Ⅱ
Eu me encaro no espelho do banheiro, e um rosto cansado me devolve o olhar. As olheiras profundas denunciam as noites mal dormidas, consequência da ansiedade que tem me consumido e da busca incessante por uma solução para meus problemas. Para os outros, tudo parece tão simples, como se houvesse um manual de instruções que eu não consigo decifrar. Mas, para mim, a realidade é outra. Desde que minha mãe se foi, cada dia tem sido uma batalha, e a necessidade de me reerguer sozinha, sem ter aquela voz reconfortante que sempre soube o que dizer, tornou tudo mais difícil. Minhas amigas estão lá, é claro, mas elas têm suas próprias tempestades para enfrentar.
Suspiro e desvio o olhar do reflexo, sentindo um nó se formar na garganta. Abro a gaveta e pego a caixa de tinta e o pente junto com a vasilha. A raiz escura dos meus cabelos está evidente, um lembrete do tempo que passou desde a última vez que pintei. Penso em simplesmente mudar para o preto; talvez seja mais fácil, menos trabalhoso do que manter o vermelho sempre vivo. Mas, ao mesmo tempo, sinto que deixar o vermelho para trás é como abandonar parte de mim, uma versão que lutei para construir em meio ao caos.
Com um movimento quase automático, despejo a tinta no pote e divido meus cabelos ao meio, sentindo a textura áspera dos fios sob os dedos. O cheiro químico da tinta invade o ar, trazendo uma sensação agridoce. Enquanto aplico a tinta, observo as mechas vermelhas se rendendo ao tom escuro, como se fossem um reflexo da minha própria tentativa de mudar, de seguir em frente. Espero alguns minutos para a tinta pegar antes de entrar no banho, deixando a água quente escorrer pelo meu corpo e relaxar os músculos tensos pela preocupação. Ao sair, me visto com uma blusa de lã branca que coça levemente na pele. Um calafrio percorre meu corpo, uma mistura do ar frio e da estranha sensação. Eu sabia que à noite iria chover — o cheiro de terra molhada já permeia o ar —e, de certa forma, a iminente tempestade combina com o turbilhão de pensamentos em minha cabeça.
Enquanto penteio meus cabelos molhados, aproveito para mandar mensagens para as meninas, perguntando se chegaram bem em casa depois da nossa conversa no café. Mal consigo esconder meu receio de ir morar em Salém. “Cuidar” de uma pessoa cega é uma grande responsabilidade, mas a chance de ter um teto e continuar com meus estudos é tentadora. Tento me convencer de que, afinal, quem não arisca não petisca, certo?
Apesar disso, não consigo deixar de questionar a estranha dinâmica da família da minha amiga. Por que Winona mora aqui na cidade, enquanto seu irmão cego vive sozinho em Salém? Será que é um assunto delicado? Espero que ela me conte quando formos amanhã. Coloco a curiosidade de lado e decido focar na tarefa mais imediata: arrumar minhas coisas. Felizmente, não tenho muito para embalar.
Com um suspiro resignado, puxo duas malas empoeiradas debaixo da cama e começo a esvaziar o guarda-roupa. As roupas deslizam entre meus dedos enquanto as dobro. A realidade de que tudo o que possuo cabe em duas malas é ao mesmo tempo libertadora e triste. Espero que essa mudança seja exatamente o que preciso para recomeçar
Envio uma mensagem ao dono do apartamento, avisando que sairei amanhã e que deixarei as chaves com o porteiro. Ao terminar, meu estômago ronca de fome e caminho até a cozinha. Pego uma panela, coloco água para ferver e procuro nos armários os lamens que comprei em uma feira cultural dias atrás – aqueles de potinhos com o Naruto e o Sasuke estampados. Parece meio infantil, mas, por algum motivo, esss potinhos me trazem conforto.
Assim que a água ferve, despejo no pote e volto ao quarto. Me sento na cama, ligando a TV para tentar me distrair com um filme qualquer. No entanto, mesmo enquanto as imagens piscam na tela, só consigo focar em minha ansiedade.
