Parte 10/10 - Empatia
Por muito tempo eu estive presa.
E ali, revisitando minha antiga lembrança, eu percebia que o momento em que eu fiquei sem reação no hotel de Morfélia não tinha sido o único em minha vida. Enquanto os garotos tiravam sarro de mim, eu tentava a todo custo me esconder em algum canto da minha mente. Tentava não demonstrar nenhum sentimento. O som da risada deles me fazia querer suprimir minha existência, eu não queria sentir nada, porque tudo que eu sentia era nojo de mim mesma.
Naquele tempo, mesmo sem saber, eu desejava o Oblívio.
― Olha só como ele nem disfarça – disse um dos rapazes. – Acho que ele tá sentindo tesão.
O que esfregava a mão entre as pernas riu ainda mais alto e disse:
― Quer dar uma chupada, Eliezer?
Quando ele disse isso alguma coisa borbulhou em meu sangue. Algo que eu não consegui controlar. Eu senti a raiva possuir cada célula do meu corpo. Senti meus dentes trincarem. Eu não era mais forte do que eles, então peguei minha mochila e avancei para o que não parava de esfregar a mão entre as pernas. Usei toda minha força para fazer a mochila descer sobre sua cabeça. O impacto foi forte e por um momento ele pareceu ficar tonto e cambaleante.
― FILHO DA PUTA! – gritou o outro, me empurrando para a parede.
Ele meteu um soco em meu olho que já estava inchado e senti meu rosto explodir em dor.
O garoto mais forte se recuperou rapidamente e também veio para cima de mim, ele me empurrou com ainda mais força e caí no chão frio do banheiro.
― Seu verme... desgraçado – ele dizia no intervalo entre cada chute que me dava. – Seu animal.
Agora os dois me davam pontapés enquanto eu me encolhia e tentava proteger meu rosto com as mãos. Não sei quanto tempo aquilo durou, mas em algum momento eles cansaram e pararam.
― Ei, acho melhor voltar para a sala antes que alguém apareça.
― É, não quero me encrencar por causa desse bostinha – senti ele aproximar o rosto do meu até sentir sua respiração: – É melhor você não contar que fomos nós, senão você vai ficar muito fodido.
E me presentando com um último pontapé na barriga eles saíram pela porta do banheiro.
Eu continuei ali, em posição fetal, sentindo os hematomas ficarem roxos por todo o corpo. Tudo que eu queria era desaparecer. Tudo que eu queria era ser esquecido. Me arrastei até um dos boxes e fechei a porta bem a tempo, porque naquele momento alguém entrou no banheiro. Eu não queria que ninguém me visse naquele estado e fiz o possível para que a pessoa não notasse minha presença.
Meu rosto estava úmido de lágrimas mesmo eu não lembrando de quando havia chorado. Eu ainda estava suprimindo todos os sentimentos. Encolhida dentro do box eu fazia o possível para que nenhum pensamento viesse a mente, era melhor assim. De modo que mal percebi quando a pessoa no banheiro saiu. Eu fiquei uns bons minutos vegetando. Apenas um corpo sem essência, morto por dentro. Mas em algum momento a dor pelo corpo foi ficando muito forte, e lembrei de pessoas que haviam morrido com hemorragias internas.
Aquilo me tirou do estado vegetante e comecei a sentir medo.
Abri a porta do box devagar e me apoiei nas pias, olhando meu reflexo no espelho, ainda mais acabado do que antes. O rosto sangrando, os cabelos vermelhos desgrenhados. No fundo, bem no fundo, eu tinha medo de morrer. Eu não sabia explicar, mas eu tinha a sensação de que havia algo dentro de mim pelo qual ainda valia a pena lutar. Eu não queria morrer. Eu não queria!
E foi exatamente naquele momento que um pensamento trovejou nas nuvens escuras da minha mente. Um lampejo de luz. Um pensamento muito simples, do tipo que provavelmente todas as pessoas já tiveram, mas que ignoravam sua complexidade. E o som daquele trovão reverberou silencioso.
"Um dia você vai morrer" – meu reflexo parecia querer dizer.
Eu tentei desviar meus olhos do espelho, mas não consegui.
Aquelas palavras me encheram de desespero. Por que elas eram a verdade. Uma verdade enlouquecedora para alguém que apesar de tudo ainda queria viver.
"Um dia você vai morrer" – ele repetiu.
Aquela voz na minha mente era a minha.
"Não importa o que você faça, não importa o que você tenha – ela continuou –, um dia você sentirá seu coração parar de bater, sentirá seus pulmões implorarem por um pouco mais de ar, sentirá seus pensamentos desaparecerem até tudo ficar escuro. E não há ninguém neste mundo que pode lhe dizer o que acontece depois."
E notei que apesar das palavras mórbidas ela tinha um tom reconfortante.
Eu pensei que o medo que sentia levaria minha sanidade embora. Eu não queria morrer. Mas foi exatamente naquele momento que alguma coisa dourada reluziu em meus olhos através do espelho. E foi nesse momento que compreendi.
Foi nesse momento que eu despertei.
Aquelas palavras me libertaram.
"Um dia você vai morrer, e isso é tão certo quanto o sol vai estar no céu amanhã."
Uma grande paz e alívio percorreram meu corpo e se estamparam em meu rosto machucado, finalmente um sorriso tranquilo apareceu em meu reflexo no espelho enquanto lágrimas caíam abundantes na pia.
Por que eu não estava sozinha. Eu nunca estive sozinha. Todas as outras pessoas do mundo, sem exceção, estavam comigo. Por que todas compartilhavam do mesmo destino. Não importava o que elas tinham, não importava o quanto me machucassem. Porque nisso nós éramos iguais. Um dia todos iriam morrer.
"Um dia você vai morrer, e tudo o que importa é o que você faz a partir do momento que realmente toma consciência disso."
Um sentimento de gratidão percorreu meu corpo.
E naquele silêncio eu finalmente compreendi quem eu era. Eu sempre soube que meu corpo e minha essência não estavam em harmonia, e agora tudo estava claro. Mas eu me sentia grata, por que eu vivia em um mundo e em um tempo em que eu poderia corrigir aquilo. Minhas mãos agarram a beirada da pia até as juntas dos dedos ficarem muito brancas, meu reflexo agora estava imbuído com uma determinação feroz nos olhos. Sim. Aquele seria meu objetivo a partir daquele dia: externalizar quem eu era. Eu nunca mais esconderia meus sentimentos.
Eu me virei, juntei minha mochila do chão e saí pela porta do banheiro.
Foi naquele dia que Eliezer morreu.
E foi naquele dia que eu, Elie, despertei.
A Lembrança foi tomada por uma luz dourada.
Por muito tempo eu estive presa. Presa em minha própria mente. Presa em meu próprio corpo.
O início nunca é fácil para ninguém. Mas eu tive sorte de ter o apoio do meu pai. Quando completei a maioridade e comecei a trabalhar na empresa de telemarketing para juntar dinheiro, os tratamentos hormonais já haviam começado. Eu precisava trabalhar para pagar por eles, enquanto meu pai juntava dinheiro para o procedimento final.
