▫️▪️SETE▪️▫️
Ela era similar a um corpo estranho habitando um novo hospedeiro, uma hora teriam que expulsá-la…
O veículo vermelho, com cobertura retrátil, percorre um caminho deserto. E, apesar do silêncio que nos acomoda, sigo sentindo certo alívio ao mesmo tempo que detenho uma curiosidade imensa. Por que, aqui, ele não me reconhece? Talvez, os relâmpagos de outrora tenham roubado a sua memória.
O sacolejar dos pedregulhos, que estão por todo o percurso, me fazem sentir certo reboliço. Possivelmente, seja por conta que ainda não ingeri nada desde a madrugada da noite passada. Nem sei ao menos como ainda consigo raciocinar direito.
Por todo o cansaço que sinto, aparenta que já se passaram dias quando, na verdade, foram apenas algumas horas desde que cheguei aqui. O dia, nesse lado da cidade, se encontra morno e com presságios de uma tempestade que se aproxima do lado leste. Não sei a quanto tempo percorremos essa estrada tortuosa e repleta de destroços, no entanto agradeço por não ser seguida por pesadelos e Sonhadoras malucas, que tentam me levar para casa a todo custo.
Alguns fios dos meus cabelos se soltam e para não perder as penas que carrego, por alguma razão impensada, as ponho dentro da caixa amadeirada que levo em meus braços, como se a qualquer instante alguém viesse roubá-la de mim. Somente agora, percebo o tom amarelado que cobre as cores vívidas e vibrantes que vislumbrei antes. O som que ouço não passa das engrenagens do veículo e do percorrer dos pneus sobre à terra íngreme, até mesmo a ventania, em todo o seu agito, deixou o costume ressoar para se tornar silencioso.
— Deveria, pegá-la — diz o homem ao meu lado, no entanto, perdida em meus pensamentos, me sinto confusa por um tempo.
— O quê? — indago e o vejo dar um singelo sorriso, ainda sem olhar em minha direção.
Tão estranho não ser reconhecida por ele…
O veículo passa por uma lombada e sinto meu corpo erguer e bater contra o assento com força. Uma sensação incômoda se instala em minha coluna e penso que, apesar da nossa pressa, ele deveria ser mais cuidadoso com a condução. Já que ainda pretendo sair daqui com vida.
— A chave que guarda com tanto cuidado. Não se preocupe, não irei tomá-la de você — assegura e sei que não o faria, ou não precisaria vim tão longe para fazê-lo. Bastava roubar-me enquanto estivesse distraída, com as memórias vívidas do sorriso e da curiosidade da minha florzinha repercutindo em minha consciência.
Sinto tanto a sua falta que poderia simplesmente desaparecer a cada instante que não estou ao seu lado. Como se, as possibilidades das lembranças que poderia ter com ela, roubassem um pedaço de mim já que, agora, não a tenho. O que será que faz nesse momento? Será que ela está bem? São respostas que não detenho. Entretanto, só me resta pensar que a minha menina está melhor que eu e que, assim como tenho alguém me ajudando, ela tem alguém que a ajude passar por isso também.
— A propósito, me chamo Leonã — Apresenta-se, porém já sabia o seu nome todo o tempo. Ele fazia parte dos meus sonhos…
— Me chamo Sofia — respondo, esperando que ele recorde de qualquer coisa. Que uma imagem minha surja em suas memórias, porém não sei até que ponto o meu mundo e esse tem qualquer relação ou similaridade.
— Guarde-a com você, será mais seguro. O que estiver em sua posse ninguém conseguirá roubar — garante, no entanto me custa a crer que algo fique seguro estando em minha posse, principalmente quando me foi tomado o mais precioso.
— Já levaram o que era mais importante. Roubaram de mim a Analu... — assumo, sentindo em mim a sensação de perda tão constante.
— Já considerou que ela pode estar no lugar certo? — indaga, levando-me a sentir certa cólera.
Seus olhos dourados aguardam a minha resposta, porém sempre soube que não deveria responder no calor do momento. O impulso sempre nos leva a tomar decisões que se tornam desagradáveis com o tempo.
— O lugar certo é ao meu lado, no mundo real e não aqui, nesse lugar confuso e ilusório! — afirmo, desviando o meu olhar para o nada e vendo apenas o emergir de uma poeira escurecida.
— O mundo mágico é real. A realidade é que é falsa. Principalmente a sua realidade — pondera e não resisto em rir com escárnio.
Uma realidade como essa jamais seria verdadeira. “Animais flutuantes, portais mágicos e pesadelos com formas. Realmente, a minha realidade é que é anormal!” penso, ironicamente, comigo mesma.
