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A César o que é de César

Sabia que o diagnóstico seria ruim antes que o médico começasse a falar. Aquele jeito de coçar o queixo. A boca torcida para um lado e para o outro. Os olhos que iam só dos papéis com os resultados dos exames para as imagens da ressonância na tela do computador e de volta para os papéis, ignorando o paciente. Afinal o homem incerto de jaleco branco assumiu seu lugar de médico, e, como quem se desculpa pela inconveniência da má notícia, sentenciou: Câncer. Câncer no pâncreas.

Mas tinha cura? Era grave? Podiam ter esperança? A mulher ia perguntando e lendo os pensamentos do médico, porque não dava a ele tempo para responder. O marido colocou a mão em seu braço, pedindo silêncio. A palma estava fria, mas a voz saiu segura:

– Deixa ele falar, meu bem.

E o médico explicou uma sopa de letrinhas que mais parecia código de Batalha Naval: T4, N1, M1. Adeus, Porta-Aviões. Todo o tratamento seria paliativo. O estágio era irreversível. O médico terminou sua exposição e ficaram os três em silêncio. A mulher tentava não chorar (falhava), esperava uma palavra do marido. Ele pensava.

Pensava em Deus.

Era funcionário público. Assistente social do Conselho Tutelar. Líder de um pequeno grupo religioso. Em sua maioria evangélicos, mas havia espíritas, católicos, mesmo alguns da umbanda e do candomblé. Ele recusava termos limitadores ou excludentes. Dizia que era uma congregação para estudo dos Evangelhos e aplicação da Palavra de Deus no mundo. Sem ligação com grandes igrejas. No começo, as reuniões ocorriam na sala da casa onde morava, apenas com a mulher, os três filhos, vizinhos, amigos, parentes próximos. Mas ele falava bem, tinha presença, conhecia as Escrituras sagradas, embora não fosse de arrotar erudição quanto a nada disso. Assistir às suas preleções (não gostava do termo "sermão") era como um arrebatamento: os presentes riam de algumas histórias, choravam com outras. Sentiam-se acolhidos, pertencentes.

Assim, o número de pessoas aumentava e ele reorganizou a garagem. Construiu um púlpito. Comprou cadeiras. E mais pessoas vinham, a cada assembleia. Conversou com a mulher, alugaram um imóvel comercial. Muitos da congregação insistiram em ajudar a pagar pelo espaço. Resistiu à ideia, mas aceitou, com algumas condições: a primeira, de que ninguém seria constrangido a contribuir. Os irmãos que não pudessem ou quisessem colaborar não deveriam ser vistos ou tratados de forma diferente. Não haveria preferidos, ali eram todos iguais. A segunda: qualquer dinheiro que sobrasse das doações seria aplicado em iniciativas sociais: alimentação e roupas para os pobres, campanhas de sopa, de compras de remédios. Fariam uma caridade honesta e justa, sem se ufanar.

Ninguém discutiu.

Os encontros já reuniam quase uma centena de pessoas. Ele conhecia todos pelo nome. Ia pessoalmente se apresentar ao identificar um rosto novo, mulher ou homem, criança, adulto ou velho. As pregações eram sobre aceitação, sobre amor ao próximo. Sobre o templo de Deus estar dentro de cada um. Não criticava as doutrinas de prosperidade que outras igrejas pregavam, mas esse tipo de discurso não tinha lugar em sua congregação: considerava uma forma de barganhar com Deus, quando a vontade do Senhor, acima de tudo, deveria ser respeitada e seguida.

Também não censurava os que faltavam a reuniões, frequentavam outras igrejas, apareciam de forma esporádica... Insistia que o importante era ter o bem no coração, e praticá-lo. Amar ao próximo. Pensava consigo que era o bastante para alegrar a Deus (e internamente pedia perdão pela audácia de tentar determinar do que Deus gostava ou não).

