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Parte 5/10 - Seleção Sobrenatural


Tirei a mão direita da caneta, agora apagada e sem vida. A música tinha mudado, me esperando durante todo aquele tempo. Quanto tempo? Eu tinha riscado a mesa enquanto estava sob efeito da lembrança, letras rabiscadas com tinta azul mostravam um "tem certeza?".

Acho que não. Era essa a resposta que todos queriam ouvir. Era isso que a música queria.

— Boa tentativa – eu disse, olhando para a caneta com desprezo –, mas agora eu destruí o seu brilho. – O som em meus ouvidos ficou mais alto. – Essas lembranças não me fazem querer voltar. É exatamente como eu pensei, repleto de dor e vergonha. Eu era um lixo. Mas agora olhe para mim, este lugar quer que eu permaneça nele, e é isso que eu quero também.

Peguei o copo de bebida ao lado e tomei as últimas gotas. Virei-me e deixei a caneta para trás, esquecida e derrotada. A música me abraçou com força, suas batidas pulsantes, cheias de prazer violento. Agora nada podia nos atrapalhar. Em algum momento eu realmente quis saber quem eu era? Estava óbvio desde a primeira lembrança que eu não era uma pessoa boa. E agora todas as lembranças seriam eliminadas.

Que tipo de pessoa ia para a prisão?

Me juntei à pista de dança com movimentos ainda mais intensos, duas pessoas juntaram-se bem próximas a mim, atraídas pelo desejo de se render, se entregando totalmente. Elas já não tinham os braços e havia apenas um vazio do lado esquerdo do peito, a inexistência avançando rapidamente. Nós éramos aleijados sem controle sobre nossos corpos. A escuridão em meu braço esquerdo agora subia até o ombro, me consumindo junto com todo aquele lugar, e era isso que eu desejava.

Se a música parasse, eu enlouqueceria.

Eu já nem precisava de mais bebida. Meus sentidos se limitavam à audição e à visão. Esta última ficando cada vez mais fraca. A escuridão se adensando. Tudo ficando cada vez mais distante. Tão distante...

As batidas eram da música ou de um coração que queria morrer?

As duas pessoas não estavam mais ali.

Vamos, vamos dançar até desaparecer. A matéria quer voltar ao seu estado natural. Para sua origem. Para a inexistência. Para o pó. Para o nada.

Eu não era nada.

Nada.

Ergui minha cabeça, meu corpo nunca parava.

Tive a impressão de estar sendo observada. Ah, sim, o olho no céu estava me observando, mesmo através daquele teto escuro e estranho.

O olho.

O Esquecimento. O Oblívio.

Nada.

O vazio estava vindo de dentro para fora. A pupila se dilatando. A escuridão se espalhando.

Nada... Nada... Nada...

Venha... – chamou a voz apática.

A voz que cantava ecoava... ecoava... ecoava...

Tudo estava tão lento agora. Tão distante... inalcançável.

O globo de luz estava girando...

Vamos cair pela última vez e, dessa vez, de verdade, apenas o nada vai estar me esperando. É uma promessa.

Todas as luzes estavam girando lentamente, em espiral.

A escada...

Entregue-se – dizia o olho. – Entregue-se.

Para sua origem...

A escuridão emoldurando todo o ambiente e, no centro, a escada em espiral subindo acima da cabeça das pessoas. Para sempre... sempre... sempre...

Girando...

Tinha alguém descendo. Alguém...

Eu queria ver.

Tem certeza?

O que não existe não pode ver nada. O que não existe não pode ser visto.

Eu não era nada. Eu não existia.

Por favor.

Entregue-se! Entregue-se! Entregue-se! As batidas pulsantes da música.

Usei toda a força que me restava, um último resquício de controle. Somente para focar a visão em quem estava descendo. Por favor.

Tem certeza?

Ele estava descendo, um passo de cada vez, lentamente. A cabeça consentia levemente no ritmo dançante da inexistência. Por favor.

