um caminho sem volta para a indecência e para a libertinagem. Acho que se descobrissem que eu estava numa festa me divertindo teriam me matado. Então eu precisava aproveitar aquela porquê... talvez aquela fosse minha única oportunidade de, sabe... – ela pôs as duas mãos no rosto.
Talvez eu estivesse entendendo aonde ela queria chegar, mas agora eu precisava saber com todas as palavras.
— O que? – perguntei fingindo inocência.
Ela olhou para mim com o rosto muito vermelho.
— Promete que não conta a ninguém?
— Juro pelo meu braço esquerdo.
Ela sorriu e pareceu mais à vontade, mas me lançou um olhar de censura.
— Ok, pelo direito então – eu disse levantando o mesmo.
Ela respirou fundo e comprimiu os lábios, parecendo reunir coragem.
— Talvez eu não tenha morrido virgem – e afundou o rosto entre as mãos novamente.
Eu não pude conter a risada.
— Mas isso é ótimo – eu disse –, você só estava sendo você mesma, só estava tentando viver plenamente. Não tem nada de errado nisso.
Quando ela finalmente ergueu a cabeça e conseguiu me olhar, perguntei:
— Mas foi com esse cara legal que você mencionou?
— Sim, nós saímos da festa e... os pais dele não estavam em casa...
Ela parou de falar ao perceber que Daniel estava vindo até nós. Pela cara dele a exploração ao elevador parecia ter sido um fracasso. As portas continuavam resolutas e fechadas; selando os outros andares atrás de si. O que era estranho, já que antes de entrar no prédio eu tive a certeza de ter visto luzes nas janelas dos andares de cima. Se bem que isso pouco importava, ali no térreo estava bem confortável.
Antes que Daniel chegasse mais perto, lancei um olhar confidente para Débora, prometendo que não conta...
Plím! – Fez o elevador, uma luz circundou um dos botões ao lado das portas.
Daniel se assustou e virou-se no mesmo instante. Débora e eu levantamos quase ao mesmo tempo tentando ver o que tinha acontecido.
Como as cortinas de um teatro, as portas metálicas do elevador se abriram e revelaram alguém lá dentro. Por um momento, o ser com quatro braços e sorriso brando pareceu não perceber que o elevador já tinha chegado em seu destino. Alheio a nossa presença, ele continuou estático com a cabeça um pouco pendente para um lado e as pálpebras levemente caídas, como se estivesse em uma reflexão muito importante e prazerosa. Dormindo acordado.
Quando finalmente seus olhos nos encontraram, eles se abriram totalmente e ouviu-se uma exclamação de surpresa.
— Minha nossa, eu não sabia que havia mais hóspedes. E ainda três de uma vez só, acho que nunca vi tantos – disse a criatura dando alguns passos em nossa direção, sua voz suave como uma brisa de primavera. – Peço mil desculpas por não ter estado aqui para recebê-los. Mas por que não tocaram a campainha na recepção? Eu teria descido imediatamente.
Com as mãos superiores ela segurava uma bandeja prateada que sustentava algumas xícaras e um bule de chá, ao lado deles podia-se ver pãezinhos com aspecto delicioso (um deles estava meio mordido). Com movimentos delicados, ela depositou a bandeja em cima da recepção e nos observou com fascínio.
Prateado também era o blazer que a criatura assexuada usava, assim como seus cabelos lisos que emolduravam o rosto fino e caiam-lhe até os ombros. Mas de onde eu estava pude ver algo que a diferenciava de Satayash e Belzebel, seus olhos...
— Quem é você? – perguntou Daniel.
Ela deu um largo sorriso para ele.