Enfim. Era um samaritano e tinha câncer no pâncreas. Um tumor maligno em estágio avançado, com direito a metástase. O médico o aconselhou a considerar todos os aspectos práticos envolvidos. Outra maneira de dizer "Vai dando entrada nas providências do enterro, talvez seja o próximo e último grande acontecimento da sua vida".

Agradeceu ao oncologista por seu tempo, pela honestidade ao apresentar a situação e pelo conselho. E disse a ele que não se preocupasse: "Deus vai me curar."

A mulher abriu as comportas quando saíram do consultório, teve que acalmá-la. Ele não acusou abalo. Fosse um falso profeta, desses que usam a fé como desculpa para negociar com Deus, atrair favores, diríamos que deixou o consultório arrasado, a coluna uma geleia, mal se mantendo em pé, febril, suando frio, a boca seca, desorientado, tomado pelo pavor que qualquer um manifestaria ao sentir a morte nos calcanhares, a lhe acariciar os cabelos e fazer promessas de longas viagens, muito, muito em breve.

Mas não era falso. E não sentia medo. O peito fervia com esperança e, enquanto dirigia para casa, ao som dos soluços da esposa, dialogava – perceba: não exigia, não demandava, não negociava; dialogava, sereno – com Deus. Dizia que entendia o chamado, sabia que cada um tinha seu tempo na terra. Mas gostaria de permanecer aqui por mais algum tempo. Queria acompanhar o crescimento dos filhos, orientá-los um pouco mais. Acreditava que a companheira não estava pronta para conduzir tudo sozinha. Apiedava-se não de si, em sua condição de fragilidade, mas dela, que se apavorava com o futuro.

Não deu entrada no pedido de aposentadoria ao qual tinha direito devido à doença terminal. Continuou trabalhando. Contou ao chefe e aos colegas sobre sua situação. Sorria quando o tratavam como se estivesse fragilizado, dizia que não era para tanto. O chefe sugeriu que tirasse, pelo menos, as licenças a que tinha direito. Recusou-se. Meus jovens precisam de mim, dizia. Olha o pecado do orgulho, o chefe brincava. E ele ria, mas se envergonhava e procurava mudar aquilo.

Também não abandonou a igreja, o tom dos discursos não mudou. Pediu à mulher que não informasse aos irmãos sobre seu estado de saúde, mas foi o mesmo que nada. Não se zangou. Repetia sempre: Deus vai me curar. Respondiam Amém!, Paz do Senhor!, Axé!.

Mas a doença prosseguia e seu quadro piorava. Perdia peso. Sentia dores. Às vezes, apesar de todo o esforço, não conseguia levantar da cama. A medicação não ajudava em sua disposição, também. De todo modo, achou que era uma boa coisa: passou a partilhar suas obrigações relativas à congregação com a mulher e outros fiéis, mais próximos. Outros passaram a revezar com ele nas pregações. Também se envolveu mais com colegas no trabalho, transferindo processos e auxiliando funcionários com menos experiência. Partilhava o que sabia, pensava, como Deus, ao ditar os livros sagrados.

Um dia a dor piorou. Foi internado. O oncologista sugeriu a amigos, irmãos, à mulher e aos filhos que se despedissem. As perspectivas não eram boas. Estava desacreditado, mas orava. Nos intervalos entre as visitas, orava. À noite, enquanto a mulher dormia, em vigília, orava. O tempo todo, em silêncio, orava. Eram ele e Deus. Cada minuto naquele quarto de hospital, passava em oração. Abstraía tudo: os enfermeiros, os médicos, os apitos dos monitores. Permanecia de olhos fechados e balbuciante, achavam que era a doença, mas não era, estava em um momento de intensa comunhão com Deus. Mesmo assim piorou. Foi levado à UTI, intubado e sedado. Teve uma sensação de descolamento do corpo, flutuou até um ambiente iluminado, aberto, amplo, infinito. A transcendência vinha como uma vertigem que o conduzia a outro plano. Lá, orava e pedia e orava e pedia e orava e vislumbrou, por fim, uma presença luminosa, distante, que emanava serenidade e alegria e indicava a ele que se aproximasse. Sentiu-se, como nunca, próximo a Deus. Então algo o puxou de volta.