Girando...

Os cabelos penteados para trás, dourados como a manifestação de uma lembrança.

Ele é meu também – disse o Oblívio. – Vocês não podem escapar de mim.

Os olhos apagados. Verdes. Varrendo a multidão com a única motivação de se juntar a ela.

O nome...

Vocês todos me pertencem.

Os olhos dele encontraram os meus.

O nome dele.

Daniel?

O nome ecoou em minha mente acima do volume da música.

Então o feitiço desabou.

O silêncio se expandiu na minha mente, na velocidade da luz, e tudo ficou claro, mesmo enquanto a música tocava. Os olhos verdes se arregalaram, o feitiço se esvaindo neles também, o corpo parou e se segurou no corrimão para não cair. Olhei ao meu redor, me libertando dos grilhões do encantamento. E naquele momento eu soube que o som daquele lugar nunca mais teria poder sobre mim, a não ser que eu quisesse.

Daniel?

Ele me olhava de longe, paralisado na escada.

Me dei conta do que tinha acontecido, meu braço esquerdo já não existia.

— Ah, não. – O desespero se espalhou por dentro, como um incêndio incontrolável.

Comecei a abrir caminho pelas pessoas até a escada, mas era difícil com apenas um braço. Daniel também tinha descido e desaparecido na multidão. Como eu sabia o nome dele? Ele estava vindo até mim? A multidão estava se fechando ao meu redor, pela primeira vez eu me sentia sufocada. A música não parava, mas agora não tinha efeito algum.

As coisas perdidas vieram à minha mente de uma só vez: as lembranças que eu tinha recuperado até o momento, o motivo de eu ter voltado para aquela boate e... ah, meu deus, o que eu tinha feito? Onde estava Débora? Olhei para as pessoas dançando, todos os rostos desconhecidos, fantasmagóricos.

— Débora! – gritei no meio da multidão. – Débora!

Era tudo minha culpa, e agora ela poderia ter desaparecido completamente. Eu havia trazido ela direto para uma armadilha, como eu pude ser tão estupida? Eu não podia suportar aquilo.

— Débora! – gritei novamente, olhando para todos os lados enquanto abria caminho entre os corpos.

— Para de empurrar e cala a boca, idiota – disse alguém próximo.

Empurrei com mais força. Entre a raiva e o desespero, somente a primeira me daria a força que precisava. Onde ela estava? Por favor, ela não poderia ter desaparecido. Aquele lugar era tão grande, só agora eu percebia.

— Elie? – disse uma voz.

Olhei na direção em que ela vinha. Parado há poucos metros estava o rapaz alto com cabelos claros, ele parecia muito nítido e real se comparado aos vultos que dançavam ao nosso redor.

— Daniel?

Ele se aproximou, as sobrancelhas franzidas, confusas.

— Que lugar é este? Por que você é o único rosto que parece familiar?

Por um breve instante eu só consegui olhar para ele, sem dizer nada.

— Eu não sei, mas acho que nos conhecemos na outra vida – eu disse, olhei no fundo dos olhos dele e soube que essa era a resposta certa.

— Outra vida?

— Nós estamos mortos.

Ele ergueu as sobrancelhas, olhou em volta estreitando os olhos, como se tentasse entender, em seguida me encarou com um sorriso tremulo:

— O inferno é melhor do que eu pensava – concluiu.

Eu sorri de volta, o desespero aliviando um pouco.

— Daniel, me escuta – eu disse, tocando o braço dele. – Acho que não temos muito tempo, tem uma pessoa que eu preciso encontrar. O nome dela é Débora. Ela vai desaparecer se eu não fizer isso.

— Desaparecer? Do que você está falando?

Apontei para a extremidade escura do meu ombro.

— Nós estamos mortos, e vamos desaparecer se continuarmos aqui.

— Entendo — ele disse, os olhos arregalados. – Mas isso não está doendo?