— "Quem é você?" – ela repetiu devagar, parecendo se deliciar com cada palavra. – Que pergunta maravilhosa. Realmente uma pergunta magnífica. Deve ser por isso que é a chave desta cidade. – Ela olhou para Débora e depois para mim, seus olhos mudavam de cor numa dança cromática: passando do amarelo para o castanho, e depois para o vermelho. – Mas acredito que vocês queiram a versão simples da resposta, não é? O meu nome, mais especificamente. Não que os nomes possam definir ou resumir a essência de alguém, imaginem, palavras ou nomes não podem expressar a complexidade de nossas essências. – Ela olhou para cima com um dedo no queixo, como se refletisse um pouco. – Mas também não se pode negar que eles são acessórios importantes e muito uteis de vez em quando. Os nomes só podem definir algo sobre nós quando somos nós mesmos quem os escolhemos. A propósito, vocês podem me chamar de Morfélia.
Àquela altura eu já estava me acostumando com as criaturas excêntricas daquela cidade.
— Certo, ham... Morfélia – eu disse tentando parecer amigável. – Eu sou Elie, e estes são Débora e Daniel.
— É um prazer conhecer vocês três – ela disse, cada palavra saia de sua boca num tom onírico. – Sejam bem-vindos ao meu hotel. Vocês devem estar se perguntando porque está tão vazio, não é? Já devo afirmar que não é por causa do mal atendimento ou serviço de baixa qualidade. Todos parecem bem satisfeitos aqui.
— Hum, nós percebemos que não há uma escada. É por isso?
— Exatamente, neste hotel eu só recebo despertados, como vocês. Este lugar existe por causa da necessidade de descanso das suas mentes. A exaustão causada pela disputa entre as duas forças atinge qualquer alma. Vocês provavelmente se sentem assim, não é? – Ela não esperou resposta e estendeu todos os quatro braços num gesto caloroso – pois bem, aqui vocês podem dormir um pouco e depois partir para buscar sua memória ou até desaparecer, se quiserem.
— Ah, graças a Deus – disse Débora parecendo contente. – Eu sabia que não tinha problema em ficar aqui.
Eu também não poderia negar que gostaria de ficar um pouco mais ali, as pálpebras dos meus olhos pareciam ficar mais pesadas a cada instante. Mas depois de tudo que eu tinha visto naquela cidade me perguntei se era seguro fechar os olhos e me entregar a uma noite de sono.
— E existe algum perigo de desaparecermos para o Esquecimento enquanto dormimos? – perguntei.
— Que estranho, eu nunca vi isso como um perigo, mas sim, só se vocês quiserem – respondeu Morfélia, seus olhos alternando para um escuro brilhante. – Não há estabelecimento mais seguro para despertados do que este. E como bônus às vezes alguma lembrança também pode se manifestar aqui. Mas se também estão preocupados com o efeito da música aqui no térreo, não há motivo para tal, pelo o que posso ver, vocês já estão mais do que despertos para serem levados pela influência do Oblívio novamente.
— Espera – disse Daniel –, você disse que a exaustão é causada pela disputa entre as duas forças. O que isso significa?
— Significa exatamente o que as palavras significam. – Ela olhou para nós com um sorriso débil, que se desfez quando percebeu que não tínhamos entendido, então continuou a falar ainda mais devagar, como uma professora aos alunos. – Se vocês despertaram, o guia de vocês já deve ter explicado sobre as duas saídas, não é? Pois bem, essas duas forças estão constantemente disputando pelas almas dos cidadãos. Há indícios que apontam a influência delas em todos os lugares. A escuridão, o som, e a alienação são sinais do Oblívio, enquanto a luz dourada, o silêncio, e a lucidez são sinais da segunda.
— A segunda não tem um nome? – perguntou Débora.
— Bom – disse Morfélia parecendo meio confusa –, ela costumava ter um nome, mas o Esquecimento também tomou isso dela. De qualquer forma, essas mudanças constantes nas essências de vocês acabam desgastando um pouco, é normal se sentirem exaustos. Ah, mas que indelicadeza a minha, fico aqui devaneando e esqueço que vocês devem estar ansiosos para conhecer seus quartos.