Naquele tempo, muito da minha essência já havia se externalizado. Poucos diriam que um dia aquele corpo pertencera a Eliezer, a pessoa que fazia o possível para não sentir nada. Mas naquela tarde em que um cliente havia desligado o telefone abruptamente, eu pude ouvir algo que não queria.
― Está vendo aquela ali – disse a mulher de meia-idade para o outro rapaz que trabalhava na empresa, ambos próximos de um bebedouro. – Sabia que na verdade ela é "ele".
― O que? – fez o rapaz com ar de riso, quase se engasgando com a água que estava bebendo.
― É verdade, dizem que tem até... você sabe... e tudo.
Eu sentia o olhar deles arder em minhas costas. O constrangimento e a ira lutando para destruir tudo.
― Eu não acredito. Nem parece que é...
Nesse momento eu não pude evitar, olhei para eles e confirmei que estavam falando de mim, os olhos deles estavam cravados nos meus, desejando a minha inexistência. O rapaz até desviou o olhar quando me virei, mas a mulher continuou me encarando com ar de reprovação.
Me perguntei como eles sabiam disso. Talvez alguém do setor de recursos humanos, com acesso aos meus documentos, tivesse vazado a informação. Como se aquilo fosse um crime que eu houvesse cometido.
Voltei-me para a tela do computador e fechei os olhos. Eu precisava me controlar, pelo menos até juntar dinheiro o suficiente, ou eu jamais me libertaria por completo.
A luz dourada ofuscou tudo novamente, me levando para outro lugar.
Agora eu estava deitada, minhas mãos apoiadas na barriga. Havia uma mulher sentada em uma poltrona próxima da que eu estava, ela anotava alguma coisa em uma prancheta. Fazia parte da burocracia do processo pelo qual eu estava passando fazer terapia com um profissional da saúde mental. Para ser sincera, eu sabia o que eu era, sabia quem eu era, e sabia o que eu queria desde o momento que havia despertado naquele banheiro. Mas até aquele dia eu não me importava em fazer aquelas sessões. Até aquele dia.
Havia uma mesa entre a mulher e eu e, acima dela, um vaso com rosas azuis.
― ... eu não quero realizar a cirurgia de redesignação sexual para agradar aos outros – ouvi minha voz explicar. – Eu quero realizá-la porque é assim que eu sempre me vi, porque é assim que eu quero que os outros me vejam. Eu quero poder me olhar no espelho e ver eu mesma do outro lado.
― Então, você acha que nasceu como mulher em um corpo masculino?
― Sim.
Ouvi a caneta riscando o papel e em seguida a pergunta fatídica:
― Tem certeza?
Senti um leve desconforto. A velha raiva querendo subir. Mas achei que ela só estava testando minha determinação para ter certeza de que não haveria arrependimentos depois.
― Tenho – respondi com firmeza.
― Entendo – mais rabiscos na prancheta. Ela franziu o cenho como se sentisse algum incomodo. Tentei ignorar isso e continuei:
― Eu sabia que havia algo de diferente em mim desde que era pequena, às vezes tenho a sensação de que sabia disso até antes, e, mesmo que eu não soubesse, as outras crianças se assegurariam de que eu soubesse. Minha mãe nunca aceitou isso muito bem, ela sempre foi... bom... meio apegada a alguns princípios, mas eu não a culpo, eu mesma levei muito tempo para aceitar quem eu sou de verdade. E só agora eu sinto que estou me libertando, é como se a cirurgia de redesignação fosse quase um ato simbólico.
Houve um momento de silêncio e então a pergunta novamente:
― Tem certeza?
Virei-me lentamente e notei que o incômodo com minha persistência estava claro em seu rosto. Qual era o problema com ela? Era tão difícil assim me entender? Meu pai e eu não podíamos pagar profissionais renomados para me atender, mas pensamos que aquilo não importava. Nós havíamos subestimado a finalidade daquelas terapias.
― Tenho.
― Sabe, Eliezer... Elie, como você quiser, quando um profissional da saúde atende um paciente que quer amputar um membro saudável, nós chamamos isso de transtorno de identidade da integridade corporal, alguns estudos dizem que essas pessoas possuem algum tipo de dano cerebral...
― Espera – eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. – Você está dizendo que eu tenho algum tipo de... dano cerebral?
A raiva estava voltando, eu podia sentir os chutes, os insultos que havia levado durante a vida toda e não estava disposta a esconder meus sentimentos e aceitar tudo de novo calada. A raiva era uma resposta àquilo tudo. Mas eu consegui controla-la, eu podia lidar com aquilo. Por que eu havia despertado.
― É uma hipótese, quando se quer amputar...
― Não se trata de amputar ou não – eu a interrompi -, como eu disse, a cirurgia é quase um ato simbólico, o que eu quero é reconstruí-lo, readaptar meu corpo para que atenda à minha essência e à minha consciência. Se você desconhecesse minha origem e o motivo pelo qual eu estou aqui, se apenas me visse como eu sou agora, estaria tentando refutar o que eu sei sobre mim mesma? Você saberia a diferença entre o que eu sou ou não?
Ela ajeitou os óculos no rosto e fez menção de dizer alguma coisa, mas não deixei que ela continuasse.
― Não. Você não saberia. Porque a identidade de alguém só pode ser acessada por ela mesma e por ninguém mais. – Tentei atenuar o sentimento hostil dentro de mim e continuei num tom mais calmo: – Sabe... você não precisa me entender se não quiser, tudo o que eu sempre quis é que pelo menos me respeitassem. E o único motivo para eu estar aqui é porque preciso que você me ajude a dar continuidade no meu processo.
Ela mal conseguia disfarçar o desagrado por baixo dos óculos.
― Então... você quer que eu te ajude a ter um corpo artificial? Porque é isso que você terá, um corpo artificial.
Nesse momento os olhos dela correram rapidamente para algo sobre a mesa e segui seu olhar, me deparando com as rosas azuis que estavam entre nós.
Estaquei ao ver aquilo, ela havia posto aquelas flores de propósito para acentuar o que havia dito. Rosas azuis. Artificiais. Senti o sangue ferver, lágrimas querendo desabar.
Levantei, trêmula, do divã.
― Você está enganada... tem uma diferença entre essas rosas e eu – meus lábios quase não se moviam ao falar e, subitamente, com as costas da mão, derrubei o vaso de flores, que caiu e se esparramou com estardalhaço sobre o vidro. – EU NÃO SOU UMA COISA, EU SOU UM SER HUMANO!
E não esperei para ver a reação dela, eu simplesmente saí pela porta. E nunca mais voltei.
Mais uma vez minha visão foi tomada pela luz dourada.
Por muito tempo eu estive presa, e o momento mais difícil dessa prisão foi o último passo para me libertar: a cirurgia de redesignação sexual. Eu tinha medo da morte, mas nem mesmo esse medo me impediria de viver como eu queria. Do que adiantava viver sem ser quem eu era por completo? Essa etapa foi a gota d'água para minha mãe, ela tinha princípios muito fortes sobre o que eu estava fazendo, princípios muito relacionados com o que aconteceria com minha alma após a morte. E por diversas vezes eu me fazia a mesma pergunta: se ela era capaz de acreditar que havia uma alma em mim, uma essência, então por que era incapaz de acreditar que minha alma não harmonizava com meu corpo? De qualquer forma, eu não estava disposta a desistir agora, e nunca mais nos falamos desde então. Meu pai gastou o dinheiro que havíamos juntado para que tudo ocorresse da forma mais segura possível. E assim foi feito.