— Não – eu disse, controlando a vontade de rir. – Eu não sinto nada, na verdade.

— Beleza então, eu te ajudo a achar ela.

Fiz um gesto para que ele me acompanhasse e começamos a andar entre as pessoas, verificando cada rosto.

— Ela tem cabelos e olhos castanhos. Mas provavelmente deve ser a única que está usando saias aqui.

A música era diferente agora, mais lenta e mais calma. Conforme avançávamos ela aumentava seu tom e eu sentia que o lugar estava zombando de mim.

— O que há com essa gente? Por que estão desaparecendo? – perguntou Daniel.

— Elas estão se deixando levar pelo feitiço deste lugar. – Olhei para cima esperando ver o olho, mas só vi o globo de luz e o teto escuro. – Eu vou te explicar tudo assim que encontrarmos ela.

— Ela é importante para você?

Eu pensei um pouco antes de responder.

— De certa forma sim, mas eu também me sinto responsável por ela, fui eu quem a trouxe para este lugar para início de conversa.

Onde ela estava? Não podia ter desaparecido, eu nunca me perdoaria se isso acontecesse. Onde eu estaria se fosse uma pessoa religiosa em uma festa cheia de drogas?

— Tudo bem – disse Daniel em tom gentil, parecendo perceber meu desespero. – Nós vamos encontrar ela. As pessoas não parecem estar desaparecendo de uma hora para outra.

Ele tinha razão, e Débora não tinha nenhuma parte do corpo faltando da última vez que eu a tinha visto. Talvez aquilo me desse um pouco mais de tempo para encontrá-la. O único problema é que eu não sabia quanto tempo havia se passado. Poderiam ter se passado anos enquanto eu dançava.

De repente, vi um aglomerado de pessoas dançando e rindo, e entre elas vi um rosto familiar:

— Débora!

Corri na direção dela enquanto empurrava todos no caminho. Quando cheguei mais perto vi que estavam segurando coisas parecidas com globos oculares. Lembrei do "doce" que Satayash tinha dado a Lisiane. Havia um rapaz distribuindo um punhado deles, e um estava nas mãos de Débora. Ela desembrulhava o papel branco, revelando uma bola escura e lustrosa. Aproximando-o da boca.

— NÃO! – me precipitei para ela, dando um tapa na mão e fazendo com que a coisa caísse no chão.

Ela me olhou com uma expressão perdida.

— Ei, por que você fez isso? Qual é o seu problema?

— Débora, olhe para mim, sou eu, a Elie – eu disse enquanto tentava segurá-la com a mão que me sobrara. Percebi que uma parte do abdômen dela, entre o umbigo e a cintura, estava repleto de escuridão. – Ah, não, o que eu fiz com você?

— Você é louca? Me solta! Eu só quero dançar.

Ela se desvencilhou de mim e voltou para perto das outras pessoas, movendo os ombros e a cintura no ritmo do som. Do jeito que eu tinha ensinado.

Vi um rapaz que tinha um dos olhos cheios de escuridão dançando próximo de nós, ele desembrulhou o "doce" que havia recebido e jogou-o na boca. Quase instantaneamente a escuridão no olho dele começou a consumi-lo por inteiro, e em poucos segundos ele já não estava mais ali.

Olhei para Daniel, em busca de ajuda, mas a atenção dele estava direcionada para outro local. O cenho franzido:

— O que é aquilo brilhando? – ele apontou para onde ficavam as mesas, olhei na direção indicada. Era próximo de onde eu havia encontrado a caneta, uma das cadeiras estava repleta de um brilho estranho, prateado.

— Você também consegue ver? – perguntei.

— Sim.

Eu estava começando a compreender.

— De que cor você enxerga o brilho?

— Parece meio prateado, por quê?

Era isso então. Aquela lembrança não pertencia a mim, nem a Daniel. Olhei para trás, para a garota de saias que dançava. Dourado para suas próprias lembranças, prateado para a dos outros. Mas eu precisava ter certeza.