— Acredito que nosso ponto de vista, quando comparando os nossos mundos, sempre será divergente. Nossas ideias sempre irão partir para o lado que conhecemos e acreditamos ser possível — replico, para acabar com nossa pequena discussão e não dar motivos para ele me largar em meio ao caminho que desconheço.
Por um breve momento, recordo de que não sei ou questionei, em qualquer instante, o lugar para qual estamos indo. Fiquei tanto tempo imersa nas possibilidades que me perdi entre todos os caminhos que deveria seguir para encontrar a Analu. A cidade das Chamas é a próxima etapa a ser vencida, no entanto o que será que há depois?
— Mensageiro… Por que está aqui, me ajudando? — tento saber, pois as suas imagens e o som da sua voz, quando ainda era um alguém desconhecido, volvem à minha memória.
— Elérgia me enviou para protegê-la — responde sem mais elucidações.
A minha curiosidade ganha novas proporções. Imaginei todo o tempo que Elérgia se tratava apenas do lugar e não que se referia a alguém palpável, tocável e sentível.
— Quem é Elérgia? — volto a questionar, sentindo-me em busca de uma nova solução, ansiando por entender essa descoberta e encaixar todas as peças do meu quebra-cabeça mental.
Percebo que estou em um jogo de memória, no qual esqueço sempre dos detalhes que preciso memorar. O que há de errado comigo? Por qual razão o meu passado é apenas um borrão e um mero peso em minhas poucas recordações?
Elérgia pode ser ou ter a resposta.
— Estou nos encaminhando em direção à sua residência, para que assim a conheça — explica, embora nenhum de nós tenha percebido que não estávamos sozinhos nessa longa viagem.
Os pesadelos nos acompanha em seu flutuar sombrio. Atrás deles sorri uma Sonhadora que deixa aparente o seu sentimento de triunfo. “Droga!” sussurro para mim mesma. Leonã avista a mulher que se aproxima, tão similar a um leopardo em busca de sua caça e sei que nós seremos uma presa fácil. Uma névoa enegrecida, sob o seu corpo, é o combustível que a traz em nossa direção, tão rápido que o emaranhado de pó e nuvens mascarou a sua vinda. Deveria ter desconfiado de que ela não desistiria facilmente.
— Myra… — murmura o loiro, voltando o seu olhar para o retrovisor.
Assisto, com certa adrenalina, o seu pé direito pisar fundo no acelerador e o teto rígido, e retrátil, voltar para nos cobrir. Meu corpo, com a mudança brusca, reclina em direção ao encosto do banco e tento me segurar na alça presa ao teto.
— Vocês são sempre assim, atenciosos com seus convidados? — questiono, em uma vã tentativa de diminuir o nervosismo que paira entre nós.
— Na verdade, preciso lembrar que não foi convidada — elucida e faço que sim meneando a cabeça em positiva. De fato sempre deixaram transparente que esse não era o meu lugar e que jamais seria bem-vinda.
— É… Sempre me dizem isso!
Sinto algo colidir contra o veículo, de modo que o faça perder o controle e nos impulsionar para frente. Volto meu olhar para trás e assisto dezenas de chamas negras sendo lançadas em nossa direção. Quando eu iria imaginar que isso poderia acontecer? Em toda a minha vida, jamais. Uma série de chamas atinge o fundo do carro e temo que a qualquer instante não tenhamos como resistir a força que Myra detêm.
— O que faremos? — indago, sem ter a mínima ideia do que fazer para nos ajudar a sair dessa.
Leonã prossegue com a crescente velocidade do veículo, embora não seja o suficiente para inibir a mulher que tenta me usurpar de suas terras. A imagem da Analu segue presente em minha memória e o pequeno bitty, protegido dentro da mochila, precisa encontrar a sua proprietária para que eu também a encontre.
— Sabe dirigir? — questiona e faço que sim rapidamente. — Não consigo nos proteger com as mãos no volante — explica e procuro uma maneira de trocar de lugar com ele, sem que deixemos a Sonhadora se aproximar ainda mais.
Destravo o cinto de segurança e pego a chave que está dentro da caixa amadeirada. De imediato, assim que a seguro, sinto cócegas e a vejo adentrar na minha pele estagnando em meu pulso, com aspecto de pintura e uma leve elevação. Meus olhos assustados e surpresos vão de encontro aos do loiro ao meu lado, no entanto ele não parece surpreendido com o ocorrido. Para ele, tudo isso deve ser tão normal quanto o amanhecer do dia.
Jogo a caixa, que possui apenas as penas dentro, entre os bancos de atrás e início a tentativa de trocar de lugar com Leonã. Uma nova esfera incendeia atrás de nós e seguro-me, de joelhos, entre um banco e outro. Minhas mãos tremem, o som da explosão contra o porta-malas ressoa, com frequência e em zumbidos desagradáveis, em meus ouvidos.