Seu quadro estabilizou.

O exame de sangue veio diferente.

Houve redução na proteína CA 19-9, que acusa o câncer de pâncreas, o médico disse à esposa. Ela quis saber o que aquilo significava. Um pouco perturbado, o doutor informou que era cedo para tirar conclusões. É uma flutuação que pode ocorrer. Mas vamos ficar atentos pra qualquer outra mudança.

No dia seguinte, nova redução.

No terceiro dia a taxa caiu ainda mais.

Os quadros permaneciam firmes. Foi extubado.

Retiraram o sedativo. Despertou.

Fizeram uma ultrassonografia. Depois uma ressonância.

O câncer diminuía.

Retiraram a morfina. Já não sentia dor.

O câncer diminuía.

O câncer tornou-se mínimo. Do tamanho de um limão, agora não era maior do que uma ervilha.

E então desapareceu.

A tomografia mostrava apenas uma marca no local, uma espécie de cicatriz. A biópsia acusou que o tecido da região era saudável. O exame de sangue estava normal.

Recebeu alta.

Estava como novo. Voltou para casa, tornou a ganhar peso. Mas algo mudou em suas relações. Os que sabiam pelo que tinha passado olhavam para ele de um jeito diferente. A congregação dobrou de tamanho, era difícil decorar todos os novos nomes e rostos. Um casal de vizinhos bateu em sua casa para pedir a bênção: esperavam um filho, a gravidez era de alto risco, os médicos diziam que a criança só vingaria por um milagre. Prometeu pedir por eles. Pediram que colocasse as mãos sobre a barriga da mulher. Hesitante, aceitou. Oraram juntos. Ao se despedirem, tentaram beijar suas mãos e ele imediatamente as recolheu, sem jeito. Desculpou-se, com um sorriso amarelo.

Em outra ocasião, pastores de uma igreja internacional vieram convidá-lo a fazer parte da organização. Prometeram tempo de TV, uma congregação com milhares de fiéis. Apresentaram a ele diversas vantagens, todas seculares: plano de saúde, salário, participação nos lucros. Lucros!

Agradeceu e mentiu: "Vou pensar a respeito".

Tentava manter a calma diante de tudo isso, mas estava assustado. Além disso, pensava agora em sua missão. Sim, porque uma provação como a que tinha enfrentado precisava ter algum significado. O que faria a partir de agora? Como espalhar a palavra de Deus, como ser uma prova viva do poder divino, e, ao mesmo tempo, não reclamar para si o mérito pelo milagre testemunhado? Não era um santo, apenas um homem. Buscava respostas em suas orações, mas não encontrava nada. Sentia-se perdido e frustrado. Procurava na Bíblia, mas nada surgia como definitivo. Deus dissera algo e ele não sabia como interpretar. Esperava que a fé o levasse à resposta, mas era uma luz muito tênue voltada contra uma escuridão muito profunda.

Continuava fazendo tudo igual a antes, mas as coisas que antes chamava de "os pequenos passos na construção da morada do Senhor" agora pareciam realmente pequenas. Irrisórias. Irrelevantes. Se estava aqui, se tinha recebido uma nova chance, devia ser para algo maior. Pensou sobre a proposta que recusara, para trabalhar com a tal igreja internacional. Seria aquele seu chamado? Aqueles pastores extorquiam os fiéis, a igreja crescia e os líderes enriqueciam às custas da fé. Eram os próprios vendilhões do templo. Será que Deus o queria envolvido com aquilo?