— Daniel, pode fazer um favor para mim?

— Claro.

— Pode ir até as mesas e tocar naquela cadeira?

— Certo, mas por quê? Você pode me explicar alguma coisa?

— Desculpa – eu disse, estava esquecendo que ele era um recém-chegado. – Aquilo é uma lembrança da vida passada, se ela for sua, você vai se lembrar de algo quando tocá-la, vai vivenciar ela por algum tempo. – Ele me olhava com atenção, senti o rosto ficar um pouco mais quente. – Mas acredito que não seja esse o caso. Acho que aquela lembrança seja da Débora. – E olhei para ela, para não a perder de vista. – Pode testar essa teoria para mim?

— Entendi – ele disse. – Vou fazer isso.

Nós nos separamos e fui ao encontro de Débora.

— Oi – eu disse, me aproximando e fingindo que estava dançando com ela. – Me desculpa por aquilo. Eu não sei o que deu em mim.

— Não foi nada – ela disse, me olhando por entre os braços que se moviam para cima. – Eles já estão trazendo mais "doce". Vai ter para você também.

— Ah, obrigada.

Senti o Oblívio rindo acima de nossas cabeças. Mordi os lábios, mais forte do que desejava, tentei controlar a raiva. Olhei para Débora:

— Posso me desculpar te oferecendo uma bebida? Elas têm quase o mesmo efeito que o "doce", e meu amigo ali já está com elas – eu disse, apontando para a mesa onde Daniel estava sentado, nos observando.

Ela olhou para onde eu apontava, e vi que o reflexo da cadeira em seus olhos tinha um brilho dourado. Eu senti a lembrança da caneta me chamando mesmo enquanto estava em transe, não podia ser diferente com ela.

Débora me olhou um pouco desconfiada, mas por fim disse:

— Tudo bem.

Segurei a mão dela, com medo de que ela se afastasse novamente, mas ela veio comigo na direção das mesas sem protestar. Daniel estava sentado na cadeira oposta à que estava brilhando, quando nos aproximamos ele não disse nada, mas fez um gesto negativo com a cabeça, indicando que a lembrança na cadeira não era dele.

Aquele era um plano arriscado, eu sabia, recuperar uma lembrança não significava despertar novamente, mas era a única coisa em que conseguia pensar agora. Aquilo tinha que funcionar. E se não funcionasse...

— Débora, pode se sentar aqui um instante?

Ela olhou para a cadeira de prata e depois para mim.

— Por quê? – indagou. – Onde estão as bebidas que você falou?

Abri a boca para tentar convencê-la, mas não consegui pensar em nada, ela deu um passo para trás.

— Acho que se você sentar vai ser melhor quando provar isso – disse Daniel, estendendo a mão e revelando o globo escuro e lustroso que eu tinha tirado das mãos de Débora há pouco tempo.

Olhei para ele, surpresa. Ele tinha juntado aquilo do chão? Os olhos verdes viraram para os meus como se dissessem "confie em mim".

— Oh... – disse Débora, os olhos se enchendo de um desejo voraz – você encontrou.

Me sentei ao lado de Daniel, fazendo um gesto para que ela fizesse o mesmo, mas ela continuou em pé, o olhar direcionado para a pérola negra.

— Se você não quer, então eu posso provar no seu lugar – disse Daniel, levando o "doce" aos lábios.

— Não! Eu quero – ela disse, e então sentou-se no assento à nossa frente.

Nesse momento a cadeira de prata brilhou mais forte, envolvendo ela em sua aura prateada, os olhos dela se arregalaram enquanto olhavam para o outro mundo. Tentei contar quanto tempo aquilo levou, uns quatro ou cinco segundos, então o brilho se apagou e Débora fechou os olhos, sem dizer nada. O desespero começou a se insinuar dentro de mim, não tinha dado certo...

Ela abriu os olhos, pestanejando um pouco, depois focou-os em mim.

