▫️▪️DEZOITO▪️▫️
Então, parei de seguir o garoto, cujas írises cintilavam sob o resplandecer da lua, e soltei a sua mão. O próprio voltou os olhos em minha direção, como se estivesse em meio à dúvida.
— Não vem comigo? — indagou ele com o cenho franzido e a mão estendida em seu chamado infantil.
— Tenho medo… — respondi, já ouvindo o sibilar do vento gélido que sussurrava, alertando para segui-lo.
— De quê? — quis saber.
Engoli em seco, as falhas na memória atormentando a minha consciência.
— De estar perdida dentro de mim mesma…
Sigo ao som de uma música instrumental. A sua constante repetição sendo o sinal de que a programação foi abandonada às pressas. Acelero e me perco ao ver uma bifurcação na estrada, não sei qual o caminho mais rápido para chegar à fronteira, porém acredito que qualquer distância, não importa quão longa seja, me levará ao mesmo lugar. Escolho a estrada que aparenta ser menos íngreme e rogo aos céus para que tenha sido a melhor decisão. O chiar da rádio chama a minha atenção, no entanto, em um átimo, a melodia melancólica regressa e sou levada a imaginar como a minha vida mudou tanto nos últimos dias.
Era uma sequência de seguir adiante e não pensar muito, me via em constante pressa sem necessário ponderar a respeito do que fazia e a maneira como lidava com as interferências dos possessores. Agora, que a adrenalina abaixou e tenho somente a mim como companhia, os pensamentos regressam assim como as memórias sofridas que deixei para trás.
Sofia nada me deu do que viveu após o dia da morte dos meus pais, ou nossos pais, e não sei qual a sua realidade diante disso tudo. Então, me vejo sofrer com as lembranças, com o sofrimento dela que deveria ser meu, por mais que a consciência diga que não há mais nada a fazer a respeito. O tempo passou e a dor, por mais que tenha regressado, também é passageira. O presente é o que de fato interessa, assim como cuidar daqueles que ainda vivem e esperam por mim.
Me encontro tão distraída em minha linha de raciocínio que me surpreendo com o solavanco do veículo e, ao olhar para o retrovisor, avisto que fui atingida por um dos maquinários de Dejovan Penedo. A velocidade acresce ainda mais e piso no acelerador como se tudo dependesse desse ato. Sigo arrastando os pedregulhos sem me importar com amassar ou arranhar a lataria. Bom, pelo menos não serei eu a ter que mandá-lo para o conserto após o findar de tudo.
— Mais que praga! — resmungo ao vê-los tão depressa, tão mortíferos que a adrenalina retorna com toda a força.
Ouço o ruído de hélices e ao pôr a cabeça fora da janela, após abaixar o vidro em estilhaços, vejo ser o locutor sobrevoando em um helicóptero que deveria pertencer ao governo. Ouço as sirenes e cogito até que ponto a força policial e o departamento de segurança está ao lado do possessor. Engulo em seco, tomada por uma ansiedade de findar logo com isso e ouço o cantar dos pneus.
Deixo uma mão no volante e, com a outra, seguro a pena cobrindo as minhas mãos com o pó brilhante, encharcando-o cada milímetro com magia e me concentro em apenas solicitar o auxílio sem a interferência dos meus medos. Desejo que os troncos e galhos me ajudem a enfrentar os seres de Dejovan e decido usar do caminho como o meu aliado e, sendo assim, o seu tropeço. Alguém atira de cima e o impacto faz com que eu derrape sobre a estrada de terra. Sinto a minha mão girar o volante, dou uma freada brusca e o veículo derrapa dando meia volta, parando em uma posição invertida a qual seguia.
Praguejo.
Por pouco não levo a cabeça ao encontro do volante.
A minha raiva clama por destruição e sinto a tempestade em seu chamado, uma força que me habita e percorre as minhas veias. O sorriso surge em meus lábios ao imaginar a cidade em completa tormenta, os raios que poderão ser úteis, os raios que levaram Leonã para a sua missão. Os relâmpagos rompem o céu com fúria, os trovões rugindo feito uma fera faminta e as nuvens se tornam carregadas, prestes a desaguar. Enquanto atiram, tendo a mim como alvo, desejo que a natureza elimine cada um deles a sua maneira. Quero ter somente o caminho livre, não importa a que custo.