A primeira vez que me vi em um espelho e reconheci a mim mesma foi indescritível, foi a primeira vez que senti que eu realmente estava completa em corpo e essência, e tudo que eu queria a partir daquele momento era viver.
Logo após a cirurgia eu me mudei da cidade em que vivia e comecei uma nova vida, em um novo lugar, em um novo emprego. Conheci pessoas novas. E às vezes, só às vezes, eu sentia que as pessoas ao meu redor não viviam como elas desejavam, como se faltasse alguma coisa para serem autênticas. Como se fossem subjugadas por uma força coletiva e opressora. Como eu vivia muito tempo antes.
Um ano se passou desde que eu havia realizado a cirurgia, e agora a lembrança havia me transportado para um outro estabelecimento; um restaurante. Eu estava sentada de frente para um homem calvo, e agora eu sabia prontamente quem ele era.
― Pai – eu disse quando ele se acomodou na cadeira.
Eu não o via desde que havia me mudado.
― Como o tempo passa rápido, não é, Elie? Hoje já faz um ano desde que você nasceu de novo – sua voz demonstrava uma ternura da qual eu não estava acostumada a ouvir nos últimos tempos.
Era inacreditável o quanto eu pude contar com o apoio dele, se não fosse isso, tinha plena ciência de que meu processo de transição teria sido insuportavelmente mais difícil. Geralmente não era isso o que acontecia com pessoas nas mesmas condições que eu. Eu sempre admirei a capacidade que ele tinha para compreender as pessoas.
Ele depositou uma pequena caixa sobre a mesa.
― Então você merece um presente de aniversário.
Surpresa e felicidade se estamparam em meu rosto.
― Pai... eu...
Era um sentimento admirável aquele, a felicidade, absolutamente autêntica e muito difícil de fingir. Do tipo que você só sente de forma plena quando está sendo quem você sabe que é.
― Não precisa dizer nada, Elie...
Lágrimas rebeldes escaparam pelo rosto e tentei limpá-las rapidamente.
― Pai, como estão você e a mamãe?
Ele fez uma careta meio imperceptível e disse:
― Bom, ela nunca me perdoou por ter ajudado você com todo o processo de transição, com a cirurgia de redesignação e todo o resto, mas ultimamente as brigas não ocorrem com muita frequência, pode ficar tranquila.
― Ela ainda diz que vamos queimar no inferno?
Nesse momento meu pai soltou uma risada alta, fazendo com que algumas pessoas no restaurante olhassem para nós.
― É, pode se dizer que algumas pessoas nunca mudam, mas o lado positivo é que temos a garantia de que vamos estar juntos lá – ele riu mais um pouco e depois continuou num tom mais ameno: – Você sabe como sempre foi a sua mãe, sempre querendo controlar tudo e todos. Mas um dia ela vai te entender, Elie, só dê um pouco de tempo para ela.
Acenei com a cabeça e limpei o resto das lágrimas.
― Você não vai abrir o presente? Sinceramente eu não sabia o que comprar, nunca fui muito bom nisso, mas espero que você goste.
Desembrulhei a caixa e ao abri-la vi a tiara branca. Ela era um pouco larga e simples, sem nenhum adorno.
― É linda – eu disse pondo-a na cabeça. – Muito obrigada, pai...eu não tenho palavras... estou feliz que você esteja aqui.
― Que bom que você gostou – ele disse com um sorriso brando. – Ficou muito bonita mesmo.
Em seguida ele se levantou de onde estava e me abraçou mais uma vez, e enquanto eu estava ali sentindo o calor do seu abraço ele me disse a melhor coisa que um filho pode ouvir de um pai.
― Tenho orgulho de você.
Ele era um homem simples e sincero, e provavelmente eu tenha herdado isso dele, e eu o amava. Não porque ele possuía o mesmo sangue que o meu, ou por que havia me criado. Eu o amava porque ele havia me ensinado a coisa mais importante que se pode ensinar a um filho: que eu havia nascido livre.
E assim tudo ficou dourado novamente.
Depois que passei por todo o processo de transição e me mudei para aquela nova cidade eu nunca mais havia ouvido piadas a meu respeito, nem olhares acusadores, ou cochichos pelas costas. Eu me sentia completa comigo mesma, sentia que estava vivendo como sempre devia ter vivido. Eu não precisava mais afirmar e reafirmar quem eu era para as outras pessoas, por que elas também olhavam para mim enxergavam como eu era. Eu tinha um novo emprego, novos amigos e uma nova vida.
Havia apenas uma coisa mínima que não havia sido corrigida: nos meus documentos de identificação ainda constavam o nome e sexo de antes da transição. A burocracia para alterá-los foi atrasada ainda mais pela minha discussão com a psicóloga, mas eu pensava que aquilo não me causaria problemas, até aquela noite...
Aquela noite em que eu havia ido para uma boate com uma amiga, como tantas vezes havia ocorrido desde que me mudara. Uma noite em que eu estava sentada na mesa ouvindo a música alta e vendo as pessoas dançarem ao som de música eletrônica. Uma noite em que eu havia trocado o Whisky por um copo de refrigerante intocado que borbulhava insistentemente na minha frente.
Apesar de finalmente ter me libertado, às vezes eu sentia algo esquisito e incompreensível. Depois de tudo que eu havia passado, todas as humilhações e provações que passei deviam ter me tornado forte, e era isso que eu havia me tornado. Mas eram naqueles momentos de paz, onde eu já não precisava me preocupar com nada, que as lembranças voltavam como feridas que se negavam a cicatrizar. E eu me perguntava o que aquelas pessoas que dançavam pensariam se soubessem que eu era uma mulher trans.
Naquele dia na escola, quando eu despertei, eu soube que não estava sozinha, porque todas as pessoas eram iguais a mim de certa forma. Nós compartilhávamos o destino incerto e inconcebível da morte. Será que alguma delas tinha noção do quão complexo aquilo era? E mesmo assim às vezes eu me sentia sozinha e um pouco infeliz. Não. Era um pouco mais complicado do que isso, às vezes eu sentia que estava esquecendo alguma coisa importante, algo além do fato de que um dia iria morrer. Algo como um vazio. Algo que eu precisava encontrar. Algo que eu precisava fazer. Algo que eu precisava lembrar.
Aqueles pensamentos estavam me levando a um beco sem saída, senti que não podia lidar com eles naquela noite e por isso ajeitei minhas coisas para ir embora. E como esperado, foi nesse momento que ele sentou ao meu lado.
― Oi – disse a pessoa que me matou.
― Oi – respondi.
Quando olhei para Daniel, percebi que a consciência dele também estava lá, vivenciando a lembrança. E nós vimos o desenrolar daquela conversa exatamente como ocorrera quando vi pela primeira vez. O sentimento complicado de antes foi ficando mais tolerável, como se eu tivesse encontrado o que precisava encontrar.