— Elie? – ela disse, e em seguida sorriu enquanto acrescentava: – Puxa, nós dançamos muito, não foi?

Eu não consegui me conter, pulei da cadeira e a abracei.

— Me desculpa, foi tudo minha culpa, se eu não tivesse trazido você para cá...

— Do que você está falando? Fui eu que te convidei para dançar – ela disse, os olhos brilhando enquanto as luzes se refletiam neles. – Aliás, sabe do que eu lembrei agora?

— Do quê?

Desejei que as lembranças dela fossem melhores do que as minhas.

— Eu já estive em uma festa dessas quando estava viva, sério, acho que foi apenas uma vez, minha família não podia saber, mas tinha até um cara... – ela parou de falar, percebendo a presença de Daniel, e acrescentou em um cochicho. – Quem é esse?

Ele nos observava em silêncio.

— Débora, este é o Daniel – eu disse, um pouco sem jeito. – Daniel, Débora.

— Olá – ele disse, fazendo um aceno para ela.

— Ele me ajudou a te encontrar e... acho que nos conhecíamos antes de vir para esta cidade.

— Qualquer amigo da Elie é meu amigo também, eu acho – disse Débora, e apertou a mão dele. Conhecer pessoas novas não parecia ser o tipo de coisa que ela fazia com muita frequência quando viva.

— Vocês podem responder algumas perguntas agora? – perguntou Daniel.

Débora e eu nos entreolhamos, então lembrei do motivo pelo qual eu tinha voltado para aquele lugar.

— Na verdade, tem alguém que pode responder suas perguntas melhor do que nós – eu disse. – Foi por causa dele que viemos para cá, e acho que está na hora de vocês o conhecerem.

Olhei para o outro lado, na direção onde eu lembrava que ficava o bar, agora tudo parecia mais claro. Mesmo assim, não poderia arriscar:

— Nós precisamos atravessar a pista de dança, mas é melhor ficarmos juntos, e não deixar que o som nos domine de novo, ok?

Débora acenou com a cabeça. Daniel levantou-se e disse:

— Estou logo atrás de vocês.

Assim nós três nos infiltramos no meio da multidão de pessoas mortas, atravessando a pista de dança com passos rápidos. O tempo todo eu olhava para trás para ver se eles estavam comigo. Às vezes via Débora passar a mão no local escuro em sua barriga, quase inconscientemente. A música nunca parava, ecoando dentro de mim, e eu já estava tão cansada dela que minha mente começava a ansiar por um pouco de silêncio.

Por fim, chegamos ao balcão iluminado, não tinha ninguém sentado nos bancos, e quando nos aproximamos o bartender me viu e abriu a boca, numa expressão que misturava surpresa e contentamento.

— Eu pensei que nunca mais veria esse seu rosto sardento, Elie! – disse Satayash, ele olhou para os dois ao meu lado, franziu um pouco a testa e continuou: – E dessa vez está acompanhada, o que você andou aprontando?

— É bom ver você também, Satayash. Estes são Débora e Daniel, eles também despertaram.

Satayash analisou Daniel e em seguida olhou para mim, havia um brilho estranho quase imperceptível nos olhos dele. Depois olhou para Débora com mais intensidade. Ela, por sua vez, parecia escandalizada com os visíveis quatro braços dele.

— O rapaz eu sei que desceu as escadas deste lugar, mas essa aí... definitivamente não é daqui – ele disse apontando para Débora. – Ah, Elie, o que você fez? De onde você a tirou?

— Nós estávamos em uma igreja, e eu quis ajudar ela...

— Espera... – ele me interrompeu erguendo uma das quatro mãos. - Você a tirou de onde? De uma igreja?

— Sim, por quê?

Ele olhou para mim e depois para Débora, em seguida jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Nós três nos entreolhamos, sem entender. Sentamos nos bancos enquanto esperamos ele parar de rir e enxugar as lágrimas.