Ficava aborrecido ao fazer esses julgamentos. Ao se pensar digno de ponderar sobre os desejos de Deus. Ao mesmo tempo, a sensação de união com o Criador ainda o assombrava. Lembrava-se do transe. De uma sensação de leveza maior do que tudo, que o separava de seu corpo ao mesmo tempo em que lhe oferecia uma consciência inédita a respeito de tudo o que se desenrolava em seu organismo, como se tivesse controle sobre cada função involuntária. Então abria os olhos e se via entrando por uma porta imensa em um salão sem fim no qual a luz era quase um fluido no qual flutuava, e lá enxergava, ao longe, uma figura brilhante, de quem não conseguia distinguir os traços do rosto, mas sentia que sorria para ele e gesticulava para que se aproximasse.

Qual era o significado?

Qual era o significado?!

Era madrugada e não conseguia dormir, ruminando essas questões. Fazia calor. A mulher se deixava arrastar pelo sono e ele pelas dúvidas. Levantou para ir à cozinha. Passou antes no banheiro. Olhou-se no espelho. O rosto era o mesmo de sempre. Nenhum sinal, nenhuma marca. Nada. Pensou que Deus precisava trabalhar melhor suas habilidades de comunicação e imediatamente se arrependeu. Pediu perdão.

Chegando à cozinha, notou a luz acessa. Ao entrar, o coração deu um pulo. Havia um homem sentado como se estivesse em casa. A garrafa de água da geladeira suava sobre a mesa. O homem, atencioso, estendia-lhe um copo.

– Noite quente, né?

– Quem é você?

– Queria fazer uma visita, vi que você tava acordado e fui entrando. O copo tá limpo, fica tranquilo. Fui pegar um pra mim e aproveitei a viagem.

– Como você entrou na minha casa?

– Senta aí.

Sem entender muito bem por quê, obedeceu. O homem voltou a estender o copo. Ele pegou e foi então servido de água. Não bebeu. Pôs o recipiente sobre a mesa. Observou o visitante. Era uma figura familiar, mas não conseguia se lembrar de onde.

– Eu te conheço de algum lugar?

– Você me conhece. Mas depois a gente fala disso. Me conta do teu câncer.

– Como assim?

– O câncer de pâncreas. Como é que tá isso?

– Não tenho mais câncer. Fui curado.

– Mas não era terminal?

– Foi o que os médicos disseram, mas os médicos não estão à altura do poder de Deus!

– Então deus te curou?

– Isso.

– Assim, do nada?

– Eu pedi muito e o Pai me abençoou.

– Pediu? Fez alguma oferenda?

– Quê? Não! Eu ofereci toda minha fé, toda minha alma, toda minha devoção.

– Só?

– Isso não é pouco! Eu orei com toda a minha alma!

– Parece ter sido uma oração muito especial...

– Foi diferente de todas as orações que eu já fiz antes.

– Você entrou numa espécie de transe, né?

– Como você sabe?

– Eu entendo um pouco dessas coisas. Você viu a sala?

– A sala?

– É, uma sala enorme, que mais parece um aquário de luz...

– Eu vi! Como você sabe sobre isso? Eu não contei disso pra ninguém.

Deliciado com a informação, o estranho riu. Algo no riso era perturbador.

– E ele chegou a falar com você? Na sala?

– Ele?

– Você sabe. Ele.

– Deus?

– Ele.

– Não, Ele tava longe.

– Uma pena...

– Como você sabe sobre a sala?

– Eu já te disse. Eu entendo dessas coisas.

– Quem é você? De onde a gente se conhece?

– De vários lugares. Mas depois a gente fala disso. Primeiro a gente precisa acertar um negócio.

– Que negócio?

– Sobre você ter sido curado por deus.

– O que tem pra acertar?

– Já tem o quê? Três meses desde que você voltou?

– Mais ou menos isso.

– E nesses três meses você já contou pra quantas pessoas que foi curado por deus?