― Nos conhecemos de algum lugar? – ele perguntou.
E novamente houve a troca de palavras em que ele ficou meio embaraçado, e ele continuou falando mesmo assim, sem medo, como se já me conhecesse. E eu o compreendi.
― ... às vezes eu penso, pela maneira como as pessoas se tratam, que elas não percebem que tudo o que temos perante algo tão sem sentido quanto a morte somos nós mesmos e...
― ... uns aos outros – ouvi minha voz completando.
Mesmo ali na lembrança, ele era tão familiar. Mas onde? Onde nós havíamos nos encontrado antes? Quando?
Nós continuamos a conversar e mais tarde nós dançamos sob o som calmo e agitado que estava tocando. Alto. Cada batida nos unia. E eu sentia que tudo ficaria bem. Nós éramos nós mesmos. Todas as pessoas que dançavam conosco ouviam o mesmo som, dando a impressão de que elas também sabiam o que nós sabíamos.
Que um dia nós morreríamos. Todos nós. Nós éramos diferentes e iguais, e tudo o que precisávamos fazer era ao menos tentar entender...
Daniel e eu nos beijamos em algum momento, e ele sentia o mesmo que eu do outro lado da lembrança. O nervosismo aumentava a cada respiração, e atingiu seu ápice quando o convite para o hotel surgiu, mas eu aceitei, apesar de aquela ser a primeira vez que eu me relacionava daquela maneira com outra pessoa desde que havia transicionado.
A luz dourada veio novamente, dessa vez acompanhada pelo som agudo de uma campainha, ela reverberou no silêncio da recepção, como um arauto da minha última lembrança.
Eu estava ao lado dele, nossas mãos resvalavam muito próximas enquanto aguardávamos. Bem no fundo, contra a minha vontade, eu me perguntava se ele sabia o que eu era, se ele sabia do meu passado, mas ao mesmo tempo eu insistia que aquilo não importava, e que ele não se importaria se soubesse.
Então o atendente do hotel saiu de trás de uma porta, convocado pelo som da campainha, ele tinha cabelos castanhos e ao ver seu rosto notei que havia algo familiar nele. Algo terrivelmente familiar. Enquanto Daniel alugava um quarto para nós eu tentava lembrar onde tinha visto o atendente antes. Então ele pediu nossos documentos de identificação, e percebi meu erro imediatamente, achando que tudo terminaria ali mesmo, entreguei o documento que não mostravam minha verdadeira identidade, mas ele pareceu apenas checar nossas idades e nos devolveu. Ao fazer isso, ele me encarou pela primeira vez, parecendo me reconhecer também. Mas eu guardei o documento rapidamente na bolsa e virei o rosto, eu faria qualquer coisa para que nada arruinasse aquela noite.
Quando nos afastamos da recepção e subimos as escadas, senti meu coração voltar ao ritmo normal.
― Você está bem? – perguntou Daniel. – Se quiser ainda posso te deixar em casa. Sei que é meio precipitado no primeiro encontro...
― Eu estou bem – e o beijei para confirmar isso.
O quarto em que entramos era exatamente como na primeira vez que eu havia visto aquela lembrança: cama de casal, duas mesas de cabeceira, dois tapetes pequenos de cada lado, e um banheiro. Analisei a mesa de cabeceira, retangular, com arestas pontudas, naquele dia eu não sabia, mas eu estava observando o objeto que causaria minha morte. Coloquei minha tiara e bolsa sobre ela. Chegava a ser engraçado ver isso agora. É extraordinário o quanto ignoramos a fragilidade de nossos corpos.
Mas era claro que nada parecido passava pela minha mente naquela noite, e a minha versão da lembrança deixou que o desejo viesse à tona. Daniel e eu nos beijamos com mais intensidade. A porta foi fechada às pressas. E quando me dei conta já estava deitada na cama. Meu coração batia tanto que pensei que fosse sair pela boca, era a primeira vez que fazia aquilo.
"E se ele soubesse... e se ele soubesse..." – uma voz não parava de dizer em minha mente, e o medo também estava ali.
― Espera – eu disse, me levantando da cama. – Preciso usar o banheiro antes.
― Ok – disse Daniel sorrindo. O rosto corado e o cabelo bagunçado.
Entrei no banheiro e acendi a luz.
O espelho mostrou uma moça de cabelos ruivos e sardas no rosto.
"Você tem que se controlar, Elie. Ele gosta de você, e você não deve nada a ninguém. Você merece ser amada, pelo menos uma vez."
Eu precisava permitir que Daniel me conhecesse antes de falar sobre o meu passado, e eu precisava conhece-lo também. Por que eu sentia que já o conhecia? Por quê?
Liguei a torneira e lavei o rosto. Aquilo sempre me ajudava a me acalmar, desde a época da escola. Mesmo quando eu ainda era Eliezer.
Eu sorri para o espelho e o nervosismo desapareceu, por que Eliezer estava morto, e eu estava ali. Eu existia, eu vivia, o silêncio sempre me dissera quem eu era. Nada me impediria de seguir em frente.
Ouvi batidas na porta do quarto.
― Já estou indo – disse Daniel.
A porta do quarto foi aberta. À minha frente a água continuava a descer sobre a pia. Eu me olhava no espelho. E então a voz do atendente. Um Déjà vu. Então eu lembrei quem ele era.
― Me desculpa por estar interrompendo alguma coisa – disse a voz, agora amadurecida pelo tempo, do garoto que um dia havia me batido na escola. – Mas esqueci de ver uma informação no documento de identificação de vocês.
― Ah, sem problema – respondeu Daniel. – Acho que está aqui em algum lugar.
A água na pia continuava correndo, emitindo um barulho contínuo e hipnotizante.
Nesse momento Daniel estava pegando o documento na minha bolsa sobre a cômoda. O documento que não dizia quem eu era.
Meu corpo todo tremia. Eu fechei a torneira e abri a porta do quarto, e dessa vez o Oblívio não estava ali para impedir qualquer coisa. Ainda segurando meu documento na mão, o atendente olhou diretamente para mim, um meio sorriso se formou em seus lábios, lançando um olhar de malícia que logo depois apontou para Daniel.
― Ah, era isso que esqueci de anotar – ele disse devolvendo os documentos para Daniel. – Tenham uma boa noite.
Daniel fechou a porta devagar, olhando para os documentos em suas mãos.
― Não entendo... – ele disse ainda de costas. – Eliezer?
Eu estava paralisada. A insegurança. O medo. Tudo veio à tona.
Ele virou-se com os olhos arregalados para mim, as sobrancelhas franzidas.
― Você...
― Daniel, eu... eu posso... isso não quer dizer...
Meu coração queria sair pela boca.
― Você é...
― Não!
Mesmo vivenciando tudo aquilo de novo, eu ainda não saberia dizer o sentimento que havia no rosto dele, mas sabia que não era algo bom.
― Você me enganou – ele disse numa voz apática. – Assim como ela...
Ele colocou os documentos sobre uma cômoda ao lado e levou as duas mãos ao rosto.