— Você está me dizendo que despertou alguém no estabelecimento de Belzebel? – ele perguntou, tentando conter o riso. – Ela sempre se orgulhou de nunca ter perdido nenhum cidadão. Fico imaginando como deve ter ficado irada com você.

Dei um sorriso amarelo.

— Ela não colaborou muito, realmente.

— Então deixe-me adivinhar – continuou Satayash –, como ela não colaborou, vocês esperam que eu responda todas as perguntas entediantes que estão atormentando suas cabeças?

Olhei para Débora e Daniel.

— Na verdade – comecei –, nós tínhamos muitas perguntas, mas acho que agora eu tenho algumas respostas.

Satayash ergueu uma sobrancelha.

— Você é imprevisível, como sempre – disse. – Mas prometo que vou responder suas perguntas, primeiro por que seus amigos não parecem tão cheios de respostas, e segundo por que não quero ser um porre como Belzebel. – Ele apontou com dois dedos para Débora e Daniel, a ponta das unhas coloridas faiscando com as luzes – vocês já sabem que estão mortos e que vão desaparecer para o nada se não recuperarem a memória, não é?

— Sim – disse Débora, assentindo prontamente com a cabeça

— Que bom, achei que teria que explicar...

— Como assim? – perguntou Daniel.

Satayash revirou os olhos, impaciente.

— Um resumo rápido para o rapaz de madeixas claras: número um – ele ergueu um dos dedos da mão – você está morto. Número dois: – e continuou erguendo em sequência – você vai desaparecer. Número três: você para de existir ou, número quatro: você recupera sua memória e, por fim, número cinco: você escolhe a segunda saída e reencarna em uma nova vida.

Daniel fez uma expressão satisfeita:

— Me parece simples.

— Hum – disse Débora em tom de brincadeira. – A Elie não tinha explicado tão claramente assim.

Eu já estava pronta para protestar e chamá-la de ingrata, mas Satayash me interrompeu.

— Agora que o básico está explicado, quais são as outras perguntas? – deu um sorriso e pegou uma garrafa de bebida que estava no balcão. – Gostariam de beber alguma coisa enquanto jogamos conversa fora?

Fitei ele sem acreditar no que tinha escutado.

— Estou brincando, Elie, você está muito séria – e deu uma piscadela para mim.

Revirei os olhos.

— O que? – perguntou Daniel. – Por que não podemos beber?

— Por que se você fizer isso – explicou Satayash –, vai desaparecer ainda mais rápido do que o normal. Mais uma nota para a sua conta.

— Entendo – ele disse, pondo a mão no queixo. – Então estamos mortos mesmo?

Olhei para ele.

— Pensei que você tivesse acreditado quando contei.

Ele pestanejou um pouco antes de responder:

— Eu acreditei, mas... – ele franziu a testa e encarou os braços extras de Satayash. – Acho que só agora está caindo a ficha.

— Você vai se acostumar rápido, querido – disse o bartender.

Ao meu lado, Débora ergueu a mão com timidez, como se estivesse na escola.

— Com licença, senhor Satan... quer dizer, Satayash, pode nos explicar o que são os servos do Oblívio?

— Acho – disse Satayash, olhando para mim – que a Elie pode responder isso, já que ela disse que agora sabe as respostas.

Dei um suspiro.

— Certo, me corrija se eu estiver errada – eu disse –, mas eu penso que eles têm um nome bem apropriado, essas criaturas, por que é exatamente isso que elas são: servos do Oblívio. A verdadeira questão aqui é: o que é o Oblívio?

— Espera – disse Daniel –, do que estão falando?

— Das coisas encapuzadas que andam pelas ruas da cidade – explicou Débora. – Elas têm apenas um olho e acho que quando tocam as pessoas elas desaparecem.

— Parece que nossa turista também fez a lição de casa.

Débora corou um pouco.

