▫️▪️ UM▪️▫️
“Ela estava caindo e caindo, em um espaço vazio e, ao mesmo tempo, infinito de possibilidades.”
Os raios atingiram o ponto alto da serra. Mais uma vez, tive um pesadelo. As crianças sumiam de suas casas, atravessavam portais invisíveis que ligavam o nosso mundo a qualquer outro perdido no espaço. Suspiro. Não éramos únicos, não éramos todos, e não estávamos sozinhos. E isso era apenas mais um de tantos pesadelos iguais.
— Sosô? — ouço a voz de Analu me chamar.
Abro os olhos, ainda sonolenta, e percebo o quanto transpirei durante a noite. Todo o meu cabelo se encontra pegajoso e o travesseiro sem qualquer espaço seco. As cobertas estão jogadas sobre o chão e o forro da cama de solteiro precisa, com urgência, de um pouco de sol. Analu me observa com inquietude e percebo que a razão é o meu silêncio.
— Oi, florzinha. Acordei você? — questiono e a vejo menear a cabeça em negativa. Algumas vezes grito durante os pesadelos e ela acorda assustada. Tento controlar os surtos, no entanto, sei que não é algo consciente para se ter controle.
— Seu despertador tocou já tem um tempinho, mas não ouvi barulho seu — responde, balançando o corpo enquanto agarra bitty, seu urso de pelúcia favorito.
— Estamos atrasadas? — procuro saber, já que, provavelmente, ela tirou o relógio que estava sobre a cômoda e o levou para a cozinha. Ela sempre faz isso quando o despertador não cumpre a sua função, tem medo que eu perca o horário e ela mesma monitora a possibilidade de mais cinco minutos de soneca.
— Ainda não, mas falta pouco — avisa e me levando rapidamente encaminhando meus pés exaustos para o banheiro.
Ana continua me observando com os seus julgadores olhos verdes, às vezes gostaria de saber o que se passa na sua pequena e criativa cabecinha, porém não gosto muito da ideia de responder boa parte de seus questionamentos e dúvidas.
— Sosô, me leva ao parque amanhã? — Me pede enquanto escovo os dentes e prendo com um prendedor prata os meus fios desgrenhados.
Amanhã é dia sexto, eu também trabalho, mas posso conseguir um tempo. Cuspo os resquícios de creme dental e enxáguo, partindo para o chuveiro logo em seguida.
— Claro! Entre o pôr do sol e o emergir da noite — respondo, já sentindo a água gélida despencar sobre a minha coluna e lavar os meus cabelos. Meus pensamentos retornam ao sonho, é assim todas às vezes em que eles se repetem. É assim toda vez que a vejo partir.
— Emergir… gostei dessa palavra, tia — diz e sorrio com o comentário. Cada vez mais esperta.
— Então põe no seu caderninho, amor — sugiro e ouço os seus passos afoitos saindo do meu quarto.
É difícil educar uma criança nos dias de hoje, principalmente quando não se tem recursos para isso e, por conta disso, eu procuro ensiná-la no dia a dia o máximo que posso. Lembro-me de quando ela chegou, a três anos atrás, havia acabado de conseguir um novo emprego. Foram dois anos tentando, dois anos no qual passei sozinha e fazendo serviços que pagavam tão mal quanto o que recebo agora.
“Tem filhos, senhorita Borges?” me questionou Cristóvam, o gerente.
Seus olhos não eram gentis e sua face não partilhava qualquer sentimento de aprovação, mas, ainda assim, não me deixei fraquejar em qualquer instante.
“Não, senhor. Sou solteira e sem filhos.” respondi, porque realmente era, e com isso a minha aprovação foi instantânea.
Eu não havia mentido para ele, porém, dois dias após a minha contratação, precisei do auxílio-creche. Os olhares para mim na empresa depois disso só pioraram, outras mães concorriam à vaga, mas eu estava à frente delas por não ter alguém com quem me preocupar. Todos os dias, ao chegar na empresa, sinto-me presa em uma saia justa.
“Fique com ela essa tarde, por favor. Só preciso ir à cidade vizinha, mas não tenho com quem deixá-la.” solicitou minha tia, que não via há alguns anos.
A surpresa surgiu com a sua chegada e se intensificou com o pedido. Entretanto, era por apenas uma tarde límpida de domingo, nada mais que isso e por conta disso não vi problemas. Contudo, ela nunca mais voltou para buscá-la.
Finalizo o banho e corro para o quarto, pois o frio parece queimar meus ossos e pele. Visto a farda, que consiste em uma camisa de malha ruim no tom verde-musgo e uma calça jeans surrada, e sigo para a cozinha sem nem ao menos pentear os cabelos molhados.
A residência em que vivemos é tudo o que precisamos: simples e aconchegante. Possui dois quartos amplos, uma sala, uma cozinha e dois banheiros. Móveis? Apenas um sofá e uma mesa com duas cadeiras. Por sorte consegui comprar uma tv e um micro-ondas de segunda mão.
Não reclamo disso, apesar de precisar vender tudo o que tinha herdado de meus pais enquanto não tinha emprego. Todas as louças caras, enfeites de parede e os tapetes adoráveis da minha mãe. Seus brincos foram para os bancos e seus colares para os credores de rua. Só me restaram as suas roupas, que uso quando preciso ir a algum evento da empresa.
— Analu, já disse para não mexer no forno quando estou dormindo! — ralho ao vê-la comer ovos fritos que não foram feitos por mim.
Penteio meus fios com os dedos, visto não ter tempo para procurar algum pente e aproveito para olhar a bagunça feita por Ana.
— Eu usei luvas, titia, e fiz como vejo você fazer pra mim — garante em um dar de ombros engraçado. Respiro profundamente para não rir.