Acordo cedo no dia seguinte, com os primeiros raios de sol entrando pelas frestas da cortina. Eu amo o sol depois da tempestade. A decisão de acordar pesa sobre meus ombros, mas me forço a levantar e deixar meu apartamento todo organizado, como uma forma de não pensar muito em minha mudança. A vista da varanda me prende por alguns instantes, meus olhos percorrendo a lagoa tranquila que reflete os primeiros tons alaranjados do dia, misturando-se com a silhueta dos prédios ao fundo. Um suspiro profundo me escapa, e a nostalgia começa a se instalar. Essa vista, meu refúgio nos dias mais difíceis, a sensação de paz que ela me traz… Irei sentir falta disso, talvez mais do que estou disposta a admitir. Caminho até a cozinha e pego uma chaleira para fazer meu café. Com um café preto em mãos, amargo como o sentimento que cresce no peito, começo a embalar meus pertences, começando pelos livros na estante e depois o restante das roupas. A rotina de arrumar tudo é quase terapêutica, preenchendo o vazio que começa a se formar com a ideia da patida.
Não demora muito para Chloe e Winona chegarem aqui, mas acho que chegam tarde demais, pois já arrumei tudo. A porta range levemente ao ser empurrada, e elas entram com o cheiro doce de açúcar e café permeando o ar, trazendo consigo um breve alívio para o ambiente vazio. Winona, com sua jaqueta azul e um vestido branco, coloca sacolas da padaria em cima da mesa, seus dedos finos batucando brevemente na superfície de madeira antes de liberar o peso das compras. Chloe, por outro lado, caminha com passos leves em direção à cozinha para pegar os copos, seus tênis esportivos fazendo pouco barulho no piso.
— Espero que não tenha tomado café, compramos muita coisa — Chloe comenta ao se sentar, lançando-me um olhar brincalhão enquanto ajeita uma mecha do cabelo roxo que teima em cair sobre seu rosto.
— E nem venha com “Ai, eu não estou com fome”, vai comer sim — a voz de Winona soa como uma ameaça velada, mas há um sorriso afetuoso em seus olhos.
Me sento na mesa junto a elas, e o toque frio da madeira é familiar, quase reconfortante. Abro as sacolas devagar, pegando um dos donuts. A cobertura verde brilha sob a luz, e eu imagino que seja de pistache.
— Sorte sua que estou com muita fome — mordo o donut que é realmente de pistache, sentindo a textura macia e o sabor levemente salgado se misturando ao doce da massa. — Esse é gostoso.
— Eu sei, trouxe vários — Winona diz com um sorriso, seus olhos brilhando como se estivesse satisfeita por ter acertado. Ela pega uma garrafa de vidro e serve um líquido rosa nos copos, que tem a cor exata de uma vitamina de morango, mas o aroma que se espalha na sala faz com que eu me pergunte se ela colocou algo a mais. A sala parece mais cheia agora, como se a presença delas diminuísse o vazio do espaço.
Dou uma última olhada em meu apartamento e fecho a porta. Carrego minha mala enquanto Chloe leva outra bolsa minha. Passo as mãos na saia preta que estou usando e coloco o cabelo atrás da orelha.
— Eu achei lindo seu cabelo preto; fazia uns dois anos que não o via assim. — Winona comentou enquanto descíamos as escadas e ela segurava a ponta de minha mala.
— Realmente, te acho bonita dos dois jeitos, mas acho que morena causa um impacto. — A fala de Chloe me faz rir; quando pintei o cabelo de outra cor, ela disse o mesmo.
— Obrigada, meninas, vocês também são maravilhosas com seus cabelos.
Dou um sorrisinho para elas enquanto continuamos a descer as escadas. Finalmente, chegamos ao hall de entrada do prédio; já não aguentava mais as escadas. Entrego a chave ao porteiro, que me dá um sorriso acolhedor, e eu retribuo.
Chloe é a primeira a chegar até o G-Class branco de Winona. Ela era simplista, mas às vezs adorava esbanjar seu dinheiro. Winona destrava o carro e colocamos minhas coisas no porta-malas.