Olhei para Satayash, ele fez um gesto para que eu continuasse:

— O Oblívio – eu disse, lembrando do vazio que tinha me dominado enquanto dançava – é a primeira saída, o Esquecimento, a força que se contrapõe às lembranças e à segunda saída. E muita mais poderosa. E eu acho... que ele se manifesta na forma do olho gigante que existe no céu desta cidade.

— Você está certíssima – disse Satayash enquanto batia palmas com as mãos superiores. – Aposto que esteve na beira do abismo, não é, Elie? Mas preciso pontuar algo aqui – ele ergueu um dedo da mão inferior. – A influência do Oblívio é muito mais poderosa por que é isso que a maioria dos cidadãos deseja.

— Não parecia isso que o homem que eu vi ser consumido pelos servos desejava – rebati, lembrando das duas pessoas que vi desaparecerem antes de chegar à boate.

Satayash deu de ombros.

— Bom, você deve estar falando do sujeito indiano que estava aqui depois que você partiu – agora o sorriso dele havia desaparecido, e o rosto fino e constantemente mutável pelas cores das luzes pareceu um pouco sinistro. – Os servos do Oblívio só vão atrás daqueles que quebram a única lei desta cidade.

— Lei? – perguntou Daniel. – Existem leis até depois da morte?

— Ah, sim, rapazinho anarquista, mas é apenas uma – ele disse, em seguida virou-se para mim. – A lei que aquele homem quebrou e, pelo visto, você também, Elie.

Ficamos em silêncio por um momento, as batidas da música insistiam perigosamente. Ergui as sobrancelhas para Satayash, num gesto para que ele fosse em frente.

— Você não faz ideia, não é? – os olhos de Satayash fixaram-se em Débora, que roía as unhas mais uma vez. – Burlar a seleção natural deste lugar... usar sua própria influência para despertar outro cidadão. Insistir para que ele tome consciência da realidade que o cerca, mesmo a contragosto.

— Você está dizendo...?

— Esta é a regra da cidade. Eu expliquei isso para Lavesh, mas ele não me ouviu e despertou a garota que estava com ele. – Satayash despejou um pouco de bebida em um copo e deu um gole, pensativo. – Eu deveria ter informado você sobre isso antes, me desculpe...

— Então quer dizer...?

Olhei para Débora, ela tinha os olhos brilhantes, as narinas se dilatando, como se estivesse prestes a chorar. Os servos do Oblívio estavam atrás de nós porque eu a tinha despertado.

Eu não consegui conter a risada, o som se espalhou pelo bar, vencendo a música por alguns instantes. Os três olharam para mim.

— Não precisa se desculpar – eu disse quando finalmente consegui parar de rir. – Eu teria despertado a Débora mesmo que você tivesse me avisado. E não é só isso, se eu tiver oportunidade, vou fazer o possível para despertar outros cidadãos. – Tentei dar meu melhor sorriso atraente. – Sabe, Satayash, eu descobri recentemente que já tenho um histórico de criminosa na minha vida passada e, se eu quebrar as leis aqui também, talvez isso me ajude a recuperar mais lembranças.

Satayash soltou outra gargalhada.

— Eu queria muito propor um brinde – ele disse, erguendo o copo, a bebida cor de bronze girando lá dentro, em espiral. – Mas infelizmente esta bebida não foi feita para adeptos da segunda saída – e bebeu o resto do líquido.

Débora tocou meu ombro.

— Elie, me desculpe... por minha culpa, nós quase fomos... – as lágrimas pareciam prontas para transbordar.

— Ei, não precisa chorar, olhe para mim – ela ergueu o rosto, os olhos castanhos ainda nublados. – Eu disse que nós íamos recuperar nossas lembranças juntas, lembra?

Ela assentiu. Satayash ofereceu um pequeno lenço que ela aceitou sem hesitar, limpando as lágrimas e assoando o nariz.