Não era assim que eu esperava educá-la, porém não tive escolhas para fazer de outro modo. Ela só tinha dois anos e meio quando foi deixada aqui. Estava dormindo tão serenamente que não percebeu quando minha tia foi embora e depois, quando acordou, também não questionou sobre ela e até então a existência de sua mãe não foi mencionada por nenhuma de nós. Esse é o meu medo, o dia em que ela questionará onde está a sua mãe, pois, infelizmente, não tenho qualquer informação para lhe dizer ou coragem para contar a verdade.
— Já está pronta? — mudo de assunto, ciente de que o primeiro não tenho como mudar. Vou em sua direção e faço uma trança em seus cabelos, de um loiro escuro e encaracolado, pois sei que ela gosta do penteado.
— Uhum! — murmura enquanto engole mais um pedaço de pão e me oferece o prendedor de elástico que está em seu pulso.
Não consigo comer cedo da manhã, meu estômago embrulha só de pensar em colocar algo dentro, no entanto, todas as manhãs, Analu costuma devorar qualquer coisa que encontra em seu caminho.
Após terminar, pego nossas coisas e nos encaminho para o único bem que não vendi da minha herança. O veículo não é novo, mas está em boas condições e é isso o que importa. O bairro que moro é o mesmo de sempre: Aurora, rua 01, nº228 e por isso prosseguimos sem preocupações com a localidade.
Após colocar o cinto na florzinha, observo o dia nublado, mas sem apresentar indícios de chuva e busco ver se trouxe agasalhos por conta do frio que pode fazer durante o dia.
Sigo o trajeto diário e ligo o rádio para quebrar o silêncio que se instalou dentro do carro. É engraçado e peculiar, a Analu tem muitas semelhanças e particularidades que imaginei que somente eu tivesse, e uma delas é não saber conversar.
As ruas que passamos, próximas de nossa casa, são belas, com jardins regados diariamente e pessoas tão alegres que considero estranho. Já as ruas seguintes, nos bairros inferiores, tudo está imerso em um caos que não há possibilidade de melhora, não quando o governo não faz nada para mudar a realidade das pessoas que aqui vivem.
— Sosô, olha! — indica a menina apontando para a rua e observo cartazes de crianças desaparecidas sendo coladas em postes e paredes.
Meu coração congela por um instante, pois me recordo do pesadelo da noite passada, no entanto retiro a ideia da cabeça. Não é possível. Todos os dias somem crianças em todos os lugares do mundo e aqui não seria diferente.
— Tenho certeza de que ela se perdeu dos pais, como você naquela vez do supermercado. E eu te encontrei! — asseguro para que ela não ponha ideias preocupantes em sua mente.
A menina parece aceitar o que disse, agarra com força o pobre do bitty e volta a olhar para a movimentação da rua. Volto a me concentrar em sair do lugar ilesa, visto que essa parte da cidade não é confiável para uma mulher e uma criança. Tudo é cinza e sem vida, desde o céu ao chão. Não há cores visíveis a quilômetros e as plantas deixaram de viver há tempos. Nada floresce, tudo morre ou apodrece. As pessoas são sombrias e depressivas, vivem ou sobrevivem com as migalhas que o governo oferece. A maioria dos empregos foram roubados pelas máquinas e apenas serviços de atendimento, manutenção e criação de novas bases de tecnologias ainda são ocupados por humanos. Poucos porcento dessas vagas são ocupadas por mulheres.
“Mais uma criança desapareceu na manhã de hoje.” interrompe os meus pensamentos a voz do locutor do rádio.
“Os pais não sabem dizer como Pedro, de seis anos, saiu de casa sem ter aberto alguma das portas da residência.” continua com a triste notícia.
Analu volta o seu olhar para mim, e vejo o medo pairar sobre ela, pois, apesar da idade, a menina compreende o significado do que o locutor está dizendo. Não é comum tantos desaparecimentos em um único dia, não é comum desde 2003. Engulo em seco, a ideia da sedução de sair de casa parecia certa naquele dia e nem imaginei que a desordem partiria dali.
— Sosô, não quero ficar na creche.— diz ela fitando os dedos cruzados sobre o colo e pondo bitty de escanteio. Parece que até ele está de castigo. Volto meus olhos de avelã para ela e desvio por não poder realizar seus desejos.
“Para tudo, minha senhora e meu senhor ouvinte! Somente agora chegou mais dez novas ocorrências de desaparecimentos. O departamento de segurança adverte que todos os pais fiquem em alerta, não sabemos quem está levando nossas crianças e qual a razão para isso. Cada segundo de dispersão pode ser irreversível! Aqui é Dejovan Penedo e todas as notícias, em tempo real, você ouve por aqui.”
A voz do locutor em sua última frase soou de maneira medonha, rouca e obscura, como se a situação fosse vista apenas como uma forma de conseguir ouvintes. Os olhos aflitos de Analu não param de me preocupar e, para não piorar a situação, desligo a programação e sorrio para ela. O silêncio é melhor do que ouvir desgraças.
A mão da menina segura o meu braço com força e entendo que ela não quer ir para o trabalho comigo, como pensava, na verdade, ela deseja voltar para casa. O lugar no qual ela se sente segura. Vejo o sinal abrir e decido que o momento requer renúncias, darei um jeito de dizer ao meu chefe que não estou bem e vou cruzar os dedos para não ser demitida amanhã. Sigo em direção ao retorno e dou a volta no sentido de casa, mas, antes de voltarmos para o silêncio eterno, garanto o que ela deseja ouvir.
— Não se preocupe, Lulu. Hoje não vamos ficar longe uma da outra.
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