Capítulo especial
Os lobos caminharam até a formação rochosa que dava o nome àquela montanha, uma estrutura de pedra negra em forma de arco, como uma espinha animal parcialmente enterrada na neve. Abaixo do espinhaço rochoso havia uma abismo de profundidade desconhecida, a formação geológica servia então de ponte entre os dois lados da fenda. Quando pisaram na rocha, avistaram do outro lado, imóvel, altiva e intimidadora, a figura espectral da Cavaleira Escarlate, com sua rubra armadura, capa carmesim debatendo-se com o vento, e uma longa lâmina vermelha com a ponta fincada na neve.
Os lobos encararam o elmo em formato de cabeça de lobo e sentiram um arrepio místico percorrer do focinho à ponta do rabo. Long Howl encolheu as orelhas e ganiu baixinho.
— Ou você luta, ou aceita a morte filho.
— Melhor fugir...
— Ela o alcançaria. É o destino, não tem para onde fugir. Avance comigo, juntos podemos impor uma imagem de força e união.
O filho aproxima-se do velho lobo e ambos caminham na direção da caçadora, vagarosamente e atentos a qualquer movimento da parte dela. O vento soprava suas costelas no lado esquerdo, trazendo gelo e desesperança. Conforme caminhavam ouviam a neve chiar sob suas patas e pedregulhos rolarem das bordas do espinhaço para o infinito abismo. Mas nenhum medo era superior ao fantasma vermelho.
Os lobos estavam na metade da ponte quando a cavaleira moveu-se lentamente. Desenterrou a espada da neve e apontou-a para cima. Por um instante os lobos hesitaram, mas depois de ela assumir uma postura defensiva, eles prosseguiram a marcha.
— Não precisamos lutar — gritou o velho lobo.
Se a mulher debaixo da roupa de metal ouviu, não demonstrou nenhuma reação. Long Howl tinha os ouvidos mais sofisticados e percebeu entre o sopro do vento uma voz. Uma canção, e vinha do elmo de lobo.
— Ela está cantando, Pai...
— Ela sempre canta. É um ritual. — O lobo encarou o elmo que parecia com seu próprio rosto e rosnou para a bruxa de sangue: — Eu sei que me entende. Ninguém precisa morrer aqui, hoje.
— Alguém vai morrer — disse a voz ululante por baixo do metal e distorcida pelo sopro gelado da montanha. — Vocês lobos, mataram minha família.
— Sabe que eles não eram sua família de verdade — rosnou o velho lupino.
— Sabe que hereditariedade não define família — retrucou a Cavaleira.
— Foram meus antepassados, estavam com fome. Eu e meu filho nunca matamos humanos.
— Fiz uma promessa... Acabarei com todos os lobos deste reino.
— E depois? — O velho indagou retesando os músculos, pois estava a um salto de distância da matadora de lobos.
Long Howl flexionou as pernas e ficou pouco mais para trás do pai, olhava fixamente para as fendas escuras que serviam de olhos para o elmo de lobo. Por um ínfimo instante ele pode ver um brilho demoníaco esgueirando-se para fora da escuridão que habitava o interior da armadura, e então teve o efêmero vislumbre de um olhar cruel, impiedoso e assassino fitando-o de volta.
— Não existe depois — respondeu a Cavaleira. Em seguida saltou para frente com a espada erguida na altura dos ombros e desferiu um poderoso ataque vertical.
Long Howl saltou para trás evitando assim o ataque por muito pouco. First Bite avançou e saltou por cima da caçadora. Quando aterrissou do outro lado, sentiu o chão fugir de seus pés. A neve solta despencou abismo a baixo e uma de suas patas ficou suspensa no vão. Ele endireitou-se e respirou fundo.
— Está entre dois lobos. Não pode atacar à ambos. Sugiro que paremos por aqui.
A Cavaleira vira-se lentamente para o velho lobo e emite uma funesta gargalhada que retumbava no metal e lhe causava arrepios. O filho estava assustado, mas honraria seu pai na luta, pois em dois eles tinham uma chance, e sozinhos não tinham chance alguma. Long Howl procurava qualquer ponto na armadura onde pudesse cravar seus dentes, mas aparentemente não havia falhas.
— Eu não me tornei uma lenda por matar um lobo por vez... Mas sim cinco.