— Não vou poder acompanhar vocês duas, tenho que fazer umas coisas para meus pais. — Chloe diz e me abraça pelos ombros.
— Sem problemas, Chlo, você me ajudou bastante. — Falo, dou um sorriso e ela me abraça de vez.
— Promete que vai ficar bem? Pode me ligar a qualquer momento que vou correndo te buscar. — Concordo com a cabeça e a abraço mais orte. — Te amo, Valen.
— Eu também te amo, Chlo.
— E eu? Vão me deixar de fora dessa melação de vocês? — Ouço a voz brava de Winona e ela nos abraça.
Elas são mais que amigas; também são a minha única família. Entramos no carro e damos um tchauzinho para Chloe, que parece animada, como se estivesse mandando energias boas.
Winona dá partida no carro e sinto uma felicidade momentânea em meu peito. Winona diz que o caminho não é tão longo; é uma hora e meia de viagem. Ela liga o rádio do carro, enquanto coloco o cinto. Olho para a janela. O fim do outono trazia consigo um clima mais frio e melancólico. As temperaturas já não eram tão amenas, e o vento, agora mais fore, soprava de forma cortante, espalhando as últimas folhas secas que se desprendiam das árvores.
— Preciso te contar e passar algumas coisas antes de chegarmos lá. — Ouço a voz de minha amiga e me viro em sua direção; ela me dá um sorriso.
— Claro, pode dizer.
Me ajeito no banco e me viro para ela.
— Bom, meu irmão não gosta muito que o tratem como se não soubesse fazer nada; apesar de cego, ele sabe fazer muito bem as coisas. — Ela me olha por um breve mometo e continua falando — Quando ele ficou cego, meus pais adaptaram a casa para ele, então ele sabe onde fica tudo.
— Isso é interessante; mesmo cego, ele consegue fazer tudo.
— Sim, mas nunca mencione sobre ele ser cego ou pergunte sobre o acidente dos nossos pais; ele fica sensível e odeia esse assunto.
Concordo com a cabeça e vejo que ela parou em um sinal. Winona me olha novamente.
— Ele é um pouco ranzinza e mal-humorado, mas acho que, conforme os dias forem passando, ele se adapta a você. É só não perguntar muito e tratar ele como um pessoa normal que enxerga e que quer viver sozinho por escolha própria.
Acho que sua última frase foi como um desabafo. Ela volta sua atenção para a pista assim que o sinal abre.
— Win, posso te perguntar uma coisa? — Pergunto um pouco receosa, mas logo ouço um “Uhum” em resposta. — Por que ele mora sozinho?
— Porque ele se acha um fardo e me obrigou a morar em Beverly Cove por conta da faculdade de medicina. Ele diz que gosta de ficar sozinho, então eu tive que arranjar alguém para ficar com ele, porém não dura nem dois meses.
— Por quê? — Digo curiosa novamente; vai que minha estadia dura apenas dois meses.
— Porque ele odeia perguntas sobre ele, sobre nossa família, e acha que estou contratando babás. Ele diz que pode morar sozinho tranquilamente, mas eu não confio, Valen. — A preocupação em sua voz é nítida, e eu concordo. Se eu tivesse um irmão, faria o mesmo. — Mas eu já deixei avisado para ele e conversei com ele; disse que você é uma amiga minha, então ele não irá te destratar.
— Certo, bom, fico feliz. Não irei tocar no assunto de nada.
A vejo sorrir contente. Winona é do tipo de pessoa que sempre tenta te ajudar e te coloca em todo lugar que ela conseguir.
— Ótimo, você basicamente só vai fazer companhia e comida. Tenho uma amiga chamada Vivian que vai duas vezes na semana limpar a casa. E tem Luke que leva as compras da semana. Meu irmão é vegetariano. Ele disse que nossa família fez maldades demais e que ele tenta se redimir.
— Que maldades sua família fez? — Ela quase nunca fala sobre sua família, só sei que tem um irmão, e seus pais, antes de falecerem, eram donos do hospital da cidade e de um necrotério, que agora está no nome dela e do irmão.