Não ouço nada, nem mesmo as batidas frenéticas e descompassas do meu coração. Tomo a direção do loiro e encaixo o meu pé no acelerador no lugar do seu. Fico por baixo dele e vejo as suas mãos segurando os meus ombros de modo que a minha visão seja borrada pela imagem da sua face. Um minuto, dois, três. Poderia me perder facilmente no reconhecimento dos seus traços.
— Destrave as portas! — grita, entretanto, ouço tão longínquo que me sinto a quilômetros de distância.
Ainda com receio, faço o que me pede. O terreno prossegue em seu percurso repleto de lombadas e isso não nos ajuda em nada. Cada solavanco me faz perder o controle entre a velocidade e a necessidade. Os pesadelos se aproximam, a Sonhadora está cada vez mais próxima e posso sentir o frio da névoa enegrecida que a acompanha.
É como se o medo habitasse os meus ossos e levasse consigo todo o resquício de coragem que me resta…
Tudo ocorre com urgência. O corpo de Leonã é arremessado por ele mesmo, seguindo de encontro à terra seca e, com a sensação de medo presente em meu âmago, dou uma freada brusca e assisto o veículo derrapar e dar giros interruptos, parando em uma posição invertida da qual estava dirigindo. Meu mundo se torna confuso e incoerente, pois a tontura me cega a ponto de não enxergar nada por alguns segundos.
Vou abrindo os olhos devagar e, para o meu contentamento, observo o loiro erguer-se, quando imaginei que havia se machucado demasiadamente com a queda. Estranhamente, o homem segue, como se nada houvesse ocorrido, em direção a Sonhadora que pausa o seu avançar. Decidido, Leonã esmurra o solo abruptamente e de maneira que me leva a confusão. Sinto o tremor abaixo do veículo e acompanho o chão se abrir, formando uma cratera que faz os demais recuarem para a parte que prossegue firme. Os pesadelos não passam, permanecem do outro lado e um escudo, assim como o que atravessei para chegar na cidade dos Sonhos Roubados, surge para nos separar deles.
A fúria reverbera pela face dos seres que desejam me levar para casa e assistimos o erguer da bifurcação. Respiro aliviada, no entanto ainda trêmula, e acompanho o caminhar do loiro em minha direção. Volto a sentar no banco do passageiro, pois nem todo o calmante existente poderia me deixar tranquila para prosseguir com o controle. Encosto a cabeça no encosto e fecho os olhos tentando repassar tudo que presenciei nos últimos minutos.
Tão inacreditável que poderia considerar que estou ficando louca.
— Bem que avisaram que a minha vinda ia bagunçar esse mundo. Agora, entendo porque não sou bem-vinda! — asseguro, ao reconhecer que Leonã já está dentro do veículo, e abro os olhos em tempo de vê-lo rir.
A viagem segue tranquila e sem demais imprevistos com a possuidora do lugar, embora eu não saiba se isso é algum sinal dela de desistência. Com o passar das horas, um lugar novo se revela e avisto casas e pessoas, normais, assim como eu. O tom sépia prossegue, recordo de quando era criança e estive em um lugar similar a esse. Vejo as portas fechadas, assim como as janelas, e um campo de futebol no qual hoje no meu mundo foi construído uma praça.
— Eu conheço esse lugar… — digo emotiva, reconhecendo a minha casa ainda antiga e fechada. As cores retornam, assim como aquilo que parecia tão distante e é visível aos meus olhos.
Estou em casa mais uma vez.
Um arrepio atravessa a minha coluna, principalmente ao ler Elérgia escrito no lugar de bairro Aurora. Será que aqui haveria alguma imagem dos meus pais? Há muito tempo não recordo da face de ambos ou a razão para terem partido tão cedo. Uma lágrima morna escapa e escorre por minha bochecha, tenho em mim que sempre estou perdendo algo ou alguém. O que estaríamos fazendo agora, se nada disso houvesse ocorrido?
— E todos nós conhecemos você — responde ao estacionar o veículo com frente a uma residência que jamais vi. — Ela é a criança que possibilitou a união dos dois mundos — avisa, antes de descermos do carro. Leonã sinaliza para que o espere e assim o faço.
A porta ao meu lado é aberta e vejo a sua mão estendida para que eu aceite a sua ajuda. As minhas pernas estão bambas e meu coração deixa claro que pode sair a qualquer instante do meu corpo. Leonã segura a minha mão e nos encaminha em direção à residência de Elérgia. Atravesso um caminho de pedras alvas e brilhantes, e ouço o primeiro vestígio da chuva que se inicia. Aproximamos de um portão antigo, de ferro forjado, colorido por um tom dourado e portando duas aberturas. Os entalhes são mesclados em figuras geométricas, curvas e flores; algo tão antigo que há muito tempo não é utilizado. Leonã segura uma das aldravas de metal e bate com força contra as grades, despertando a sua moradora com o agudo ruído.