– Onde você quer chegar?

– Sendo bem sincero: ao fato de que você tem sido injusto.

– Injusto? Com quem?

– Comigo.

– E como eu tenho sido injusto com você?

– Você orou pra ser curado, não foi?

– Orei e pedi.

– Perfeito. Orou e pediu. E alguém recebeu tudo isso. Suas orações e seus pedidos.

– Sim, Deus.

– Quase!

– Como "quase"?

– Deus tava meio ocupado, então outra pessoa teve que cuidar do assunto.

– Outra pessoa quem?

– Outra pessoa eu.

A afirmação foi feita sem o menor humor. Não conseguiu sequer considerar que se tratava de uma brincadeira. O homem falava muito sério.

– Uma oração é mais ou menos como uma ligação telefônica. Não, melhor: é como colocar uma carta no correio. Claro, ela tem um remetente específico. Mas pode chegar pra outra pessoa. Pode se perder. Pode ser interceptada. No caso da sua, foi um pouco de cada. O fato é: quem te curou fui eu.

– Você é o quê? Uma espécie de homem santo? É por isso que eu te conheço?

– Eu não sou um homem.

Pensou em pedir provas, mas não quis passar por Tomé.

– Eu creio! Eu creio, Senhor!

O homem riu.

– Eu sei. Disso não tenho a menor dúvida.

– Então você recebeu minhas orações?

– Sim.

– E atendeu?

– Exatamente.

– Então você é um enviado de Deus? Porque eu tenho umas dúvidas...

– Não exatamente. Mas eu posso te ajudar com suas dúvidas, se quiser.

– Então quem é você?

– Você sabe quem eu sou.

– Diz teu nome!

– Não acho que a gente precisa dessas formalidades.

– Você é um anjo?

Novamente, o riso.

– Sim. De certa maneira.

– Você veio em nome de Deus, então?

– Deus me livre. Eu venho em meu nome mesmo.

– E qual é o seu nome? – insistiu

– Cara... Não me faz cantar Rolling Stones.

Recostou na cadeira. Olhou atentamente pro homem que o observava sorrindo, à vontade, os cotovelos em cima da mesa, o queixo apoiado na mão direita. Não tinha percebido ainda – ou tinha, mas por alguma razão não dera importância ao fato – que o estranho usava um chapéu. A ficha caiu com força. Levantou bruscamente, derrubando o copo que tinha à frente.

– Não!

– Sim.

– Some da minha casa! Afasta, Senhor!

– Ah, tenha dó. Não começa com escândalo.

– Eu te repreendo...

– Você não tem autoridade nenhuma...

– ...em nome de Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo!

– ...pra me repreender.

– Abandona agora...

– Pronto. Começou!

– ...esta casa, este plano!

De olhos fechados, orava em voz alta, as palmas das mãos voltadas ao céu. Evocava a deus com paixão semelhante à que manifestou no hospital. Permaneceu assim, de olhos fechados, orando com fervor, por um tempo longuíssimo. Então abriu os olhos, relutante. Viu a cadeira vazia do outro lado da mesa. Respirou, com paz no coração.

Às suas costas, ouviu o som suave das borrachas da porta da geladeira batendo. O outro vinha de lá, passou ao seu lado – pensou consigo, meio decepcionado, que ele não era muito alto – mordendo uma maçã.

– Acabou o chilique?

Antes que fechasse os olhos para orar de novo, o outro colocou a mão em seu ombro. O corpo parou de responder.

– Agora senta aí.

Sentou, mas os movimentos não eram seus. Sentia-se uma marionete.

– Você já ouviu falar – o outro disse, com a boca cheia de maçã – no Plano Divino?

Não conseguia responder. O outro se deu conta. Fez um gesto e ele sentiu voltando o controle dos movimentos acima do pescoço. Assentiu com a cabeça: óbvio que já ouvira falar do Plano Divino.