Volto a dirigir em uma velocidade acima do que é considerado seguro. A ventania atrapalha o pilotar do helicóptero e as nuvens densas me cobrem para que eu fique camuflada. Ainda sinto os projéteis raspando a lataria e imagino uma grande massa de ar desviando-as para outra direção. Ouço um estouro e mais uma vez preciso ser ágil na direção, desviando para a direita e esbarrando em uma árvore que não tomei nota.
Sabia que eles não facilitariam.
A pena cai embaixo do banco do passageiro e o brilho nas minhas mãos são pequenas fagulhas incapazes de realizar qualquer desejo. Escuto a melodia infantil de carrosséis e a essência da magia inunda os meus sentidos, de alguma maneira, sinto como sendo essa uma prova de que estou perto dos limites que separaram as cidades e uso o resquício da magia que me resta nos dedos para que um raio atinja o helicóptero. Assisto o seu cair, o embrenhar nos galhos e árvores. Suspiro, acreditando que ganhei um pouco de tempo, embora tenha certeza que não venci a batalha inteira.
Avisto a muralha perto, altiva e de pedras prateadas, e me firmo no pensamento de que vencerei esse desafio, por mais que a dor em meu corpo me dilacere. Não posso ceder ao cansaço agora, não depois de tudo que passei. Paro, deixando o veículo em meio a estrada e busco a pena embaixo do banco e arrasto a pelúcia comigo.
Ponho a mão sobre o quadril — após ter um espasmo pungente — e um rastro de sangue surge nela, porém, não há tempo para curativos ou qualquer outra coisa. Caminho, manquejando até a muralha; segurando o bramido, sentindo as pernas dormentes, o suor impregnado em minha roupa; e tento atravessá-la. Todavia, diferente das outras vezes que sinto a textura maleável, apenas pedras encontram os meus dedos. Franzo o cenho confusa, para segundos depois ter a certeza e soltar um lamento. Portanto, sei o porquê de não poder atravessar, o possessor dessa cidade não autorizou a minha passagem para a próxima e estarei presa aqui até que ele me dê o seu aval.
Dejovan caminha à passos trôpegos, a respiração entrecortada e a feição de quem está debochando do meu empecilho; embora seu estado seja pior que o meu. Uno as duas mãos sobre a pena e pulverizo os seus grânulos em mim, sentindo o meu corpo receber a força necessária para fazê-lo concordar com o meu desejo.
Não entregarei os pontos agora.
Não atravessei quase toda Elérgia em vão. Não me vejo tão destruída para nada.
— Me autorize! — berro, a voz soando enrouquecida e formando em minhas mãos uma magia poderosa, tão forte que a sinto me consumir internamente. Os raios em tons verdejantes despontam de meus dedos, a esfera cintilante possui a capacidade de cegar os olhos daqueles que a admirem por muito tempo. — Não me faça atacar você, Dejovan. Não quero fazê-lo, mas não terei escolha caso prossiga em sua negação.
Contudo, a sua morte não seria uma opção…
Desde quando me tornei uma assassina? Não poderia me tornar alguém no qual desprezaria e entendo que a força, em minhas mãos, poderá destruído.
O homem simplesmente permanece estático, incapaz de fazer o que peço e ouço o meu grito de frustração se esvair. É um misto de dor e sofrimento que esvai junto as lágrimas que não controlo mais. Não sou uma assassina e seria incapaz de tirar a vida de alguém por mais impiedoso que ele seja. Então, miro a fonte do poder para o meu mais novo alvo. Pedras. Pedras sobre pedras que deverão desabar, ou assim espero. Contudo, ao enviar a esfera em direção a parede, nada acontece além da explosão que me faz cair no chão arranhando mais os braços e as pernas.
Fraquejo.