Ela foi para trás do balcão e ficou olhando para o quadro bordô com uma mão no queixo, como se decidindo sobre quais quartos deveríamos ficar.
Daniel aproximou-se de mim e sussurrou:
— Você acha que podemos confiar nessa... nessa coisa?
Ele disse muito baixo, mas ela pareceu ouvir mesmo da distância em que se encontrava.
— É claro que podem... – ela disse sem alterar a voz e sem tirar os olhos do quadro bordô. – Veja bem, assim como há uma regra para vocês, também há uma para nós anfitriões. Nós jamais poderíamos mentir para os cidadãos, por isso, tudo o que falamos é a mais pura verdade. E claro, também podemos omitir informação dos cidadãos que não desceram as escadas do nosso estabelecimento. O que me deixa numa situação bastante irônica, não acham? Se eu quisesse poderia ficar em completo silêncio agora, já que não há nenhuma escada aqui! – em seguida começou a rir num tom agudo, como se achasse aquilo a coisa mais engraçada do mundo.
Dei um sorriso amarelo, tentando parecer simpática. Mas foi Débora quem questionou:
— Se vocês não podem mentir, então por que Belzebel falava sobre salvador, reino prometido e tudo mais? Se no fim, só que há ao desaparecer é a inexistência.
Morfélia virou-se, seus olhos agora eram verde-esmeralda, e lançou um sorriso amável para Débora.
— Ora, minha querida, a verdade pode ser bem relativa dependendo do ouvido que a recebe. Belzebel sempre soube disso e sempre foi muito astuto, por isso usa este conceito a seu favor para que ninguém saia de seu estabelecimento. Quando ele diz "salvador", está se referindo ao Oblívio. O fato de estarem me questionando só enaltece o quanto estão despertos.
Morfélia voltou-se para o quadro e pegou três chaves.
— E por que ele faz isso? – insistiu Débora.
— Porque ele decidiu que isso faz parte de sua essência – ela depositou as chaves em cima do balcão. – Aqui está, se pegarem as chaves o elevador deixará vocês no andar de seus quartos. Fiz questão de deixar vocês bem próximos. Não precisam assinar nada e nem deixar qualquer registro. Burocracia é algo do mundo de vocês.
Daniel pegou as chaves e distribuiu duas para mim e para Débora.
— Obrigada – eu disse a Morfélia, me sentindo ansiosa para deixar a presença daquele ser. – Acho que nós vamos subir agora, sabe... para descansar.
— Por favor, fiquem à vontade – seus olhos estavam prateados. – Lembrem-se, se quiserem usar o elevador é só aproximarem-se dele com as chaves. Ah, e se precisarem de qualquer coisa é só usarem o telefone dos seus quartos.
— Pode deixar.
Ela nos acompanhou até o elevador desejando que tivéssemos bons sonhos, e quando as portas finalmente se fecharam o som agradável do piano silenciou. Senti a mudança de pressão e uma leve vertigem quando o elevador subiu.
— Por que os olhos dela mudavam de cor? – perguntei. – Era um pouco desconcertante.
— Já ouviram falar que os olhos são janelas para a alma? – perguntou Daniel.
— Acho que se tivéssemos perguntado, ela também responderia que isso faz parte da essência dela – disse Débora.
Plím! - Fez o elevador quando as portas se abriram, à nossa frente um corredor com paredes cor de caramelo se estendia com portas escuras de cada lado. O número na minha chave era um três e, quando me aproximei da porta do meu quarto (também havia um número três nela) percebi que o quarto de Débora era o da minha frente e o de Daniel bem ao lado. Os números, no entanto, pareciam ter sido colocados fora de ordem e aleatoriamente, por que no chaveiro de identificação das chaves deles estava o número um e no outro um setenta e três.
— Bom, nos vemos amanhã então? – perguntou Daniel.
Apesar de fazer silêncio ali em cima, nossas vozes podiam ser ouvidas normalmente, era a primeira vez que um ambiente silencioso permitia isso.