– E você sabe o que tem no Plano Divino?

– Tudo o que foi, é e será.

– Exatamente. Agora pensa aqui comigo: deus criou todo esse plano intrincado que contempla tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será, e aqui estão vocês, sete bilhões de macacos com delírio de grandeza, voluntariosos e cheios de ambição. Como é que ficaria o plano divino se cada vez que um de vocês tem uma vontade, deus tivesse que reescrever tudo pra atender o pedido? Já pensou nisso?

Ficou olhando pro outro em silêncio.

– Nunca tinha pensado nisso, né?

– Não...

– Sabe quem já pensou nisso? Eu.

Disse, mordeu a maçã e deu um sorriso.

– Por isso eu atendo algumas orações. Essas coisas que vocês chamam de "milagres". Ele coloca lá que fulano vai morrer no dia tal, a tal hora, num acidente de carro. Que beltrano vai sofrer um ataque cardíaco fulminante. Que uma pedra vai se soltar de um paredão vertical em determinada data, em determinado horário, e que justo naquele momento uma pobre cicrana vai passar por ali com a família. Tá tudo lá, no Plano Divino: o que foi, o que é e o que será. Daí o pneu estoura. O carro perde o controle. Fulano pede a deus. Beltrano tá lá, sentadão no sofá de casa, e sente uma pontada aguda no peito. Balbucia "Meu deus...". A cicrana ouve uma espécie de trovão, mas não tem uma nuvem no céu. Ela vê a sombra do pedregulho se aproximando, um barulho que parece que o mundo vai acabar, e, em pânico, pensa em deus. Mas deus, meu querido, não dá a mínima: foi ele que estourou o pneu do carro, foi ele que marcou o último batimento daquele coração. Deus soltou aquela pedra, que tinha ficado paradinha no mesmo lugar por milhares de anos. Deus colocou um câncer no seu pâncreas. Violento. Sem chance de remissão. Mas eu? Eu ouço todos esses pedidos. E, se me der na telha, venho aqui e atendo. Parar um carro desgovernado, fazer um coração voltar a bater, desviar um rochedo que ia esmagar quatro vermezinhos. Moleza. E deus? Tem que reescrever todo o plano divino.

– Eu não acredito em nada disso.

– Por que não?

– Porque você é mentiroso!

– Sou?

– Sim! Você é o pai da mentira.

– Isso é discutível.

– Não é!

– Claro que é. Não foi deus quem criou tudo o que existe?

– Só as coisas sagradas. A mentira é uma profanação, a mentira é obra sua!

– Bom, qual é o único animal que mente?

– Só o homem, mas...

– Não tem mas. Só o homem mente. Quem criou o homem?

– Deus.

– E criou como? O que é que tem lá no livrinho que ele deu pra vocês?

– Do barro, mas é uma alego...

– Não é disso que eu tô falando! O livro diz que ele criou vocês com base em que molde, meu querido?

– ...à sua imagem e semelhança.

– Maravilha! Então, se ele criou vocês pra serem iguais a ele, e só vocês mentem, a mentira vem dele. Só pode ser ele o pai da mentira. Eu sou, no máximo, o padrinho.

Ele olhava para o outro, entre perplexo e puto.

– Além do mais, eu não ganho nada mentindo pra você.

– Claro que ganha!

– Ok, me entretenha, macaco: o que eu tenho a ganhar ao enganar um macaquinho de sapato?

– Você tira o que eu tenho de mais valioso, pra mim e pra Deus: a minha fé!

O outro gargalhou.

– Companheiro, o que você acha que sabe sobre fé não dá pra encher um dedal. Em primeiro lugar, fé não serve pra absolutamente nada. Além disso, você acha mesmo que deus tem mais adoradores do que eu nesse mundo?

– Sim! Todo filho de Deus em algum momento, em alguma ação, se eleva e faz a vontade do Pai!