Para mais uma das surpresas do dia, reconheço os olhos amarelos que vem nos acolher. A senhora que, por duas vezes, tentou me alertar dos perigos desse lugar. Eu tentei ouvi-la, confesso, no entanto fui obrigada a seguir contra a correnteza dos meus desejos. Contudo, em nenhum momento, considerei que Elérgia poderia ser dela.
O portão é aberto com magia, assim como tudo que tenho visto desde que cheguei nessas terras povoada pelo inimaginável. Elérgia nos convida a adentrar em seu lar e a segui-la por um corredor amplo e ornado por janelas, em direção a um belo jardim que há no centro. Tudo é muito peculiar, desde as flores que se movem em nossa direção à cúpula que cobre o espaço como se fosse um manto. Há cadeiras e mesas, doces, bules e chávenas. Meu corpo cansado implora pelo alívio de sentar sobre um estofado confortável e sem o agito de percorrer por lugares devastados.
— Acredito que deseja ouvir a verdade, enquanto beberica de uma boa xícara de chá — diz ela, oferecendo para mim uma chávena de porcelana.
Em seguida, uma outra é oferecida para Leonã e após vê-lo tomar o primeiro gole, sinto-me segura para fazer o mesmo. Elevo o recipiente alvo em direção aos meus lábios, reconheço uma sensação reconfortante, um aroma delicioso e um sabor sem igual. Nada doce ou amargo, e sim acolhedor e aprazível.
— Eu era uma criança perdida. Havia me desencontrado dos meus pais na terceira guerra… — inicia e me ponho a ouvir a sua história, tendo um dos cotovelos ancorados sobre a mesa de mármore. — Elérgia, a cidade que tem esse nome em homenagem a mim, surgiu do meu riso ao ver um carrossel tão belo em meio ao caos. Tinha apenas cinco anos e estava sozinha, perambulando pelas ruas do bairro Aurora. Um raio rugiu sobre um céu dourado, sua força foi tão potente que através dele surgiu um novo lugar, um refúgio que poderia proteger aqueles que jaziam cansados de tanto sofrer. Não percebi a mudança de cenário, o carrossel era o mesmo, no entanto, as pessoas, elas não mais existiam ao meu redor. Sem bombas, sem gritos e sem sofrimento. Tudo novo, apenas algumas crianças seguiram comigo e depois nunca mais as vi. As cidades de Elérgia foram separadas, instantaneamente, conforme era o lugar em que eu morava, por isso, em nenhum momento, percebi ou consegui entender a razão para vim parar aqui. O riso é seu combustível, o riso é o que sustenta todo o lugar, porém é a magia quem cuida de nós até crescermos. Não tenho como controlar seus protetores, eles detêm autonomia mágica para escolherem a forma de proteger as suas terras e dessa maneira, abrindo os portais, trazem mais combustível para Elérgia. Procuro proteger as crianças quando iniciam a coleta, a cada dezessete anos, mas como sendo a única que pode transitar pelos dois mundos por mais tempo, não consigo ser eficaz com todos e apenas algumas permanecem em seu lar. Nunca encontro uma criança mais de uma vez, com você eu vivi toda uma vida… — relata e após a sua finalização, sinto-me sucumbida por uma fadiga inexplicável que antes não sentia. Seu vestido rosáceo parece maleável e macio, caindo como uma flor sobre seu corpo maduro.
— E seus pais? — questiono com os olhos pesados e sonolentos. Volto o meu olhar para Leonã, no entanto o vejo do mesmo modo que antes. Tão elétrico que poderia acender uma cidade inteira.
— Eu nunca lembrei da imagem deles, é apenas um borrão em minha memória, e com todas as crianças é assim… — relata e sinto-me triste por ela, no entanto é muito difícil continuar com os olhos abertos e não ceder aos desejos de cair em um sono profundo.
Há algo de errado, não deveria me sentir tão exaurida.
— O que há nesse chá? — questiono, deixando cair, sobre a grama fofa, a xícara vazia.
— O suficiente para deixá-la mais tranquila — revela com um sorriso gentil sobre a face.
Os seus cabelos brancos esvoaçam com a leve ventania. Os pingos de chuva caem sobre a cobertura e causam ainda mais sonolência conforme tomo nota deles. Calmo e lento, repleto de afeto.
— Mas eu preciso encontrar a analu… — tento explicar, no entanto faltam-me forças.
As mãos do loiro me impede de ter o mesmo destino que a xícara e reconheço o conforto que é estar sobre algo macio, enquanto o escuro me abraça me levando ao mundo dos sonhos.
— Primeiro, a minha menina tem que dormir…
E, como uma boa menina, obedeço as ordens da senhora que poderia ser, de fato, a minha mãe.
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