Winona estava com as mãos firmes no volante, mas os olhos perdidos em algum ponto distante. Era como se ela estivesse presa em um mundo paralelo. Olho para a janela, observando a estrada deserta, somente com as árvores passando por nós.
— Sabe, há muito tempo atrás, uma bruxa amaldiçoou minha família. — As palavras saíram dela como um sussurro, mas carregavam o peso de gerações.
Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo o que ela acabara de dizer.
— Amaldiçoou como? — A curiosidade falou mais alto. Desvio o olhar da janela. Ela não olhou para mim, mas sua voz ficou ainda mais sombria.
— Ela lançou uma maldição... Todos os primogênitos da nossa família seriam cegos, e todos os filhos mai novos morreriam de maneira... suspeita.
Franzi a testa, ainda cética.
— E você realmente acredita nisso? Que isso tem a ver com vocês? — Winona soltou um suspiro pesado, o tipo de suspiro que dizia que essa era uma conversa que ela preferia não ter.
— Eu não sei, Valen. Mas é o que a vila fala. Cresci ouvindo essas histórias. E meu irmão... ele odeia esse assunto. Evita a qualquer custo. melhor a gente não tocar nisso quando estivermos perto dele.
Não consigo ignorar a necessidade de saber mais, mas também sabia que aquilo mexia com ela.
— Entendo. Mas... essas mortes suspeitas... já aconteceram com alguém próximo de você?
Win apertou o volante com mais força, o silêncio dominando por alguns segundos antes de finalmente desviar o olhar para a estrada.
— Sim, mais do que eu gostaria de lembrar.
A estrada parecia interminável, e o peso daquela conversa pendia sobre nós como uma nuvem negra. Ela estava carregando algo grande, algo que a devorava por dentro, e eu sabia que, cedo ou tarde, teria que enfrentar o que essa maldição realmente significava.
— Chegamos. — Winona diz, estacionando seu carro, e descemos.
A casa ergue-se diante dos olhos, imponente e sombria, com sua estrutura gótica um pouco antiga, recortando o céu nublado como se desafiasse o próprio tempo. As paredes escuras, quase negras, contrastam com as cores vivas dos jardins perfeitamente esculpidos, onde flores vermelhas ardem como brasas entre o verde impecável das folhagens. A água escura do lago diante da propriedade treme em pequenas ondulações, refletindo o céu pesado e a arquitetura vitoriana em um espelho distorcido desombras e luzes difusas.
Não há som de pássaros, nem o riso distante de crianças; apenas o sussurro das árvores altas que cercam a propriedade como sentinelas silenciosas. Cada janela da casa, alongada e adornada com detalhes de ferro forjado, parece olhar para fora como olhos vigilantes, espiando o que se atreve a cruzar seus domínios. Sinto meu corpo estremecer, e leves arrepios percorrem minha nuca.
A atmosfera ali é pesada, envolta em uma quietude quase palpável. Tudo parece demasiado perfeito, controlado, como se o tempo tivesse parado e a natureza, domesticada, estivesse à espera de algo — ou alguém. E como se carregasse consigo o peso de um silêncio cheio de histórias esquecidas, como se a própria casa respirasse junto com a terra que a sustenta.
Olho para os degraus da casa e vejo um homem alto, com a pele tão pálida que parece ter sido esquecida pelo sol há dias. A luz suave da tarde se reflete em seu rosto, acentuando seu queixo marcado e sem barba; seus olhos nem mesmo parecem não enxergar. Seus cabelos pretos caem em ondas desordenadas até a altura de suas orelhas, diferentes da suavidade e do brilho dos cabelos de Winona, como se cada fio contivesse a sombra de um mistério. Ele está parado, com uma expressão intensa nos olhos, como se estivesse à espera de algo — ou de alguém.
Realmente,passa despercebido que ele não enxerga. O homem tem a beleza de um deus grego.
— Wesk — meus pensamentos são interrompidos quando minha amiga corre até o irmão para abraçá-lo.
— Olá, maninha! Trouxe a nova babá? — sua voz é grossa e assustadoramente bonita. — Espero que ela aguente... — ele murmura, com um sorriso enigmático nos lábios.
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