Eu me aproximei dele, queria acalmá-lo, queria explicar alguma coisa, ou dizer qualquer coisa antes de ir embora. Mas quando toquei em seu braço ele me empurrou.
E, depois disso, tudo pareceu ocorrer em câmera lenta, dei alguns passos para trás e o atrito entre o tapete e o chão se perdeu, fazendo com que eu me desequilibrasse. E me vi sendo atraída para baixo contra a minha vontade. Os olhos dele me seguiram, sua expressão mudando para pânico.
Ou era...aquilo era... arrependimento?
Eu estendi minha mão esquerda para que ele segurasse. Uma parte de mim ainda acreditava nele. Uma parte desesperada ainda queria permanecer ali. E tive a impressão de que a mão direita dele se erguia em meu auxílio. Mas a medida que eu caía tudo ia desaparecendo. Se nossas mãos se encontrassem, se a mão dele tivesse me segurado, então tudo teria sido diferente.
Mas isso nunca aconteceu.
O impacto e a dor na base da minha cabeça destruíram qualquer esperança, eu senti o sangue querendo sair pelos olhos. Os pensamentos rapidamente ficaram escuros e silenciosos.
― Elie! Elie! – a voz dele gritando de longe.
Tão tarde.
Eu desejei, do fundo do meu coração, que apenas o nada estivesse me esperando, como Eliezer costumava desejar.
Mas não era o nada que estava me esperando, pelo menos não ainda.
O que estava me esperando eram estabelecimentos peculiares e encantadores, ruas desertas e vigiadas. Um lugar que queria me lembrar de algo importante. Um lugar para onde todos iriam algum dia. O que estava me esperando era a cidade silenciosa, e era a ela que eu retornava agora, porque minha última lembrança estava concluída.
A luz no cartão se apagou, permitindo que agora eu pudesse ver o que ele era.
Virei-me para o túmulo atrás de mim e vi que o nome gravado naquela lápide era o de Eliezer.
Túmulos idênticos, árvores desfolhadas e postes com luzes tênues me rodeavam, e tudo era silêncio enquanto eu segurava meu documento de identidade em mãos.
Havia uma foto pequena mostrando meu rosto, como eu era agora, os dados de gênero estavam finalmente corrigidos e abaixo havia um nome.
Elie.
― Esse tempo todo, mesmo enquanto estava viva, eu procurava saber quem eu era. Procurava ser quem eu sabia que era. Eu lutei com todas as forças para isso.
As palavras saiam da minha boca sem que eu percebesse.
― Tudo faz sentido agora... eu nunca fui uma criminosa. E quando finalmente consegui adaptar meu corpo e minha essência, quando finalmente achei que as coisas tomariam um rumo diferente, você apareceu...
Meu corpo tremeu sob o efeito da raiva descomunal que agora me tomava. Virei para o homem atrás de mim. Ele estava parado, em pé, seu braço único erguido para ocultar a metade do rosto que lhe sobrava.
― Foi você...
Não houve reação da parte dele, meu punho cerrou até eu sentir a dor longínqua e falsa que aquela cidade permitia.
― FOI VOCÊ QUEM ME TROUXE PARA ESTE LUGAR! FOI VOCÊ QUEM ME MATOU – gritei para ele. – COMO VOCÊ PÔDE? EU... EU CONFIEI EM VOCÊ.
Lágrimas irromperam como sempre acontecia.
― POR QUE VOCÊ ME EMPURROU? VOCÊ ME ACHOU MENOS AUTÊNTICA POR TER LUTADO PARA SER QUEM EU ERA? VOCÊ SENTIU NOJO DE MIM?
Ele permaneceu em silêncio, imóvel.
― DIGA ALGUMA COISA!
Sem conseguir me conter, deixei o documento sobre o túmulo, avancei sobre ele e o empurrei, e dessa vez foi ele quem se desequilibrou e caiu sobre as grossas raízes da árvore mais próxima.
― Eu confiei em você...
Mesmo caído ele não tirava o braço do rosto.
― Ainda sente tanto nojo que é incapaz de olhar para mim?
Mas não houve resposta e agora eu é que não conseguia mais olhar para ele. Voltei-me para o túmulo e olhei para minha identidade.
Do que adiantava tudo aquilo? Por que eu voltaria para aquele mundo? Agora que conhecia meu passado eu percebia que as pessoas eram incapazes de compreender umas às outras. A maioria nem mesmo tentava, ocupadas demais esquecendo o significado do que faziam ou deixavam de fazer.
Débora tinha razão afinal. Não havia motivos para voltar. Mesmo que você despertasse, mesmo que soubesse que um dia morreria e lutasse para tentar ser você mesma, então do que adiantaria se a maioria das pessoas que compartilhavam o mesmo destino preferiam perder sua identidade em prol de um ciclo que só levaria ao esquecimento? Um ciclo tão vicioso que absorvia até mesmo as pessoas que não queriam fazer parte dele.
Eu estava tão cansada.
― Me desculpe, Elie – disse uma voz fraca atrás de mim.
Ao me virar vi Daniel ainda estendido sobre as raízes, seu rosto eclipsado agora descoberto. Houve um pequeno som de vidro caindo no chão. Um frasco de medicamentos se soltou do braço dele e rolou pelo o chão, reluzindo sob a luz do poste, até parar sobre meus pés.
Eu o apanhei e vi que estava quase vazio. Havia um rótulo nele que dizia: "Bem-vindo seja o sono, mais bem-vindo o sono de pedra" e assinado pela imagem de um olho. Minha respiração pareceu falhar.
Ele havia carregado aquele frasco desde o hotel?
― Você tomou os comprimidos?
Ele me encarou com um rosto reduzido a sofrimento e agonia, e mais uma vez não houve resposta, uma lágrima brotou do olho verde antes de se tornar dilatado e opaco.
"Venham para mim" – sussurrou uma voz arrastada e sem sentimentos acima de nós.
As partes escuras no corpo de Daniel tornaram-se fumacentas, e ele começou a desaparecer rapidamente, como uma folha de papel que queima sobre uma chama fraca. Suas pernas foram sumindo, assim como seus braços... e ele parecia apenas um cadáver agora.
Eu fiz o possível para não sentir nada por ele. Ele havia me matado, havia tirado minha vida pelo simples fato de eu ser quem eu era. Ele merecia isso. Ele merecia!
Mas havia algo ecoando dentro de mim...
"Eu não me importo com o que você seja. Porque você também não é uma assassina ou qualquer outra coisa, pelo menos não aqui".
Por que eu não conseguia odiá-lo? Por quê?
"Eu acredito que esta cidade mostra quem nós somos de verdade, e por isso não podemos ser nada além de nós mesmos. Você em sua essência mais autêntica."
A ira dentro de mim foi diminuindo, no fundo ela também nunca havia sido a resposta. Mas se ela sumisse, então só daria lugar ao desespero novamente, e eu sentia que dessa vez eu sucumbiria.
"E a Elie que eu vejo aqui é alguém que se importa com os outros, que acha que ninguém tem o direito de tirar a vida, que salva as pessoas do desaparecimento e que quer despertar todo o mundo".