First Bite franziu o cenho e arreganhou os dentes. Algo naquela voz o impedia de detectar os sentimentos e reações de sua oponente, talvez esse fosse o propósito da armadura, ou talvez os lobos enfrentavam um verdadeiro monstro destituído de emoções.
Ela brandiu a lâmina vermelha num ataque em arco, mas o velho lobo já esperava por isso e saltou para trás esquivando-se do golpe. O filho avançou sobre a caçadora e fincou os dentes em sua capa. O peso de um lobo pendurado em suas costas, balançando de um lado para o outro, fê-la desequilibrar e caminhar cambaleante por alguns metros. Mas a experiente caçadora desatou o nó que prendia a capa aos seus ombros e a deixou cair com o lupino.
— Vocês não entenderam ainda... A luta acabará no próximo golpe.
Long Howl não via possibilidade disso acontecer. Eles ainda estavam separados, um da cada lado da ponte com a bruxa rubra no meio. A vantagem era toda deles. Ele flexionou as pernas e rosnou alto.
— Ainda não filho... — Orientou o velho lobo. — Você guarda rancor de algo que não aconteceria se os homens não errassem conosco.
— O único erro dos homens foi não matar todos vocês.
— Nenhum lobo ataca por atacar. Nós só matamos o que vamos comer, e humanos não é parte de nossa alimentação. Ao menos não deveria ser. Mas os humanos forçaram os lobos a um estado de fome tão grande, que os lobos precisavam comer o que tinham pela frente, como: humanos e até outros lobos.
— Vocês sempre nos atacaram.
— Sabe que não é verdade. O ataque àquela família foi o primeiro incidente. Estavam desesperados.
Long Howl prestava atenção ao falatório enquanto buscava o momento oportuno para desferir um ataque decisivo.
— Vocês mataram toda aquela família.
— Dentre os corpos... Havia um que não morreu pelas presas de lobos. — Depois de uma breve pausa, o lobo perguntou: — Por que matou sua mãe?
A bruxa rubra não respondeu. Apertou o cabo da espada e soltou uma baforada de ar condensado.
— Eu sei o motivo. Porque assim como sua avó, aquela que está amarrada no castelo, você é um ser da pior espécie, temida e rejeitada por ambos os laços parentais. Você é um...
— Chega! — Gritou a Cavaleira Carmesim e atacou o velho lobo com toda sua força. A lâmina rubra desceu do céu rápida como um relâmpago, First Bite adiantou a cabeça e cravou os dentes na espada.
A proximidade permitiu que o ancião visse de perto o olhar de espanto da mulher por baixo da proteção metálica. Ela forçou a lâmina para baixo com as duas mãos, mas o velho lobo resistiu bravamente empurrando de volta.
Long Howl não se conteve e saltou sobre a mulher. Com muita maestria, ela largou a espada, girou o corpo e desferiu um poderoso chute nas costelas do lupino ainda no ar. O golpe arrancou do lobo um ganido de dor, antes que fosse arremessado para fora do Espinhaço negro.
— Nãããoo!!! — Gritou o ancião após largar a espada no chão. Saltou no espaço girando seu corpo lateralmente, sem se importar com mais nada. Tudo o que pretendia naquele momento era voar pelo ar e salvar seu filho. Ao alcançar o filhote, mordeu a pele atrás do pescoço e usando os giros como impulso, arremessou-o de volta à ponte, mas não poderia salvar a si mesmo.
A cavaleira observou o lobo mergulhar no abismo até desaparecer na escuridão impenetrável. Retirou o elmo e seus cabelos foram impulsionados pelo vento álgido. O som de metal tilintando quando o capacete tocou o solo rochoso, despertou o lobo que fora salvo à custa da vida de seu pai. Ele levantou-se rosnando e sentindo seus músculos queimarem, tamanha era sua ira.
O lobo saltou sobre a guerreira escarlate, com a mandíbula aberta irando a cabeça desprotegida. No entanto, a cavaleira já esperava por um ataque como aquele, e cruzou os braços frente ao rosto para bloquear a mordida.
Assim que o canídeo caiu no solo aos seus pés, ela abaixou-se e rapidamente apoderou-se novamente da espada com a lâmina de sangue. O lobo levantou-se a arreganhou os dentes, por mais que tivesse medo da morte, ver seu pai morrendo despertou nele um instinto selvagem de violência, cujo qual, não cede espaço para o pavor. Long Howl correu na direção da mulher e quando estava bem próximo, saltou sobre ela.