– Ah, cala a boca. Você não faz a menor ideia do que o seu deus quer ou gosta. Você mesmo sempre se censura por dizer esse tipo de coisa. Não adianta mentir pra mim. Além do mais, não tem nada que sua espécie goste mais do que dinheiro, e o dinheiro, pelo que vocês dizem, é coisa minha. Se isso for verdade, e eu não confirmo, mas também não nego, eu tenho muito mais seguidores do que o seu deus. Inclusive entre a sua gente, os "religiosos".

– Mentiroso.

– Outro dia mesmo você recebeu uma visita de uns por aqui, e do que foi que eles falaram com você?

– Você é imundo! Sente inveja, por isso veio aqui. Deus me salvou, com certeza tem alguma missão pra mim. E você veio tentar acabar com a minha fé, porque nada te deixa mais feliz do que corromper um escolhido de deus.

– Você é muito engraçado. Olha como você fala de si mesmo: escolhido de deus, destinatário de uma missão importante... o nome disso aí é orgulho, e eu acho que pega mal nutrir esse tipo de sentimento, de acordo com os ensinamentos lá que você diz seguir.

O outro terminou a maçã. Reparou na poça d'água sobre a mesa, que pingava no porcelanato. Moveu um dedo e o copo tornou a ficar de pé, a água voltando para dentro do recipiente como se alguém rebobinasse um vídeo. Afinal, continuou:

– É impressionante como vocês se recusam a ouvir qualquer coisa contrária às suas crendices. Mas tudo bem, vamos voltar pra tal sala que você visitou enquanto estava morto: o figurão que você viu. O que ele fazia?

– Ele sorria e gesticulava pra mim.

– Que gesto ele fez?

– Me convidou a chegar mais perto.

– E depois?

– Depois eu acordei.

– Não chegou mais perto?

– Não tive tempo...

– Sentiu alguma coisa antes de acordar?

– Você não é o sabe tudo?

– Não sou nenhum sabe tudo, mas disso eu sei: você chegou à sala do julgamento. Tinha terminado seu tempo na terra e você ia ser julgado. Eu esperei só o suficiente pro cara te ver e, debaixo do nariz dele, te puxei de volta. Ele fica puto quando isso acontece. Eu me divirto toda vez.

– Olha, você tem milhões de anos de prática nisso: em mentir, em enganar. Fez com Caim, tentou com todos os profetas, tentou até com Jesus Cristo. Mas não adianta: eu não vou acreditar em nada do que você disser. Pode me prender na cadeira, imobilizar meu corpo, retornar a água pro copo, essa pirotecnia toda não significa nada. Você tem a Centelha Divina, mas só consegue usar pro mal mesmo.

– Então eu fiz mal ao te curar?

– Não foi você quem me curou!

– Tanto fui eu que deixei até minha assinatura no lugar.

– E desde quando você tem assinatura?

– Eu tive que adotar uma, já que vocês não acreditam em porra nenhuma que vá contra a fantasia idiota do livrinho lá...

– Então você tem uma assinatura?

– Sim. Três traços.

Ele se lembrou da "cicatriz" na última tomografia.

– Mentiroso!

– Você só tá puto porque tá carregando a minha marca no corpo. Devia ficar feliz, eu coloquei num lugar discreto. Depois você diz que eu só faço o mal, hein?

– Você não tem a menor razão pra manter vivo um filho de deus!

– Você enlouqueceu? Eu tenho todas as razões do mundo pra manter o máximo de vocês vivos pelo maior tempo possível. Tanto que eu vivo ajudando sua turminha a dar um jeito de prolongar a própria vida. Você acha que foi seu deus que deu pra vocês a ciência que ajudou sua espécie a melhorar a medicina? Você acha que penicilina é coisa de deus? (Se bem que é um negócio que cura por meio de uma dor excruciante, é bem a cara dele) Dentista, você acha que é coisa de deus? Quimioterapia, transplante de órgãos... A academia tudo bem, é coisa dele mesmo: resultado por meio de um sacrifício insuportável. É bem do que ele gosta.