Eu... eu não queria que ele desaparecesse. Eu queria que ele ficasse comigo. Eu não queria mais me sentir sozinha. Eu não queria que mais ninguém desaparecesse. Tudo estava entrando em colapso.
― Daniel... – caminhei até ele. – O que você fez?
Ele não se mexia, a pele de seu rosto estava fria ao toque e a escuridão não parava de consumi-lo. Tentei sacudi-lo, fazê-lo voltar a si, mas nada adiantava, aquilo não era a morte, era o esquecimento.
― Não, não, não... você não pode fazer isso comigo.
Olhei em volta, a procura de ajuda, mas só havia túmulos para onde quer que olhasse, e tudo que eu podia fazer era observar enquanto as drogas de Morfélia devoravam-no lentamente.
― Por favor, fique comigo – eu disse num sussurro inaudível.
"Junte-se a ele" – sussurrou o Oblívio de volta. – "Venha para mim".
Ao meu lado ainda havia um comprimido no frasco. A resposta do Oblívio para mim. Um pouco de paz, como Belzebel dissera. Tão tentador, tão misericordiosamente tentador. Não era uma questão de justiça, não era uma questão de bem ou mal. Era apenas uma questão de... escolha.
Estava na hora de parar de lutar e me juntar a todos os outros.
Deitei-me ao lado do que ainda restava de Daniel e aproximei o comprimido aos lábios.
― Você venceu – falei para o olho no céu.
As lágrimas haviam secado. A ira havia sido apagada; a determinação, subjugada; e a esperança, esquecida. Fechei os olhos, estava na hora de retornar ao pó.
Para o nada.
― Que desperdício – disse uma voz conhecida e irônica. – Vim até aqui para ter o prazer de abrir uma das duas saídas, e descubro que você já encontrou seus próprios meios. Nunca pensei que seria frustrado por Morfélia.
Abri os olhos, tirando o comprimido dos lábios.
― Satayash?
O bartender encontrava-se de pé sobre a margem da rua de lajotas, seu sorriso permanecia intocado em seu rosto fino.
― Quem mais seria? Você surgiu no meu estabelecimento então sou eu quem, na teoria, lhe daria a oportunidade de escolha. Mas acho que você não precisa mais de mim e já escolheu qual saída quer tomar – ele disse fazendo um gesto para o comprimido na minha mão.
Levantei e fui até ele. Senti a esperança retornar como uma luz que teimava em ser apagada.
― Satayash, por favor, você precisa me ajudar. Daniel, ele... ele está desaparecendo. Por favor, tem que haver outra maneira... ele tomou os comprimidos que estavam no hotel e...
― Depois de tudo, você ainda não aprendeu? – ele me interrompeu secamente. Cada um faz suas escolhas nesta cidade. Não há nada que você possa fazer por ele.
Ele desviou o olhar para a árvore atrás de mim e continuou:
― Sabe, no momento em que vi vocês três na minha boate eu soube que ele era o mais frágil e sensitivo. Muito me admira que ele não tenha sido o primeiro de vocês a passar pela primeira saída – ele soltou um suspiro, como se quisesse acabar com aquilo logo. - Agora está na hora de deixá-lo e fazer sua própria escolha, Elie.
Engoli em seco e encarei o comprimido na palma da mão.
"...eu só... me sinto uma pessoa melhor quando estou com você".
O que ele estava me pedindo era algo além do meu alcance, nunca antes eu havia me sentido tão impotente.
― Eu não consigo... não sem ele.
Mas de repente os olhos de Satayash se arregalaram, ainda olhando para algum ponto atrás de mim.
― Inacreditável – ele disse, seus olhos brilhavam e ele começou a soltar uma risada histérica. – Eu nunca vi isso.
Olhei para trás e vi que algo descia por um dos galhos da árvore onde o restante de Daniel definhava, era comprido e fino, prateado e dourado ao mesmo tempo, como uma serpente pronta para oferecer conhecimento.
― Talvez ainda exista algo que você possa fazer por ele – disse Satayash.
A lembrança continuou descendo, tomando forma. E eu soube o que precisava fazer. Corri até onde Daniel estava e segurei o que restava dele: seu tronco e metade de seu rosto. Estava tão leve que não houve dificuldade em segurá-lo apenas com um braço. Aquilo poderia ter sido perturbador em algum momento do passado, mas agora não havia nada que me abalasse.
E assim, vi a última lembrança de Daniel tomar forma e se materializar por completo. A serpente desceu até chegar à altura de onde poderia ser tocada e, no fim, ela enroscou-se sobre si mesma e tomou a forma inconfundível de uma forca.
Era a única alternativa. Com dificuldade fiz com que o rosto pendente dele tocasse na corda, e em seguida fiz o mesmo.
A luz dourada ressurgiu novamente. Eu era ele, e ele era eu, e nós éramos um.
Eu estava parada em frente a uma porta observando um sorriso malicioso, o dono do sorriso me devolveu os documentos e disse:
― Ah, era isso que esqueci de anotar. Tenham uma boa noite.
Vi minha mão fechar a porta lentamente enquanto observava os documentos que estavam na outra com mais atenção. E ali estava o documento de identidade da garota do qual ele sentia uma estranha ligação.
Mas o nome e o gênero naquele papel não condiziam com o que ele pensara. Ela...
― Não entendo... – disse sem se virar. – Eliezer?
A compreensão veio imediatamente.
O que ele sentiu naquele momento foi muito parecido com o que eu mesma sentia quando era muito mais nova. Antes de despertar.
Ele sentiu repulsa. Mas havia um outro sentimento, algo mais antigo. De quando ele era mais novo.
― Você...
Ele se virou e vi a mim mesma com o rosto aflito. Algo bem no fundo dele tentou me entender, mas não da maneira certa.
― Você é... – Homem... era isso que ele perguntaria.
― Não! – ouvi minha voz interrompendo antes que ele dissesse.
E então surgiu uma outra voz, mas na mente dele, uma voz fria e apática que agora eu conhecia muito bem.
"Ela te enganou, exatamente como sua mãe fez quando era pequeno. Ela não sente nada por você, ela só quer te usar..."
E aquela voz obscureceu toda a existência dele: as pessoas eram ensinadas a não aceitar a existência de pessoas como ela. Até mesmo pessoas com influência apontavam-na como uma abominação.
― Você me enganou. Assim como ela...
Depositou os documentos sobre a cômoda ao lado e pôs as mãos sobre os olhos, lutando com o turbilhão de pensamentos venenosos que inundavam sua mente.
"Imagine o que os outros vão pensar se souberem... Você não pode confiar em ninguém, você não pode sentir nada por ninguém, você sabe que esse tipo de coisa não existe, você sabe..." – a voz não parava de sussurrar.
Ele achava que quando havia encontrado ela na boate a voz finalmente iria embora. E que ele nunca mais precisaria pensar no que havia na caixa de ferramentas na garagem de sua casa, mas agora a voz não parava... não parava...