— É, acho que sim – disse Débora. – Acho que isso é um boa-noite.
— Esperem – eu disse.
A alguns metros de onde estávamos vi uma luz através da fresta em baixo de uma das portas. Talvez aquilo fosse uma lembrança. Ou talvez houvesse alguma pessoa que tivesse despertado.
— O que acham de darmos uma olhada naquele quarto? – Apontei. – Se há algo suspeito neste lugar, podemos ver se tem alguma coisa errada.
— Mas talvez esteja trancado.
— Vamos ver – eu disse, e me aproximei da porta. Havia um olho mágico na altura dos nossos rostos, muito sugestivo. Dei três pequenas batidas e, não havendo nenhuma resposta, toquei na fechadura. A porta se abriu sem nenhum rangido quando a empurrei.
Dentro do quarto as paredes também tinham cor de caramelo, havia uma cômoda encostada na parede e duas mesas de cabeceira de cada lado de uma cama grande. Me aproximei dela, ciente da presença de Daniel e Débora atrás de mim. Ali, entre as cobertas, um homem idoso dormia profundamente.
— Nós realmente devíamos estar aqui? – perguntou Débora.
— Olhem – eu disse, apontando para o peito do homem que subia e descia numa respiração suave. Bem próximo da axila havia um rasgo que se estendia até o pescoço, repleto de uma escuridão tão densa quanto um abismo. Cada vez que ele respirava a escuridão aumentava. – Ele está desaparecendo. O Esquecimento está levando ele, precisamos acordá-lo!
Sem muito pudor, me sentei na cama e comecei a sacudir o homem.
— Senhor... Senhor, Acorda!
Ele abriu os olhos quase imediatamente, parecendo assustado.
— O que? O que aconteceu?
— Você está desaparecendo – apontei para a escuridão no peito dele –, precisa recuperar alguma lembrança antes que seja tarde.
Ele olhou para baixo, na direção em que eu apontava e depois olhou para nós. As rugas em sua testa mudaram do espanto para a raiva.
— Foi por isso que me acordaram?
— Sim, se você ficar aqui vai desaparecer completamente. Precisa recuperar sua memória para reencarnar.
— E você acha que eu não sei disso?
Levantei da cama, um pouco assustada com a reação hostil.
— O que te faz pensar que eu quero voltar? Acha que vou arriscar ter uma vida de merda de novo?
Olhei para os dois atrás de mim, eles pareciam tão chocados quanto eu.
— Mas... – tentei argumentar.
— Saiam do meu quarto! Ou vou ter que chamar a coisa lá em baixo?! – Ele estendeu o braço e tocou o telefone que estava em cima da mesa de cabeceira, percebi que ao lado do telefone também havia um frasco de remédio vazio. – Será que não posso ter paz nem depois da morte?
— Mas você pode vir com...
Antes que eu pudesse terminar ele atirou uma almofada que por pouco não atingiu a cara de Débora.
— Elie, é melhor nós irmos – disse Daniel tocando meu ombro.
Olhei uma última vez para o homem que me lançava um olhar furioso e saímos do quarto. Daniel fez o possível para não fazer barulho enquanto fechava a porta.
No corredor, fui tomada por uma vergonha feroz. Mal conseguia erguer a cabeça. É claro que, mesmo entre os que despertavam, havia os que não queriam a segunda saída. Me perguntei o que o homem no quarto tinha descoberto sobre sua vida passada que o tivesse feito esperar pelo esquecimento. Me perguntei se eu também escolheria isso quando recuperasse minha memória.
— Acho que fui um pouco inconveniente.
— Está tudo bem, Elie – disse Débora. – Nós só precisamos descansar um pouco.
— Escuta – disse Daniel aproximando-se de mim. – Vamos dormir e amanhã vamos ver se o cara quer vir com a gente. Uma última tentativa, o que acha? No fim quem está perdendo é ele, não nós.