— Bom, isso tudo é muito lindo – ele disse, sem achar as coisas muito lindas –, mas se vocês realmente querem sair pela segunda porta, não é como se tivessem o resto da eternidade. Agora vocês já sabem que precisam correr caso vejam um servo do Oblívio e, se forem pegos, vão passar pela primeira saída a força. Mais alguma pergunta?

— Não consigo pensar em nada agora – eu disse, sentia minha mente ficar cada vez mais cansada, aquilo era sono?

— Eu tenho algumas perguntas – disse Daniel.

Satayash virou-se para ele.

— Diga.

— As lembranças são esses objetos estranhos que brilham, não é?

— Correto – disse Satayash, me perguntei se ele costumava explicar aquelas coisas com muita frequência. – Vocês precisam coletar todas elas, até encontrarem a lembrança da própria morte, quando compreenderem o motivo pelo qual chegaram até aqui, vão poder escolher entre o Esquecimento e a Reencarnação.

— Certo – disse Daniel. - Tenho uma última pergunta – ele olhou para mim e depois acrescentou: – Por que eu sinto que já conheci a Elie antes de vir para cá?

Satayash ergueu uma sobrancelha.

— Quem sabe? – ele deu um sorriso enigmático. – Talvez as lembranças possam te ajudar com isso. Elas estão esperando por vocês lá fora.

Daniel sorriu. E me flagrei contemplando aquele sorriso mais do que eu gostaria.

Aquele era o momento para partirmos, eu não sabia se o som da boate ainda tinha influência sobre Débora, mas não queria continuar arriscando. Além do mais, minha mente se sentia cansada daquele lugar, mesmo a dança das luzes parecia ficar cada vez mais monótona, aquilo era um novo tipo de feitiço?

— Satayash – disse enquanto me levantava do banco – Mais uma vez obrigada. Talvez nós não voltemos a nos encontrar, mas fico muito feliz por ter descido a escada do seu estabelecimento, obrigada por ser o meu guia. – Por um momento a expressão dele demonstrou extremo júbilo, como se aquilo fosse o melhor elogio que poderia receber. — Eu só queria deixar isso claro, seja lá o que você for.

Débora e Daniel levantaram-se também.

— Foi uma honra receber e orientar vocês três, eu realmente espero que alcancem seus objetivos. – Era impressão minha ou os olhos dele estavam mais brilhantes do que antes? – Agora é melhor vocês irem, Ele já sabe que vocês despertaram e ainda declararam se contrapor a sua essência. Tomem cuidado.

— Nós vamos tomar – eu disse –, estamos juntos agora.

Ele levantou as duas mãos do braço direito e acenou para nós.

— Adeus, Satayash.

Débora e Daniel também se despediram e me acompanharam. Mais uma vez mergulhamos na multidão de fantasmas. Enquanto passávamos por eles, eu tentava distinguir cada rosto, à procura de algo familiar, mas não havia nada. Cada um daqueles rostos tinha uma história, uma vida que havia deixado para trás, algo único, especial. E agora o Esquecimento abocanharia todos eles. Eu quase não podia suportar aquilo, mas também estava tão cansada para lutar por eles.

Nós chegamos até as portas duplas e tomei a frente, olhando através do vidro das janelas, não havia nenhum sinal dos encapuzados. Virei-me para Daniel.

— Está pronto para conhecer o lado de fora?

Ele se aproximou, ficando muito perto de mim.

— Se estiver com você, sinto que vou estar pronto para qualquer coisa. – Senti meu rosto enrubescer, Débora tapou a boca e deu uma risadinha.

Sem dizer nada, usei a mão direita para abrir a porta e, assim, nós três saímos para a noite.

Agora eu tinha um braço a menos, ainda não tinha recuperado minha memória, e as únicas lembranças que tinha encontrado eram tão confusas que quase não significavam muita coisa. Mas fui tomada por um sentimento genuíno, um sentimento que eu tinha certeza de não experimentar com muita frequência enquanto estava viva.

Eu me sentia completa.

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