"Você sabe que ela te enganou e sua mãe também e seu pai te odeia por isso por você ser fraco por você ser culpado culpado culpado não há ninguéM que pOssa te ajudaR porque ninguém sente nada poR você e você tAmbém não pode sentir nada venha para mim VENHA PARA MIM VENHA PARA MIM"
Um toque em seu braço e seu reflexo o repudiou prontamente, empurrando a garota ruiva para trás. O rosto dela passou de aflição para desespero quando ela começou a cair. Ela estendeu a mão esquerda, em busca de seu auxílio, e o que restava dele que ainda não havia sido tomado pela voz tomou o controle para erguer sua mão direita e segurá-la. Mas tudo aconteceu muito rápido e já não havia o que segurar.
O que houve em seguida destruiu a mente dele em mil pedaços que jamais voltariam a se unir. Não naquela vida.
O som dela caindo e colidindo no móvel com aresta pontiaguda. O som de algo se quebrando, se partindo. O som do corpo e da cabeça dela caindo pesadamente no chão. E em seguida apenas o silêncio.
O corpo dele ficou paralisado enquanto observava a garota caída no chão. Os olhos dela... os olhos dela estavam abertos, mas pareciam não ver nada... exatamente como uma outra mulher que um dia ele havia amado.
Algo dentro dele reuniu forças para dizer:
― Elie?
Silêncio. Até a voz na mente dele havia ido embora, deixando-o sozinho.
Ele deu alguns passos na direção dela, seus pulmões tinham dificuldade em absorver oxigênio a cada passo.
― Elie?
Sob a cabeça dela uma poça rubra se formava, empapando os cabelos também rubros. A tiara branca havia caído da cômoda e agora absorvia o sangue no chão.
"O que eu fiz...?"
O corpo dele tremeu quase a ponto de ter uma convulsão.
― Elie?! – tocou o ombro dela, seu corpo inerte não respondia. – Elie?! Elie?!!!
O pulso dela havia sumido. O rosto dela estava imóvel, o rosto que antes ele havia achado familiar porque havia algo nele que pensava já ter visto em outro lugar, mas agora ele percebia que não era o rosto, o que ele havia achado familiar nela já não estava mais ali.
― Elie! – ele continuou chamando, lágrimas caíram e se misturaram ao sangue. – Por favor, fique comigo, por favor, me desculpe, me desculpe!
Ele puxou o celular e tentou discar o número de emergência para pedir ajuda médica, seus dedos tremiam tanto que levou alguns minutos para conseguir digitar. Ele chamou por ajuda médica mesmo sabendo que já era muito tarde.
Ele não sabia o que devia fazer com ela, mas sabia o que precisava fazer consigo mesmo.
A caixa de ferramentas na garagem estava esperando por ele.
"... culpado culpado culpado..." – sussurrou a voz.
Um calafrio percorreu sua espinha e seus pensamentos evaporaram.
Ele se levantou apaticamente, olhando uma última vez para a garota que talvez pudesse tê-lo amado. Ele saiu do quarto, desceu as escadas, passou pelo homem na recepção e entrou em seu carro. Dirigiu para casa de forma automática. Não levou muito tempo para chegar, ele não estacionou o carro na garagem porque precisaria de espaço. Ele entrou dentro da casa e passou por uma sala onde vi um homem sentado assistindo TV, havia dormido na poltrona enquanto a TV soltava um chiado constante, os olhos dele passaram vagamente pelo homem e ecos do passado vieram a sua mente.
"Por quê você deu esses comprimidos para ela?! O que você tem na cabeça? Você matou a sua mãe!!!" – a voz chacoalhava um menino pequeno e metia-lhe um tapa na cara.
Ele pegou uma cadeira na cozinha e levou-a até a garagem. E então, finalmente, abriu a caixa de ferramentas, ela costumava ser usada somente por ele, então a corda grossa que havia guardado ali não fora vista por mais ninguém.
Eu sabia o que estava presenciando, e eu não queria ver, eu queria gritar, eu queria interromper a lembrança naquele momento. Do outro lado, na cidade silenciosa, eu sentia lágrimas quentes deslizarem pelo rosto.
Ele subiu na cadeira e arremessou uma ponta da corda sobre as vigas de madeira que sustentavam a garagem, depois fez um nó que havia aprendido justamente para aquele momento.
"Pare com isso, por favor! PARE COM ISSO!" – eu queria impedir as mãos dele de continuar.
A corda envolveu seu pescoço como uma serpente. Sua mente estava vazia.
Então ele fez, a cadeira caiu no chão, suas pernas ficaram suspensas no ar, e eu senti junto com ele, a dor, a agonia. Suas mãos lutaram contra a corda, lutaram contra o esquecimento, mas sua mente não estava afim de impedi-lo. A temperatura em seu rosto subiu. A escuridão tomou conta de sua visão, pelos cantos, se adensando.
E antes que tudo ficasse ainda mais silencioso, ele se lembrou de onde havia visto a garota antes.
O brilho na corda se apagou e eu cai sobre as raízes da árvore, o som que saiu da minha garganta foi como o de uma pessoa que havia passado muito tempo em baixo d'água e precisava retomar o fôlego desesperadamente. Eu passei a mão pelo pescoço como se ainda estivesse com a corda ali. Mas a sensação não durou muito e logo eu me recuperei o suficiente para me arrastar até onde ele estava.
― Daniel... Daniel?!
Ele ainda estava reduzido a apenas um farrapo. E então, vindo de muito longe e ficando cada vez mais alto, eu ouvi o som de alguém soluçando enquanto chorava.
― Me desculpe, Elie... por favor, me desculpe – ouvi sua voz dizendo. – Se eu soubesse... se eu soubesse o que aconteceria... eu nunca...
A maré de lágrimas escorria pelo fiapo de rosto que restava nele, e eu levei meu rosto muito próximo a esse fiapo e o abracei como podia.
― Está tudo bem – eu disse. – Está tudo bem, nós estamos aqui agora... nós sabemos quem nós somos, e nós estamos juntos, isso é tudo que importa.
― Eu não queria... eu juro... – os soluços não paravam. – Eu... eu sinto muito.
― Eu sei – sussurrei próximo ao ouvido dele.
― Três vezes... – ele soluçou.
― O quê?
― Três vezes você me salvou – continuou. – A primeira quando cheguei neste lugar, a segunda quando os servos queriam me levar, e agora... você me salvou de mim mesmo. – Seu olho único tentou focar meu rosto. – Elie, você é um anjo?
Sorri ante a pergunta.
― Não – respondi com toda a certeza. – Eu sou um ser humano. E você também é. Você também me salvou, no momento em que desceu aquelas escadas, você me salvou.
E eu consegui sentir mãos invisíveis ficarem mais vivas enquanto respondiam ao meu abraço, e quando ele parou de chorar pude ouvir o som de passos que se aproximavam de nós. Satayash sentou-se sobre a caixa de concreto que formava o túmulo de Eliezer.
― Empatia é um sentimento muito complexo para vocês humanos – ele disse enquanto analisava as próprias unhas. – É como uma lâmina de dois gumes, porque ao se colocar no lugar de outra pessoa, vocês podem saber como ela se sente, sua felicidade, seus medos, e acima de tudo, vocês podem sentir dor. E é da natureza humana fugir da dor a qualquer custo.