O golpe em arco varreu o horizonte à frente da exímia caçadora. Os flocos de gelo chocaram-se com a lâmina resistente banhando-a com o líquido deles extraídos, e no meio da trajetória, encontrou os pelos grossos do lobo, mas não se deteve neles, avançou rumo à carne, ossos, órgãos interiores e terminou o movimento com um esguicho de sangue quente sendo lançado abismo abaixo.
O lobo caiu com a barriga aberta e o intestino para fora. Choramingando de dor, tentou clamar por sua vida, mas a cavaleira impiedosamente pisou em sua cabeça e pressionou o pé para baixo. O pequeno e agora indefeso logo sentia seus ossos rangerem e trincarem, sabia que morreria em instantes. Fitou os frios olhos azuis da mulher e disse:
— Por que acabar com todos os lobos?
— Porque eu sou o único e verdadeiro lobo — afirmou a Cavaleira Escarlate antes de esmagar o crânio da pobre criatura.
...........
— Ela está entrando majestade!
— Mas será possível? Esses incompetentes não conseguem barrar uma mulher? — O rei caminhou pelas ameias e espiou para baixo. A cena que viu o paralisou por completo. Seu pelotão de defesa interna, os soldados de armadura negra estavam em pedaços espalhados pelo pátio, o portão estava completamente destruído e havia pânico em todo lugar. — Como é que ela fez isso?
— Senhor... Relataram que ela está acompanhada de um monstro.
— Monstro nada. Me dá essa espada aqui, vou lhe mostrar porque eu sou o rei desse maldito pedaço de chão.
O soldado entrega a espada ao rei e afasta-se com as pernas trêmulas apontando para a torre que ficava atrás do rei. Assim que o homem mais poderoso do reino olha para trás avista a porta que dava acesso às ameias em farpas e avançando em direção estava a Cavaleira escarlate com seus cabelos loiros esvoaçantes.
O monarca empunha a espada confiante e encara a mulher distante. Ela estava perceptivelmente insana, seus olhos brilhavam mais que a Lua e seu largo sorriso declarava que ela não sabia o que estava fazendo, suas ações desmedidas contra o reino não condiziam com a realidade de uma pessoa que gozasse de plena sanidade mental. Ele esfregou os pés sobre a pedra e aguardou a aproximação. Quando ela estava há menos de dez metros, ele gritou:
— O que acha que está fazendo? Pare ai mesmo ou eu...
— Você não fará nada. — Interrompeu a mulher. — Em parte porque não pode, e em parte porque não deixarei que faça sequer um movimento.
— Ora, sua fedelha miserável — gritou o rei.
A Cavaleira sorriu sarcasticamente e rapidamente as proporções de seu corpo se agigantaram. A armadura fora absorvida pelo corpo que estava agora coberto de pelos e músculos. A face da moça havia se tornada a cara do demônio, uma face retorcida que lembrava um cão do inferno, com presas enormes e afiadas, assim como garras longas e mortais. A mulher havia se tornado uma besta que misturava as feições de homem e de lobo. Tal imagem causou pânico no monarca, tamanho foi o desespero que suas tripas se soltaram. A mulher aproximou-se e com um único golpe parti-lhe ao meio espalhando tripas, sangue, ossos e fezes para todos os lados.
A horrenda criatura não encontrava resistência para embrenhar-se nos labirínticos corredores do castelo. Logo estava nas masmorras esmurrando uma porta de ferros e pedra. Depois de alguns golpes ela pôs a porta à baixo e adentrou à cela escura segurando um pacote. Olhou para o fundo, e avistou encostada na parede uma decrépita criatura, encolhida, suja e maltrapilha, sussurrando uma infame canção a qual ela conhecia bem.
— Vovó? Trouxe-lhe gostosuras — disse a Cavaleira sorrindo e lançando para a velha, a cabeça do rei.
Fim.
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Oie pessoes lindes!
Estou de volta, mexendo nessa obra rsrsrs =^.^=
Após algumas pessoas reclamarem e pedirem, resolvi escrever um capítulo extra para dar um final alternativo e glorioso para o conto. Então, espero que tenha gostado.
Beijos da Pri!!!
xoxo
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