– E que vantagem você tira disso?

– Ué, você já devia saber, com seu papinho sobre "a fé". Mas não é pra tanto. Eu só gosto de ver o circo pegar fogo, e vocês são bons demais nisso. Fazem da existência uns dos outros um inferno, brigam, implicam. Fazem, com o perdão da palavra, o diabo. É bullying, é tortura psicológica, é abuso físico e moral... daí vocês inventam o trabalho, as igrejas, seus dogmas e suas liturgias (coisas de mestre, tenho uma inveja absurda por não ter pensado nisso antes!), o Imposto de Renda... Desenvolvem depressão, angústia, ansiedade... Até sozinhos vocês conseguem se atormentar. Isso pra não falar da diversão que é fazer o otário lá reescrever o plano divino. Se você vive eternamente, precisa encontrar alguma fonte de diversão. Vocês são a minha.

– Eu sou um cordeiro de deus!

– Caguei.

– Eu vou continuar espalhando o Evangelho e pregando a Misericórdia Divina!

– Eu não dou a mínima.

– Então, mesmo que seja verdade que foi você quem me trouxe de volta, seu tiro vai sair pela culatra.

– Não vai. Nada disso que você pretende fazer me incomoda. Vai lá, vai ser legal com os outros macacos. Ajuda todo mundo, conta pra eles sobre Jesus (que era um cara ótimo, aliás, você tinha que ver a cara dele no dia em que a gente conversou sobre o milagre do vinho.) – ao dizer isso, tocou no copo d'água desentornado e o líquido mudou para uma substância avermelhada, o cheiro de vinho seco subiu, sedutor – Eu não ligo. Só preciso que você saiba do seguinte: cada dia da sua vida fora daquela UTI você deve a mim. Cada ação, boa ou má, é uma consequência direta de um negócio que eu fiz. Você tem minha marca no seu corpo. Você é como um jogador sob meu patrocínio. As pessoas que você ajudar, será em meu nome.

Tentava se convencer de que era tudo mentira, mas a lógica da coisa toda era implacável. Tudo de repente fazia bem mais sentido. Mesmo assim, resistiu:

– Você não vai abalar a minha fé!

– Olha, sem querer ser grosso, mas que se foda a sua fé. Em segundo lugar, não se trata mais de "fé": você já sabe que deus existe e tem uma noção muito vaga de como funciona esse joguinho. E você sabe que sabe muito pouco. Você é tipo um peixe num aquário que de repente ficou consciente da própria condição. Vou aguardar ansioso pelos próximos capítulos, mas agora preciso ir. Obrigado pela conversa e pela maçã, é minha fruta preferida.

Ao agradecer, levantou o chapéu. Não havia chifres. Ele não precisou articular essa surpresa antes que o outro dissesse:

– Francamente, acreditar até na história dos chifres, é um crédulo mesmo...

E desapareceu.

Ele acordou num susto. Estava na cama. O sol já alto. Ouviu os filhos brincando e rindo. Da cozinha vinha o barulho de alguém lavando a louça. Entrou arrastando os pés, impressionado com o sonho estranho. Beijou a esposa, serviu-se de café. Sentou-se à mesa. Tentou recapitular o sonho em detalhes, mas muita coisa já escapava. A mulher interrompeu seu devaneio: tinha boas notícias. A gravidez dos vizinhos estava fora de risco. No último pré-natal, mãe e bebê apresentavam saúde perfeita. Tinham mandado até uma foto do ultrassom em 3D: nele, a criança aparecia nítida no útero, de olhinhos fechados, as mãozinhas postas. Mas os olhos dele fixaram-se em um detalhe. No bracinho direito. Uma marca que se assemelhava a três tracinhos.

O café desceu na garganta com um gosto amargo.

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