Ele cruzou os braços e olhou para nós com um sorriso reconfortante.
― Mas é do sofrimento que emergem as almas mais fortes. Foi isso que um de vocês me disse uma vez.
― Satayash? – perguntou a voz de Daniel. – O que está fazendo aqui? Deixou a boate sem ninguém?
O ser de quatro braços riu com sarcasmo.
― Como você sabe que eu também não estou lá?
Houve um momento de silêncio após isso e eu soube que precisávamos fazer a escolha.
― Vamos lá, vocês já enrolaram demais – continuou o bartender. – Os dois já recuperaram suas últimas lembranças e precisam escolher. Se escolherem a primeira saída, as partículas que formam a consciência de vocês serão desintegradas e dissolvidas ao nada. Se escolherem a segunda, suas consciências serão redirecionadas para o mundo de onde vieram, em uma nova vida. Façam a escolha agora.
― Foi isso o que aconteceu com a Débora? – perguntou Daniel ao meu lado. – A consciência dela foi dissolvida?
O sorriso no rosto de Satayash murchou.
― Lamento dizer isso, mas sim – ele pensou um pouco antes de continuar. – A grande maioria de vocês sempre acaba escolhendo o Oblívio, de uma maneira ou de outra. São muito poucas as almas que reencarnam, são poucas as almas que aprendem as lições que esta cidade oferece e, assim, a humanidade evolui a passos lentos, engatinhando. Eu não sei se isso pode amenizar um pouco as coisas, mas se não fosse por vocês talvez aquela garota nunca tivesse despertado. Além disso, a Débora que vocês conheceram nesta cidade era apenas uma entre as muitas que existem no mundo de onde vieram.
Alguma coisa naquelas palavras fez com que a compreensão surgisse em meus pensamentos, como uma resposta que há muito estava guardada, esperando por aquele momento. Satayash pareceu perceber isso.
― Agora eu entendo... – olhei para o rosto fragmentado de Daniel. – Não é aqui que as pessoas precisam despertar.
E ele pareceu entender também.
― É antes de vir para cá, antes de vir para esta cidade... – ele concluiu.
Nós dois viramos para Satayash e ele consentiu com a cabeça, o sorriso retornando ao rosto.
― E então? Já escolheram?
― Daniel, nós precisamos voltar... precisamos tentar fazer outras pessoas despertarem, antes de virem para cá. Elas precisam saber que... um dia... elas morrerão.
― Mas se nós reencarnarmos não vamos lembrar disso, como vamos poder ajudar se nos esquecermos do que precisamos fazer?
― Você lembrou... é por isso que precisamos voltar juntos, você lembrou quando estava lá, e nós lembramos que já nos conhecíamos quando nos encontramos, e é o que precisamos fazer, precisamos buscar um ao outro quando voltarmos.
Ele olhou para baixo.
― E se eu errar com você de novo?
Toquei o rosto dele.
― Eu sei que não vai. Nós aprendemos o que precisávamos aprender aqui.
Senti o rosto dele consentir.
― Obrigado... obrigado por confiar em mim, mais uma vez. Débora pediu para que eu cuidasse de você e é isso que vou fazer.
― Ela nunca desaparecerá por completo enquanto lembrarmos dela.
Nos voltamos para o bartender e, finalmente, declaramos nossa escolha:
― Satayash, abra a segunda a saída – eu disse.
― Nós escolhemos a reencarnação – disse Daniel.
O anfitrião pulou do túmulo e emendou:
― Pensei que nunca escolheriam – ele disse enquanto apontava a palma das suas quatro mãos em nossa direção, todas elas emanaram um brilho dourado. – Agora que escolheram, não faz mal se eu contar algo para vocês, já que logo não se lembrarão de novo.
E enquanto ele dizia isso, eu vi o brilho dourado tomar o lugar de onde antes havia apenas escuridão em meu ombro esquerdo, regenerando-o rapidamente. Olhei para Daniel e vi que o mesmo acontecia com ele. Seus braços, suas pernas e seu rosto estavam repletos de luz, e voltei a vê-lo como ele era em sua última vida. Os cabelos claros, os olhos verdes, e seu sorriso estavam ressurgindo do esquecimento.
― Vocês já devem ter percebido, mas não é a primeira vez que vocês vêm para esta cidade – revelou Satayash. – Vocês já vieram aqui muitas vezes, são conhecidos pelos anfitriões de vários estabelecimentos. Claro que não são os únicos, mas há um detalhe em particular que é muito estranho e que os distinguem dos outros. Vocês sempre vêm e retornam juntos. Vocês sempre se encontram, lá e aqui, não importa as circunstâncias. E é por isso que vocês conseguem reconhecer as lembranças dos outros cidadãos. É até perturbador de certa forma, faz parecer como se houvesse um propósito. Como se alguma coisa estivesse tentando equilibrar as duas forças por meio de vocês.
Nossos corpos haviam sido regenerados por completo agora.
― Então isso significa que estamos predestinados a nos encontrar quando voltarmos? – perguntei.
― Como eu disse, vocês são conhecidos por muitos anfitriões, até eu já tinha ouvido falar de vocês, mas nunca haviam aparecido no meu estabelecimento – continuou Satayash dispensando totalmente minha pergunta. – Eu não a reconheci de imediato quando apareceu para mim, Elie. Eu só a reconheci quando você fez seu primeiro ato de empatia, quando você quis saber como eu me chamava, mesmo sem saber o que eu era, só então eu soube que vocês haviam retornado.
A luz na palma de suas mãos estava se intensificando, assim como em nossos corpos. Daniel e eu nos levantamos e nossas mãos finalmente se encontraram e se tocaram. O olho gigante acima de nós semicerrou-se, momentaneamente cegado pela luz.
― Satayash, há alguma maneira de permanecermos nesta cidade para sempre? – perguntou Daniel.
O bartender soltou mais uma de suas gargalhadas.
― A cota de perguntas de vocês acabou, o que acham de deixar essa para a próxima vez que retornarem para esta cidade?
― Pode ter certeza de que vamos lembrar – eu disse.
― Até logo, Satayash – despediu-se Daniel.
― Vocês serão bem-vindos ao meu estabelecimento quando retornarem – disse o bartender. – Mas terão que encontrar o caminho de volta.
E sabendo que nosso tempo naquela cidade estava chegando ao fim, ficamos de frente um para o outro. Talvez algum dia o Oblívio nos levasse. Talvez algum dia nós também fossemos reduzidos a nada. Talvez algum dia voltássemos a nos encontrar, talvez algum dia ficássemos juntos naquele lugar para sempre, mas aquele momento ainda não havia chegado. Havia muito mais para aprender, havia mais pessoas para conhecer, havia mais para sentir e, acima de tudo, havia mais para ser. E nós não pararíamos enquanto não tivéssemos experimentado tudo.
Nossas mãos permaneciam juntas dessa vez, nossos rostos tão próximos que eu podia sentir sua respiração.
― Está pronto? – perguntei.
Ele respirou fundo antes de responder.
― Estou com você.
E nossos lábios se encontraram uma vez mais antes de desaparecermos em meio à luz.
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