Assenti com a cabeça.
— É, você tem razão – eu disse num sussurro. – Não se pode interferir nas escolhas dos outros... É melhor eu ir dormir.
Por alguns segundos nós três ficamos nos encarando em frente à nossas portas. Talvez um pouco relutantes em ficar sozinhos novamente. Mas a ideia de dormir todos no mesmo quarto era constrangedora. Tínhamos nos conhecido há pouco tempo. Acho que o pensamento passou pela cabeça deles, porque Débora disse:
— Hã, bom... então boa noite – e entrou no quarto número um.
Daniel acenou e entrou no setenta e três sem dizer mais nada.
Usei a chave com o número três e abri porta do meu quarto, quando entrei uma luz âmbar acendeu de imediato, iluminando um quarto muito parecido com o do homem que queria desaparecer. Havia uma cama grande com duas mesas de cabeceira de cada lado, logo acima de um deles havia um telefone, e na parede atrás havia uma pequena janela com cortinas laranjas. Também havia uma cômoda com um espelho à direita. Dei alguns passos na direção dela e mirei meu reflexo no espelho.
Era a primeira vez que eu podia ver meu rosto desde que havia chegado à cidade, com exceção da minha primeira lembrança, onde o Esquecimento me impedia de enxergar direito.
Ali, parada do outro lado da película, estava uma jovem de cabelos ruivos e rosto decorado com sardas. Uma tiara branca encimava uma franja repartida. Fitei o volume no busto do vestido e notei, com certo embaraço, que os seios não eram nem muito grandes e nem muito pequenos. E embora eu estivesse aleijada sem um braço, percebi que a visão me agradava. Não pude conter um sorriso, fazendo surgir covinhas no rosto da moça no espelho. A situação constrangedora de antes foi varrida da minha mente.
Porque eu estava ali. Porque eu existia.
Sentei na cama me perguntando se não haveria alguma outra roupa naquela cômoda, não sei se conseguiria dormir com aquele vestido. Foi quando notei um frasco de vidro em cima da mesa de cabeceira, idêntico ao frasco de remédio no quarto do homem idoso, mas aquele ali estava cheio. Havia pílulas de escuridão fumacenta armazenadas dentro. Peguei e olhei com mais atenção. No rótulo havia o desenho de um olho e logo abaixo uma mensagem estava grafada:
"Bem-vindo seja o sono, mais bem-vindo o sono de pedra".
Então era isso que Morfélia quis dizer quando disse que podíamos desaparecer enquanto dormíamos, se quiséssemos.
Subitamente fui tomada por uma raiva incontrolável. Segurando o frasco, coloquei a cortina de lado e abri o vidro da janela. Encarei o olho gigante no céu em tom de desafio. Ele parecia olhar diretamente para mim, vazio e apático, me incentivando a tomar as pílulas.
— Você não dá um descanso, não é?
E atirei o frasco pela janela, ele fez um arco no ar e desapareceu em algum lugar escuro na rua. Nenhum barulho foi ouvido em sua aterrissagem. Lancei novamente um olhar raivoso para o Oblívio, mas conforme o fitava, ele parecia arregalar cada vez mais sua existência pelo céu.
Desviei o olhar e vi a cidade que se estendia abaixo, eu parecia estar no quinto andar do hotel, por que ali de cima era muito alto. Os prédios e estabelecimentos se estendiam infinitamente, iluminados pelas luzes brancas dos postes sempre idênticos, me fazendo imaginar qual era o tamanho daquele lugar. No horizonte as luzes brancas envolviam a cidade em uma aura prateada que se estendia ao céu até se degradar em uma escuridão pura e irrefutável. Era uma visão bonita e hipnotizante com sua serenidade utópica.
"Todas as almas vêm para este lugar" – pensei enquanto me debruçava na janela.