Esse não pode ser o fim, não depois de tudo, não agora que estou tão perto…
“Somos todos os filhos e filhas de Elérgia.” Ouço em minha consciência, um recado de alguém que jamais ouvi e me joelho, ainda trôpega, clamando a força de Elérgia para me ajudar.
Talvez a magia não tenha lados e não decida quem está certo ou errado em uma disputa.
“Abre a passagem para mim… por favor” ouço a voz da minha consciência de maneira frágil, quebradiça e desesperada.
Reconheço de todas as formas possíveis e incontestáveis que não estou sozinha em minha súplica, constatando que há outros suplicando o mesmo que eu. Sinto o aroma ainda mais adocicado, ouço o som do sino dos ventos e recebo o aconchego do calor de Sólon. Testemunho a delicadeza de Rosella e o encanto da mulher que considerei ser a minha tia. O abraço de Sofia. O sorriso de Analu.
O céu derrama esferas de luz multicoloridas — representando cada cidade — que flutuam em minha direção. Elas são quentes, vibrantes e desaparecem ao tocá-las, adentrando na pele e correndo por minhas veias feito sangue. Uma porta se abre para mim e não espero que se feche ou que me impeçam de entrar, embora ainda sinta quando a mão do possessor tenta segurar a minha e me puxar para fora dela. Entretanto, lhe dou o meu golpe certeiro em sua face, me livrando do seu aperto. Entro sem qualquer cuidado, assistindo o portal se fechar e vislumbro o lugar onde a minha florzinha está.
Um relógio soa um tique-taque abafado, contando os minutos que faltam para o fechamento dos portões e o desespero me ganha apressuradamente.
— Analu! — grito, tendo um bitty amarelado esperando ver a sua dona.
Pares de olhos infantis se volvem em minha direção e contemplo todas as crianças que foram roubadas dos seus pais. De bebês a crianças na idade de Analu, poucos são acima da faixa etária dela, e recordo do relato da outra Sofia sobre ser enviada para cá, de modo a cuidar dos mais novos.
Reparo que não há nenhum resquício de céu aberto, ou até mesmo a aparência de uma cidade similar as outras. Tudo é alvo, das paredes ao teto e ao chão. Apenas os atrativos são chamativos e coloridos, mas nada que me chame tanta a atenção.
Talvez o meu problema seja ser adulta ou não ser desejada aqui…
— Sosô, é você? — Ouço a voz da minha menina e, ao voltar o meu corpo na direção em que a ouço, me surpreendo e levo a mão ao peito.
— Leonã…— O vejo segurar a nossa filha em seus braços e questiono se ele sabia todo o tempo quem ela era.
A sua feição não aparenta agrado e satisfação. Na verdade, nada — além da sua face — me remete ao homem que encontrei dias atrás ou daquele que vivi por tantos anos.
— Não deveria estar aqui, Sofia. — diz. A voz soando um tanto destoante da comum.
Não entendo… O que aconteceu com ele? Será ser efeito da cidade em que desapareceu?
Seus olhos amarelos me encaram vazios e os meus, de avelã, procuram algo familiar neles.
— Devolve a minha filha. Levarei ela e todas as crianças daqui! — asseguro e, por mais que tenha tantas perguntas para lhe fazer, esse não é o momento mais apropriado.
Não há tempo para distrações.
— Não, Sofia, hoje não levará ninguém! — replica e engulo em seco.
Eu reconheço essa voz de algum lugar…
Assisto Analu em sua tentativa de se desvencilhar dos braços de Leonã, mas o homem não parece se abalar com isso.
O meu coração acelera e as minhas mãos suam com a ansiedade em tomá-la de uma vez por todas. Suspiro fundo, sentindo os lábios trêmulos, os olhos da minha criança se veem avermelhados de tanto chorar.
— Tia Sosô, me leva daqui, não quero ficar com eles. — Suas palavras me doem o peito e vejo os olhos esperançosos da minha menina, como se por dentro ela soubesse que estou aqui por ela.