Quantas pessoas já tinham tido aquela visão? Quantas pessoas haviam conseguido sair dos estabelecimentos? Naquele exato momento, quantas pessoas estariam chegando na cidade? Mesmo ali, ciente de já estar morta, me perguntei qual era o sentido de toda aquela existência.
Se a cidade não fosse tão silenciosa e imutável, talvez eu não percebesse o movimento que se arrastava na minha direção vinda da parte de baixo do prédio. Ao olhar para baixo, vi um servo do Oblívio com o olho direcionado para mim, escalando a parede do prédio como uma aranha peçonhenta. Ele vinha devagar pela parede, para não espantar sua presa, mas quando viu que eu tinha percebido sua presença começou a escalar numa velocidade aterradora.
Me ergui instantaneamente e voltei para o quarto fechando o vidro da janela e colocando a cortina de volta no lugar. Dei alguns passos para trás sem tirar os olhos da janela, esperando a sombra passar por ela. A ideia de ficar no quarto de Débora ou Daniel não me parecia mais tão constrangedora diante daquela situação. Não sei por quanto tempo fiquei ali parada, esperando que alguma coisa acontecesse.
Dei um salto quando ouvi batidas na porta do quarto. Me coloquei diante dela e olhei através do olho mágico. Parado diante da porta estava um Daniel com feições distorcidas pelo foco do visor, mas mesmo assim eu podia ver que estava mais pálido do que o normal.
— Daniel? – perguntei abrindo a porta. – Aconteceu alguma coisa?
O olhar dele indicava que havia algo errado. Suas narinas se dilatavam como se ele lutasse para respirar fundo. Ele não estava bem.
— É complicado – ele disse, parecendo não conseguir dizer mais nada.
Notei que suas mãos estavam trêmulas.
— Quer entrar? – convidei, abrindo um pouco mais a porta.
Ele assentiu e entrou no quarto com a cabeça baixa. Fiz sinal para que ele se sentasse na cama.
— Acabei de ver um servo do Oblívio escalando a parede do hotel – eu disse, e por algum motivo a presença de Daniel me deu coragem para ir até a janela e abrir a cortina para ver se a coisa ainda estava lá. Não me surpreendi ao constatar que não havia sinal dela. – Dá para acreditar que eles podem fazer isso? Já entendi que eles não podem entrar, mas achei que aquele ia ficar me observando durante a noite.
Ele continuava a me olhar em silêncio de onde estava. Se algo mais perturbador do que ver uma criatura que escalava paredes tivesse ocorrido, então eu precisava saber.
— O que foi? – me sentei na cama ao lado dele. – Quer me contar alguma coisa?
Ele fez uma careta antes de começar:
— Eu recuperei uma lembrança – seu olhar pousou na mesa de cabeceira ao lado, como se procurasse algo. – Havia um frasco de remédios brilhando com uma luz dourada quando entrei no meu quarto. Eu já não sei se quero recuperar minha memória, Elie. Suas lembranças também eram tão... vívidas?
— Bom, só o que elas me dizem é que devo ter cometido algum crime - tentei dar um sorriso, mas sei que ele saiu meio abatido. – Eu trabalhava em um tipo de call center, tinha acompanhamento com psicólogo, essas coisas. – Senti as feições em meu rosto carregarem quando um pensamento sombrio passou pela minha cabeça. – Você não tomou os comprimidos naquele frasco, não é?
— Não – ele disse, e voltou a ficar em silêncio, as mãos unidas uma na outra. Eu podia ver que ele queria dizer algo mais. Como se estivesse entalado no fundo da garganta.
— Do que você lembrou? – perguntei por fim.
Ele pareceu meio relutante em falar, toquei seu ombro em sinal de apoio.
— Eu era pequeno, acho que devia ter uns sete ou oito anos... – ele fechou os olhos, como se estivesse vivenciando a lembrança naquele momento. – A primeira coisa que me lembrei foi de estar ao lado da minha mãe. Ela estava deitada em uma cama como esta. Tinha acabado de receber alta do hospital, mas mesmo assim estava fraca demais para conseguir andar pela casa, então eu precisava... cuidar dela.
Isso me fez lembrar que eu provavelmente também havia tido uma mãe, até então não tinha pensado a respeito, ao invés disso, nas minhas últimas lembranças eu só pensava no quanto estava grata pelo meu pai ter me tirado da prisão. De qualquer forma, esperava que esse fato não tivesse abalado minha relação com ela.
— Sua mãe estava doente?
— Ela tinha depressão – continuou Daniel, e vi o pomo-de-adão em seu pescoço subir e descer. – Ela estava se recuperando de uma tentativa de suicídio.
Foi a minha vez de engolir em seco, me arrependendo de ter perguntado. Ela estava doente em sua própria mente.
— Eu me sentia assustado, era o primeiro dia que ficava sozinho com ela em casa. Meu pai precisava trabalhar. Eu lembro de ver ela acordar, olhar para mim e sorrir. Eu tinha medo que ela tentasse fazer qualquer coisa. Mas ela segurou minha mão e me prometeu que não faria mais nada.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes. Mas seus olhos continuaram fechados, o tremor nas mãos parecia estar subindo até o ombro.
— Ela disse que estava na hora de tomar o remédio receitado pelo médico. Eu disse que já tinha dado a ela, e eu tinha certeza disso. Meu pai tinha me passado as instruções antes de sair. Mas ela disse que tinha outro. Disse que se não tomasse aquele podia ficar pior do que estava. E eu só queria... eu só queria que ela ficasse bem, queria que ela ficasse comigo. Ela me disse que esse outro remédio estava na estante da despensa, escondido no fundo de uma gaveta.
Nesse momento as mãos dele subiram até os olhos, e fiquei paralisada ao ver que havia lágrimas.
— Eu não consegui abrir o frasco, então levei até ela. Ela pegou e me agradeceu, abriu o frasco do remédio com facilidade e... tomou todos os comprimidos. Ela disse que me amava... então começou a espumar e convulsionar... – Por trás das mãos no rosto pude ver os dentes dele trincados, forçando para conter a angústia. – Eu só consegui me encolher em um canto do quarto e ficar observando. Até meu pai chegar e... ele me empurrou... por que eu a deixei morrer....
— Para! – eu o interrompi, e fiz o possível para abraçá-lo com o único braço que me restava. – Não precisa continuar...
— Eu sou um assassino, Elie – ele disse enquanto tentava se limpar. – Eu matei minha própria mãe.
— Não! Você era só uma criança, ninguém tem culpa nisso.
Nós permanecemos abraçados por um tempo que eu não soube contar, e se eu pudesse ficaria ali para sempre. Ele pareceu voltar a se estabilizar.
— Eu não sei se quero recuperar minha memória – ele disse se afastando um pouco. – E também não queria passar por nenhuma das duas saídas. – Ele deu um sorriso sem nenhuma alegria e meneou um pouco a cabeça loura. – Desaparecer ou Reencarnar? Essa cidade não me parece tão ruim e, se eu pudesse escolher alguma coisa, ficaria aqui para sempre.
Eu não conseguia entender, era a primeira vez que aquela ideia me ocorria.
— Queria ficar aqui com você – ele terminou.
Senti o rubor crescer em meu rosto. Mas as coisas não eram tão simples quanto eu gostaria que fossem.
— Você não é um assassino, Daniel – eu disse, olhando bem no fundo dos olhos tão verdes quanto os de Morfélia tinham sido outrora. – Mas talvez eu seja. Na primeira lembrança que recuperei eu agredia uma colega de classe. E quem sabe se não fiz algo ainda mais grave quando adulta? Ainda assim, gostaria de ficar nessa cidade comigo?
Ele segurou minha mão direita.
— Ficar aqui para sempre é uma ideia estranha... – murmurei. – Quanto mais penso... mais parece tentador.