Não poderia deixá-la ir para longe outra vez…
— Lembra do que conversamos mais cedo? Precisa se comportar, doce criança! — ameaça o homem que deveria protegê-la e volto a encará-lo, esperando o momento em que ele cairá em si.
— Me solta! Eu quero ir com a tia Sofia! — vocifera a minha menina.
Sei que não posso fazer nada. Machucada, com o sangue esvaindo, não tenho forças para um combate físico com Leonã. Então, preciso de um plano, algo que o faça tirar a atenção da pequena.
As crianças aparentam estarem atordoadas e me questiono se sabem da verdade sobre elas, sobre o passado que tinham com a família.
— Leonã eu sei, eu deveria ter lhe dito quando tivemos tempo, mas a Analu é a minha filha, nossa filha… — inicio, voltando às vistas para os arredores, indo com parcimônia em direção ao centro. — Minha tia, ou quem pensei ser a minha tia, a levou assim que nasceu. Você não lembra, Leonã? Não lembra de nada? Não era assim que deveria ter sido… — prossigo e ouço o tiquetaquear do mecanismo do relógio soar mais forte, compreendo que me resta pouco tempo até a batida final.
— Mas, você é o pai dela…
Tique
— Eu sinto muito, eu vi você morrer…
Taque
— E não vou perder ela de novo…
Tique
— Você e essa sensação que me causa, não irão tomá-la de mim!
Taque
Avisto uma luz reluzente e vermelha próximo do que aparenta ser uma porta e no impulso, tendo apenas o último segundo, aperto o botão que abre vários vãos nas paredes e até mesmo no portal que dá para a cidade das Crianças Perdidas. Os pequenos olham os arredores com os cenhos franzidos e sei que agora elas se lembram de tudo.
Um sinal de alerta soa penetrante e intenso, ouço das crianças o desespero, as lágrimas e os soluços, em querer saber onde estão os seus pais e, ainda assim, Leonã não solta a nossa criança.
— Por favor, Leonã, só devolve a minha filha! — rogo em meio ao caos que eu mesma causei. O alarme ressoando tão alto que um zumbido se faz presente em meu juízo.— Você sabe o quanto lutei para chegar até aqui… Me dá ela! Me deixa ficar com ela! — imploro aos berros. Descontrolada e enraivecida.
Entretanto, não há tempo para mais nada.
Escutamos uma explosão, tão alto e retumbante que meus ouvidos aparentam estarem prestes a estourar e um clarão, de um branco imaculado, inunda a minha visão. Corro em direção a Analu, me fazendo de escudo para ela, mas o fulgor é tão intenso que sinto apenas o impacto do meu corpo moribundo sobre o chão algente.
Os gritos das crianças, e o alvoroço que o momento provoca, clamam para que me erga, para que seja forte e resolva tudo: o som dos carrosséis que não cessam, o aroma doce e enjoativo em demasia, o branco que não desparece. Contudo, não tenho forças, não tenho controle sobre o meu corpo e a minha mente se vê cansada, exausta.
“Está na hora de dormir, mamãe?” Admiro uma pequena Sofia questionar para a mulher que se faz ausente.
Sinto-me tremer, um frio invadir a espinha e tudo o que há por dentro.
Eu havia feito tudo que existia de possível? A ideia de ter falhado me faz encher os olhos e jorrar mares inteiros.
Encontro-me prestes a desligar para sempre. Não há tempo para muito quando meus olhos fecham e o meu corpo silencia, somente ouço a Analu e o seu último protesto.
— Mamãe!
Então, é assim que tudo acaba? É essa a última imagem que a minha criança terá de mim?
Minha mente, resoluta, busca prosseguir em alerta.
Ainda assim, mesmo com todo o meu anseio em permanecer firme, o peso da minha mente vai se esvaindo feito as águas de um rio que encontra, sem pressa, a cascata e a leveza em minha consciência me faz perder o findar da minha lucidez.
A imagem da minha mãe é o que aprecio em meu derradeiro sopro de vida e a sua voz me embala uma última vez.
“Sofia, o grande passo para a liberdade é o recomeço.”
Eu sinto muito, mamãe…
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