Nós estávamos tão perto que eu podia sentir a respiração de Daniel, tão real, tão... quente.
Fechei os olhos. Palavras eram desnecessárias. E quando nossos lábios finalmente se encontraram eu já não tinha tanta certeza de estar morta, porque se aquela sensação não era a de estar viva, então eu não sabia o que era. E eu soube que ele sentia o mesmo. Eu senti o calor naquele toque, numa troca mútua e íntima entre o que havia de mais profundo em nossas essências.
Senti a ânsia por mais, aproximei meu corpo do dele. Senti sua mão tocar e afagar meu seio, enquanto a minha escorregava pela pele nua sob sua blusa, deslizando para baixo até tocar a penugem abaixo do umbigo...
Abri os olhos e interrompi o beijo num estalido.
— Espera – eu disse. Ele piscou um pouco, parecendo confuso. – Você acha... que é possível fazer isso aqui?
Ele pôs uma mão no queixo e olhou para o outro lado, fingindo que estava ponderando arduamente. Por fim voltou a olhar para mim com um sorriso torto:
— Quer descobrir comigo?
Eu sorri e voltei a beijá-lo.
Palavras eram desnecessárias.
*
Mais tarde, quando minha tiara e meu vestido repousavam na cômoda e nos encontrávamos lado a lado na cama, eu pensei melhor sobre a ideia de ficar naquela cidade para sempre. Minha mente lutava com a ideia de que aquilo era impossível. Satayash falou que iriamos desaparecer de qualquer jeito. Mas fiquei tentada a descer naquele momento e perguntar a Morfélia se havia alguma possibilidade. Talvez pudéssemos retardar o processo de desaparecimento ingerindo a comida da cidade e recuperando lembranças ao mesmo tempo. Era uma ideia improvável, mas era a única que me ocorria.
No travesseiro ao lado, Daniel me olhava através das mechas louras que agora teimavam em cair pela testa.
— Eu nunca me cansaria disso – ele disse. – Se ficássemos aqui poderíamos explorar os outros estabelecimentos e todos os dias seriam diferentes. Poderíamos ajudar as outras almas a despertar para que elas fizessem suas próprias escolhas. E eu sinto, de verdade, que de alguma forma nós já estivemos assim antes.
— Como um déjà vu, não é?
Ele concordou. Tinha as mãos atrás da cabeça e o olhar voltou-se para cima.
— Sei que a pergunta que vou fazer não tem nada a ver com o clima. Mas ela não sai da minha cabeça.
— Pode perguntar.
— Você acha que minha mãe despertou quando veio para cá?
A pergunta me pegou de surpresa, e durante um tempo só o que consegui fazer foi olhar para a luz âmbar que era emitida pela lâmpada no teto. Uma essência autodestrutiva poderia despertar? A resposta ondulou no ar, como uma brisa invisível e inócua. Talvez, tomar consciência da realidade que o cerca, em casos extremos, pode levar até a mais sã das essências à loucura. Ainda mais quando todos à volta parecem adorar ao vazio e ao esquecimento.
— Me desculpe – eu disse. – Eu queria muito dizer que com certeza ela despertou e reencarnou, mas eu estaria mentindo, porque a verdade é que eu não sei. Eu realmente não sei como esta cidade funciona. E também não quero mentir para você. Mas eu sei por que está perguntando isso.
— Sabe?
— Você ainda sente culpa. Mas não precisa sentir mais. Você levou o medicamento até sua mãe porque acreditou que aquilo poderia ajudá-la, você acreditou nela. Você acreditou no amor dela. E não há nada de errado em acreditar no amor.
Ele me abraçou apertado e beijou minha testa.
— Obrigado – ele disse enquanto eu retribuía o abraço.
Nossos olhos ficaram mais cansados à medida que o sono se apoderava de nossas mentes, relutantes em deixar a imagem um do outro. Mas, por fim, deixei que ele me levasse. E assim, o sonho que Morfélia havia desejado me encontrou.
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